Solidariedade

Papa Francisco denuncia Lawfare e perseguição política em encontro de juristas no Vaticano

“Estes tipos de práticas resultam da imprópria atividade judicial, em combinação com operações multimidiáticas paralelas”, disse o Papa a juristas dos EUA e América Latina.

Por Patricia Faermann, para o Jornal GGN

O papa Francisco mostrou preocupação com o Lawfare no Judiciário.

As declarações do Pontífice foram dadas em meio a dezenas de juristas e membros do Judiciário da América Latina e dos Estados Unidos, durante a Cúpula Pan-Americana de Juízes, promovida no início desta semana, no Vaticano.

Disse Francisco: “aproveito essa oportunidade para manifestar a minha preocupação com uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais”, introduziu o papa.

“O Lawfare, ademais de colocar em sério risco a democracia dos países, geralmente é usado para minar os processos políticos emergentes, e tendem a violação sistemática dos direitos sociais”, continuou.

A prática importada dos mecanismos judiciais dos Estados Unidos foi amplamente utilizada pela Operação Lava Jato no Brasil, tendo como um de seus ápices a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Um dia antes da participação direta do papa Francisco no encontro, os juristas e juízes presentes na Cúpula utilizaram os últimos 30 minutos restantes do encontro para debater as práticas de perseguição do Judiciário contra políticos, principalmente no Brasil, com a derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula e também nos demais países vizinhos, como Argentina e Peru.

A primeira intervenção sobre o tema foi feita pelo Juiz do Trabalho Hugo Cavalcanti Melo Filho, que questionou a proposta anterior do juiz Superior do Distrito de Massachusetts dos Estados Unidos, Mark Wolf, sobre a criação de um Tribunal Internacional Anticorrupção.

“A primeira questão que coloco é se os Estados Unidos da América vão se submeter a esse tribunal anticorrupção, na medida em que ele não se submete ao Tribunal Penal Internacional e nem à Corte Interamericana de Direitos Humanos”, introduziu o juiz brasileiro.

“Não seria o caso de se examinar se realmente a corrupção que é um câncer efetivo não estaria sendo usado como um instrumento diversionista para justificar, por exemplo, golpes contra Zelaya (Honduras), contra Lugo (Paraguai), contra Dilma Rousseff, a perseguição criminal contra Lula da Silva, que está preso, Alan García (Peru), que se matou, Rafael Correa (Equador) e Cristina Kirchner, que está enfrentando dezenas de denúncias por corrupção?”, continuou.

A pergunta gerou um amplo debate entre os participantes da Cúpula, entre os favoráveis e contrários à posição do magistrado brasileiro, incluindo o vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, que caracterizou a prisão de Lula como “uma grande dor no Brasil”, declarando ainda que o governo de Jair Bolsonaro trouxe de volta “o medo de um retrocesso político para ainda a época de regimes militares”.

Mas o tópico final do segundo dia do evento foi o que indica ter motivado o Papa Francisco a compartilhar sua posição. O Pontífice não mencionou nomes de presidentes e tampouco nominou os países a que se referia, mas criticou o uso da Justiça para a perseguição política.

“Para garantir a qualidade institucional dos Estados, é fundamental detectar e neutralizar estes tipos de práticas, que resultam da imprópria atividade judicial, em combinação com operações multimidiáticas paralelas”, disse o papa. “Sobre isso não me detenho, mas todos nós conhecemos o juízo prévio midiático”, seguiu.

Abaixo, o vídeo com a integra do discurso do Papa Francisco seguido da transcrição:

Discurso na íntegra

“Senhoras e senhores, é motivo de alegria e também de esperança encontra-los nessa Cúpula, na qual deram uma citação que não se limite somente a vocês, mas sim que evoca o trabalho que realizam conjuntamente com advogados, assessores, fiscais, defensores, funcionários e evoca também aos seus povos com o desejo e a busca sincera para garantir a justiça, e especialmente a justiça social, para que possa chegar a todos. Vossa missão, nobre e pesada, pede para se consagrar ao serviço da justiça e do bem-comum com o chamado constante a que os direitos das pessoas e especialmente dos mais vulneráveis sejam respeitados e garantidos. Dessa maneira, vocês ajudam aos Estados que não renunciem a sua mais excelsa e primária função: fazer-se serviço do bem-comum do seu povo. “A experiência ensina que – assinalava João XXIII – quando falta uma ação apropriada dos poderes públicos no econômico, o político ou o cultural, se produz entre os cidadãos, sobretudo em nossa época, um maior número de desigualdades em setores cada vez mais amplos, resultando assim que os direitos e deveres da pessoa humana carecem de toda eficácia prática” (Pacem in Terris, 63).

Celebro essa iniciativa de se reunir, assim como a realizada o ano passado na cidade de Buenos Aires, na qual mais de 300 magistrados e funcionários judiciais deliberaram sobre os Direitos Sociais, à luz da Evangelii Gaudium, Laudato Si’ e o discurso aos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra. Dali saiu um conjunto interessante de vetores para o desenvolvimento da missão que tem entre mãos. Isso nos recorda a importância e, porque não, a necessidade de se encontrar para enfrentar os problema de fundo que vossas sociedades estão atravessando e, como sabemos, não podem ser resolvidos simplesmente por ações isoladas ou atos voluntários de uma pessoa ou de um país, mas sim que reivindica a geração de uma nova atmosfera; isso é, uma cultura marcada pelas lideranças compartilhadas e valentes que saibam envolver outras pessoas e outros grupos até que frutifiquem em importantes acontecimentos históricos (cf. Evangelii Gaudium, 223) capazes de abrir caminhos às gerações atuais, e também às futuras, semeando condições para superar as dinâmicas de exclusão e segregação de modo que a desigualdade não tenha a última palavra (cf. Laudato Si’,53.164). Nossos povos reivindicam esse tipo de iniciativas que ajudem a deixar todo tipo de atitude passiva ou espectadora como se a história presente e futura tivesse que ser determinada e contada por outros.

Nos toca viver uma etapa histórica de transformações onde se põe em jogo a alma de nossos povos. Um tempo de crise – crise: o caráter chinês, riscos, perigos e oportunidades, é ambivalente, muito sábio isso – tempo de crise – na qual se verifica um paradoxo: por um lado, um fenomenal desenvolvimento normativo, por outro uma deterioração no gozo efetivo dos direitos consagrados globalmente. É como início dos nominalismos, sempre começam assim. É mais, cada vez, e com maior frequência, as sociedades adotam formas anômicas de fato, sobretudo em relação às leis que regulam os direitos sociais, e o fazem com diversos argumentos. Essa anomia está fundamentada, por exemplo, em carências orçamentárias, impossibilidade de generalizar benefícios ou o caráter-programático mais que o operativo dos mesmos.

Preocupa-me constatar que se levantam vozes, especialmente de alguns “doutrinadores”, que tratam de “explicar” que os direitos sociais já são “velhos”, estão fora de moda e não tem nada que contribuir para com as nossas sociedades. Desse modo, confirmam políticas econômicas e sociais que levam nossos povos à aceitação e justificativa da desigualdade e da indignidade. A injustiça e a falta de oportunidades tangíveis e concretas por trás de tantas análises incapazes de se colocar aos pés do outro – e digo pés, não sapatos, porque em muitos casos essas pessoas não têm –, é também uma forma de gerar violência: silenciosa, porém violenta ao fim. A normatividade excessiva nominalista, independentista, desemboca sempre na violência.

“Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades – orgulhosas de sua revolução tecnológica e digital – que oferecem inumeráveis prazer e bem-estar para uma minoria feliz…, porém nega o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, e os chama, elegantemente, ‘pessoas em situação de rua’. É curioso como no mundo das injustiças, abundam os eufemismos” (Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28-10-2014). Parecia que as Garantias Constitucionais e os Tratados Internacionais ratificados, na prática, não tem valor universal.

A “injustiça social naturalizada” – ou seja, como algo natural – e, portanto, invisibilizada que somente recordamos ou reconhecemos quando “alguns fazem barulho nas ruas” e são rapidamente catalogados como perigosos ou molestados, termina por silenciar uma história de postergações e esquecimentos. Permitam-me dizer, isso é um dos grandes obstáculos que encontra o pacto social e que debilita o sistema democrático. Um sistema político-econômico, para seu desenvolvimento saudável, necessita garantir que a democracia não seja somente nominal, mas sim que possa se ver moldada em ações concretas que velem pela dignidade de todos os seus habitantes sob a lógica do bem-comum, em um chamado à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres (cf. Laudato si’, 158). Isso exige os esforços das máximas autoridades, e por certo do poder judicial, para reduzir a distância entre o reconhecimento jurídico e a prática do mesmo. Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade.

Quantas vezes a igualdade nominal de muitas das nossas declarações e ações não faz mais que esconder e reproduzir uma desigualdade real e subjacente, que esconde que se está diante de uma ordem fictícia. A economia dos papeis, a democracia adjetiva, e a mídia concentrada geram uma bolha que condiciona todos os olhares e opções desde o amanhecer até o pôr do sol [1]. Ordem fictícia que iguala em sua virtualidade, porém que, no concreto, amplia e aumenta a lógica e as estruturas da exclusão-expulsão porque impede um contato e compromisso real com o outro. Impede o concreto, a tomada do controle do que é concreto.

Nem todos partem do mesmo lugar na hora de pensar a ordem social. Isso nos questiona e nos exige pensar novos caminhos para que a igualdade ante a lei não degenere na propensão da injustiça. Em um mundo de virtualidades, mudanças e fragmentação – estamos na época do virtual -, os Direitos sociais não podem ser somente exortativos ou apelativos, nominais, mas sim que sejam farol e bússola para a estrada porque “a saúde das instituições de uma sociedade tem consequências no meio ambiente e na qualidade de vida humana” (Laudato si’, 142).

Pedem-nos lucidez de diagnóstico e capacidade de decisão frente ao conflito, pedem-nos não nos deixarmos dominar pela inércia ou por uma atitude estéril como quem olha, nega ou anula e segue em frente como se nada tivesse acontecido, lava as mãos para poder continuar com suas vidas. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem horizontes e projetam nas instituições as próprias confusões e insatisfações. O convite é olhar de frente o conflito, sofrê-lo e resolvê-lo transformando-o em elo de um novo processo (cf. Exhort. apost. Evangelii gaudium, 227).

Assumindo o conflito fica claro que nosso compromisso é com nossos irmãos para dar operacionalidade aos Direitos sociais com o compromisso de buscar desarticular todos os argumentos que atentem contra sua concretização, e isto por meio da aplicação ou criação de uma legislação capaz de alçar as pessoas no reconhecimento de sua dignidade. Os vazios legais, tanto de uma legislação adequada como da acessibilidade e do cumprimento da mesma, põem em marcha círculos viciosos que privam as pessoas e as famílias das necessárias garantias para seu desenvolvimento e bem-estar. Estes vazios são geradores de corrupção que encontram no pobre e no meio-ambiente os primeiros e principais afetados.

Sabemos que o direito não é somente a lei ou as normas, mas também uma práxis que configura os vínculos, que os transforma, em certo modo, em “fazedores” do direito cada vez que se confrontam com as pessoas e com a realidade. E isto convida a mobilizar toda imaginação jurídica a fim de repensar as instituições e fazer frente às novas realidades sociais que estão sendo vividas [2]. É muito importante, neste sentido, que as pessoas que cheguem aos escritórios de vocês e a suas mesas de trabalho sintam que vocês chegaram antes delas, que vocês chegaram primeiro, que vocês os conhecem e os compreendem em sua situação particular, mas especialmente reconhecendo-os em sua plena cidadania e em seu potencial de ser agentes de mudança e transformação. Não percamos nunca de vista que os setores populares não são em primeiro lugar um problema, mas parte ativa do rosto de nossas comunidades e nações, eles têm todo o direito à participação e busca e construção de soluções inclusivas. “O marco político e institucional não existe só para evitar práticas ruins, mas também para estimular melhores práticas, para estimular a criatividade que busca novos caminhos, para facilitar as iniciativas pessoas e coletivas” (Carta enc. Laudato si’, 177).

É importante estimular que desde o começo da formação profissional, os operadores do direito possam fazê-lo em contato real com as realidades as quais um dia servirão, conhecendo-as de primeira mão e compreendendo as injustiças nas quais um dia terão que atuar. Também é necessário buscar todos os meios e mecanismos para que os jovens provenientes de situação de exclusão ou marginalização possam chegar eles mesmos a capacitarem-se de modo que possam exercer o protagonismo necessário. Muito se falou por eles, precisamos também escutá-los e dar-lhes voz nestes encontros. Me vem à memória o leit motiv implícito de todo paternalismo jurídico-social: tudo para o povo mas nada com o povo. Tais medidas nos permitirão instaurar uma cultura do encontro “porque nem os conceitos nem as ideias se amam […]. A entrega, a verdadeira entrega, surge do amor aos homens e mulheres, crianças e idosos, povos e comunidades… rostos, rostos e nomes que enchem o coração” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 julho de 2015).

Aproveito esta oportunidade de me reunir com vocês para manifestar-lhes minha preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países por meio do uso indevido de procedimentos legais e tipificações jurídicas. O lawfare, além de pôr em sério risco a democracia dos países, geralmente é utilizado para minar os processos políticos emergentes e tende à violação sistemática dos Direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados é fundamental detectar e neutralizar este tipo de práticas que resultam da imprópria atividade judicial em combinação com operações midiáticas paralelas. Sobre isso não me detenho, mas o julgamento midiático prévio nós todos conhecemos.

Isto nos lembra que, em não poucos casos, a defesa ou priorização dos Direitos sociais sobre outros tipos de interesses, levará vocês a se enfrentarem não só com um sistema injusto mas também com um poderoso sistema comunicacional do poder, que distorcerá frequentemente o alcance de suas decisões, colocará em dúvida sua honestidade e também sua probidade, inclusive podendo julgá-la. É uma batalha assimétrica e erosiva em que para vencer é preciso manter não só a fortaleza mas também a criatividade e uma adequada elasticidade. Quantas vezes os juízes e juízas enfrentam em solidão as muralhas da difamação e do opróbio, quando não da calúnia! Certamente, é preciso um grande caráter para poder superá-las. “Felizes os que são perseguidos por praticar a justiça, porque a eles pertence o Reino dos Céus” (Mt 5,10), dizia Jesus. Neste sentido, me alegra que um dos objetivos deste encontro seja a conformação de uma Comitê Permanente Pan-americano de Juízes e Juízas pelos Direitos Sociais, que tenha entre seus objetivos superar a solidão na magistratura, brindando apoio e assistência recíproca para revitalizar o exercício de sua missão. A verdadeira sabedoria não se consegue com uma mera acumulação de dados – isso é enciclopedismo – uma acumulação que acaba saturando e turvando em uma espécie de contaminação ambiental, mas sim como reflexão, o diálogo, o encontro generoso entre as pessoas, essa confrontação adulta, sã, que nos faz crescer a todos (cf. Carta enc. Laudato si’, 47).

Em 2015 eu dizia aos integrantes dos Movimentos Populares: Vocês “têm um papel essencial, não só exigindo ou demandando, mas principalmente criando. Vocês são poetas sociais: criados do trabalho, construtores de moradias, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado mundial” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015). Estimados magistrados: Vocês têm um papel essencial; permitam-me que lhes diga que vocês também são poetas, são poetas sociais quando não têm medo “de ser protagonistas na transformação do sistema judicial baseado no valor, na justiça e na primazia da dignidade da pessoa humana”[3] sobre qualquer outro tipo de interesse ou justificativa. Gostaria de terminar dizendo-lhes: “Felizes os que têm fome e sede de justiça; felizes os que trabalham pela paz” (Mt 5,6.9). Muito obrigado.

[1] Cf. Roberto Andrés Gallardo, Derechos sociales y doctrina franciscana, 14. [2] Cf. Horacio Corti, Derechos sociales y doctrina franciscana, 106. [3] Nicolás Vargas, Derechos sociales y doctrina franciscana, 230.

Fonte: Jornal GGN

Leia também: