É possível (As eleições para o Parlamento Europeu e a extrema-direita)
“Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós”.
Por Anabela Fino
Tomo emprestados os versos de Jorge de Sena na sua belíssima Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, escrita fez agora 60 anos, que me veio à memória ao ser confrontada com os suspiros de alívio dos comentaristas das eleições para o Parlamento Europeu, por a subida da extrema-direita não ter sido tão grande como se dizia temer.
“A Europa pode respirar”, título do editorial de El Mundo, sintetiza a mensagem que está a ser passada.
E no entanto… Com a entrada do Vox (24 deputados) no parlamento espanhol, a extrema-direita passou a estar presente em quase todos os parlamentos nacionais dos estados-membros da UE. Excetuam-se Portugal, Irlanda, Luxemburgo e Malta.
E no entanto… A extrema-direita já governa, sozinha ou em coligação, em nove países europeus: Polônia, Hungria, República Checa, Itália, Áustria, Finlândia, Letônia, Eslováquia e Bulgária.
E no entanto… Antes das eleições, partidos fascistas e xenófobos liderados pela sinistra troika composta por Matteo Salvini (Itália), Marine Le Pen (França) e Geer Wilders (Holanda), marcharam em Milão. Participaram delegações da Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Eslováquia, Estônia, Finlândia, França, Holanda e República Checa.
E no entanto… A União Nacional de Le Pen foi a força mais votada em França, no domingo; em Itália, a vitória foi para a Liga de Salvini; na Hungria, o partido fascista Fidesz do primeiro-ministro Viktor Orbán não só venceu como reforçou a sua votação.
E no entanto… na Bélgica, o N-VA, partido nacionalista flamengo, venceu as legislativas de domingo, apesar de ter perdido deputados, e a extrema-direita da Flandres elegeu cinco deputados no parlamento federal.
A par do alívio fácil dos que aconselham a que se espere para ver se o lobo, já na capoeira, morde ou não, há ainda quem recomende – como segunda-feira se ouviu na Antena 1 – que se olhe com outros olhos para estes partidos, pois nem sequer serão fascistas, caso da União Nacional de Le Pen. Gente de vistas largas, pois claro, para quem a fronteira entre direita e extrema-direita pode, se necessário, tornar-se difusa.
É por tudo isto, como diz o poeta, que nos cumpre cuidar do mundo que criamos, em “memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram”. Porque tudo é possível.
Fonte: Avante!