Argentina e Uruguai vão às urnas em uma América do Sul rebelde
O próximo final de semana, último de outubro, será de grande importância para a América Latina e em especial para a América do Sul. A população do extremo Cone Sul, da Argentina e do Uruguai, vai às urnas para eleições presidenciais em um contexto de uma região rebelde e que mais uma vez dá sinais de não se acomodar aos ditames neoliberais.
Por Ana Prestes*
Em um ano que começou com o Grupo de Lima se sentindo confortável e dando como certo o golpe em Maduro, com sua retirada da presidência da Venezuela, não imaginávamos que chegaríamos a ver outras gestões, aparentemente consolidadas, literalmente nas cordas. Pois é assim que estão hoje Macri, Piñera e Moreno. E do autoproclamado Guaidó já mal se fala.
As eleições na Argentina são emblemáticas. Pois foi justamente ali, em 2015, que ficou marcado o ponto de viragem de um ciclo progressista na América Latina iniciado no começo do século com as sucessivas vitórias de candidatos progressistas, como Chavez, Lula, Kirchner e outros. Apesar de naquela altura da eleição de Macri já terem ocorrido os golpes em Honduras (2009) e Paraguai (2012), a derrota de Cristina Kirchner representou um importante step back – e com voto popular – para uma América Latina que aspirava se reinventar a partir de uma chave de igualdade e justiça social para as grandes massas empobrecidas da região. Muitos se apressaram em decretar o fim de um ciclo ali mesmo, enquanto Macri era empossado presidente.
Quem prometia trazer o novo, deixou milhões de “novos pobres”, cerca de 5 milhões de pessoas foram parar abaixo da linha de pobreza. O país passou por um período de acentuada deterioração econômica, social e cultural. A redução da qualidade de vida foi geral. Macri recorreu ao FMI e a um endividamento que não conseguiu tirar o país do fundo do poço, pelo contrário parece o ter afundado mais. Quando começou seu governo, a dívida total do Estado era de 28% do PIB, hoje é de mais de 100%. A herança é de um país com mais de 35% de pessoas na pobreza, inflação de 57%, o desemprego oficial é de 10%, mas quase 30% estão procurando emprego, houve uma dramática redução da classe média. A resposta virá nas urnas e muito provavelmente Alberto Fernández e Cristina Kirchner vencerão ainda no primeiro turno.
Outro país que abandonou o curso de resistência ao neoliberalismo e traiu o projeto progressista eleito pelo povo foi o Equador, com Lenin Moreno. Anteriormente membro do Alianza País, partido do então presidente Rafael Correa, que conduziu uma série de transformações no país sob o lema da Revolução Cidadã, Moreno, uma vez eleito, tomou para si o partido e as rédeas do governo. Perseguiu anteriores correligionários, se aproximou dos EUA, tomou empréstimo do FMI e fez retroceder um processo dando razão às ameaças de “restauração conservadora”, pedra já cantada pelo próprio Correa para a América Latina, enquanto ainda estava no poder. Mal sabia o que os esperava, um sucessor traidor. O país viveu multitudinárias manifestações nas últimas semanas, capazes de fazer o presidente se retirar do Palácio Carondelet, sede do governo em Quito, e se instalar em Guayaquil, fora do alvo dos protestos que o cercavam na capital. Por dias a Assembleia parlamentar ficou inoperante, tomada pelos manifestantes, refinarias e petroleiras foram tomadas, edifícios dos ministérios, parques públicos viraram acampamento dos manifestantes. A revolta, duramente reprimida, foi em resposta a uma série de medidas de arrocho econômico, em especial o fim do subsidio aos combustíveis e seu inescapável efeito cascata. O presidente Moreno revogou o decreto que incendiou as ruas, mas segue a tensão no país.
Na outra esquina do continente, outro presidente também experimentou e ainda vive sob a fúria das ruas. Trata-se de Sebastian Piñera, presidente do até então aparentemente estável e economicamente promissor Estado do Chile. Exemplo da execução de medidas neoliberais desde o final dos anos 70, um país que privatizou literalmente tudo, explodiu em revolta social há poucos dias após um aumento de 30 pesos (menos de 20 centavos de reais) nas tarifas de transporte público. O sistema de aposentadorias e pensões chileno é talvez o melhor exemplo do que a população do país enfrenta – até porque ele circulou por aqui como modelo a ser seguido pelos brasileiros. Um sistema de capitalização administrado por fundos privados que na verdade gerem um dinheiro dos trabalhadores que foi revertido para tudo, menos para aposentados que se encontram grande parte na miséria. A reação aos protestos foi violenta e dramática, com declaração de guerra, estado de emergência e toque de recolher. Já são quase vinte mortos e enquanto escrevo estas linhas leio que se somaram caminhoneiros aos protestos.
Enquanto Equador e Chile ardiam nas ruas de inconformismo popular e violenta repressão militar, em outra nação sul-americana o povo foi às urnas no último dia 20. Trata-se da Bolívia, um dos países que mais tem se beneficiado do ciclo progressista inaugurado no início do século e que é presidido pelo líder indígena Evo Morales há três gestões presidenciais seguidas. A Bolívia já foi um dos países mais desiguais da região, se aproximando do Haiti e Honduras, com uma pequena elite exploradora dos povos aymara, quéchuas, guaranis e outros originários. Antes de Evo, cerca de 90% dessa população originária vivia na pobreza. Para pegarmos só um dos índices, um importante por sinal, o salário mínimo aumentou em 127% desde a chegada de Morales e Linera ao poder, passando a ser o segundo entre os países da América Latina. O crescimento econômico boliviano é hoje o maior da região em torno de 4%, uma nova constituição firmou um estado plurinacional com respeito aos diversos povos e etnias, as mulheres são hoje mais da metade do parlamento, em parceria com a China a infraestrutura do país hoje é outra. Mas a Bolívia não ficou imune à onda de “restauração conservadora” e no último domingo a vitória de Evo foi apertada, por pouco mais de 10% de vantagem sobre seu principal opositor Carlos Mesa. Do mesmo modo como foi feito com a eleição venezuelana que deu um segundo mandato a Maduro, na Bolívia as forças conservadoras do continente contestam o resultado eleitoral e instrumentalizam a OEA para impor um segundo turno absolutamente arbitrário. A situação está em aberto e vai depender de uma correlação de forças que hoje está mais desfavorável para os países do Grupo de Lima, preocupados em salvar seus próprios governos.
No Uruguai, as forças de esquerda vão enfrentar cenário semelhante ao das eleições na Bolívia. Assim como Evo tenta seu quarto mandato, também os partidos reunidos na Frente Ampla tentam a aprovação popular para uma quarta gestão. As mudanças no país também foram profundas após 15 anos de governos em que se alternaram dois mandatos de Tabaré Vazquez e um de Pepe Mujica, que agora se postula como senador. O candidato aprovado pelas internas da FA, Daniel Martinez, leva a bandeira de um legado econômico importante, mas também o desgaste de quem já está há tanto tempo no governo e é atacado por temas sensíveis como legalização da maconha, direito ao aborto e avanços dos direitos dos homossexuais. Os temas de contraposição não são muito diferentes do Brasil que elegeu Bolsonaro com uma narrativa moralista e de fundamentalismo religioso que tenta derrubar na ordem dos costumes quem governou especialmente de olho em diminuir a desigualdade econômica e desenvolver o país. Um dos maiores trunfos dos governo da FA é a estabilidade do crescimento econômico do país em uma taxa média de 4% entre 2003 e 2014, assim como o aumento real do salário mínimo em 55% em 12 anos, além do índice de pobreza que chegou a 9,7%, o mais baixo nível em 30 anos.
O ano de 2019 chega ao fim de forma inusitada para a América do Sul. De janeiro a março tivemos a mídia tomada pela “certeza” da queda de Maduro e a tão esperada tomada de poder do autoproclamado Juan Guaidó. Na esteira desse tiro certeiro, o Grupo de Lima se arvorou como o farol da região e se deu ao luxo de ampliar alguns debates inclusive com representantes dos países de governos adeptos do bolivarianismo como demonstração de benevolente atitude, mas com manche em mãos. Chegou-se a falar abertamente de intervenção militar na Venezuela com anuência do Brasil de Bolsonaro e da dupla colombiana Duque/Uribe que surfou na onda de “estamos colocando ordem na região andina”. Bolsonaro e seu filho ex-futuro-embaixador nos EUA foram a Trump oferecer serviços de perseguição jurídica e econômica a Cuba e Venezuela em uma espécie de extensão da lava-jato made in Brazil a ser coordenada por Moro com seus procuradores devidamente treinados nos states.
Aos poucos o cenário começou a mudar e hoje o que se vê é um uribismo ainda agressivo, mas recolhido em suas próprias tensões e emaranhados jurídicos internos, um Trump que enfrenta a ameaça de impeachment em casa, um Bolsonaro mundialmente desacreditado e que foi perdendo amigos como Netanyahu em Israel, Salvini na Itália e até mesmo Marito do Paraguai, pendurado no poder, vitimado pelas trapalhadas bolsonarianas com Itaipu. Piñera e Moreno que ajudaram a destruir a Unasul para fundar a Prosul enfrentam seus próprios fantasmas e não estão com muito tempo para colaborar com a desintegração regional. O Mercosul pode ser implodido. A Amazônia foi posta em chamas e agora há óleo petroleiro cru em toda a costa nordeste brasileira. Enquanto isso, forças progressistas da Bolívia, Argentina e Uruguai tentam assegurar o freio na onda neoliberal e conservadora e mais uma vez equilibrar o jogo entre as forças políticas da região. Vejamos o que dirão as urnas.
*Ana Prestes é socióloga, cientista política e analista internacional