Neoliberalismo e o exemplo da China na crise econômico-sanitária
Antes do aparecimento do novo Coronavírus (Covid-19) a economia mundial já passava por um momento de fragilidade e turbulência. Em 2019 o crescimento do PIB global ficou em 2,9%, seu nível mais baixo desde 2008 quando eclodiu a crise financeira.
Por Marcelo Pereira Fernandes*
A turbulência e o baixo crescimento são em parte decorrentes da guerra comercial iniciada no começo de 2018 entre Estados Unidos e China as duas maiores economias. As disputas comerciais foram desencadeadas principalmente a partir das práticas protecionistas que têm marcado a política norte-americana nos últimos dois anos, provocando impactos negativos sobre todo comércio internacional. Por sua vez, a fragilidade econômica mundial também é consequência dos problemas financeiros estruturais explicitados com a crise de 2008, e que não foram devidamente enfrentados pelas economias centrais. Na época, a severidade da crise – seguramente a pior desde a crise de 1929 – lançou no ar uma série de pronunciamentos contrários a desregulamentação financeira levadas a cabo desde os anos 1980. O então presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou na reunião do G-20 em abril de 2009 que: “(…) we are saying that without new regulation there won’t be confidence and without confidence there will be no recovery. This is a major non-negotiable objective (…estamos dizendo que sem nova regulamentação não haverá confiança e sem confiança não haverá recuperação. Este é um importante objetivo não negociável). “
De fato, após a crise de 2008 o multilateralismo parecia ganhar força. Os BRICS se consolidavam como bloco anti-hegemônico e o G-20 se constituiu como principal fórum para discutir temas econômicos internacionais. Na América do Sul o Brasil projetava sua liderança, reduzindo a influência norte-americana e o Mercosul caminhava como bloco que, para além das questões econômicas, se fortalecia como projeto de integração regional (Fernandes; Wegner, 2017).
Essa conjuntura reforçou o apelo por iniciativas de reforma da arquitetura financeira mundial de maneira coordenada. Até o Fundo Monetário Internacional (FMI) que desde os anos 1990 se notabilizou como propagandista radical da abertura financeira, passou a ter uma visão mais favorável ao controle de capitais. O governo dos Estados Unidos propôs medidas mais profundas com a Lei Dodd/Frank de Reforma de Wall Street e de Proteção a Consumidores assinada em julho de 2010, que criava regras amplas para o mercado financeiro. A reforma continha pontos ambiciosos como a “regra de Volcker”, que dificultava a criação de bancos universais nos Estados Unidos. Com isso, alguns mais otimistas chegaram a anunciar o fim do neoliberalismo.
Porém, passados os piores momentos da crise que abalou o capitalismo mundial, a adoção de políticas coordenadas que favoreceriam uma nova arquitetura financeira foi ficando cada vez mais distante. Ao contrário, ocorreram uma série de conflitos entre Estados Unidos e Europa a respeito da regulação dos mercados financeiros que, imaginava-se, o G-20 deveria administrar (Carvalho, 2012, p.27). Nos Estados Unidos, a lei Dodd-Frank não só ficou aquém dos seus resultados esperados como, em grande parte, foi revogada em 2018 por iniciativa do presidente Donald Trump que cedeu às pressões da haute finance.
A pandemia foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março numa conjuntura econômica frágil, portanto. E o principal problema do enfrentamento da Covid-19 é que ele atinge diretamente a atividade econômica, pois as medidas necessárias para conter o surto da doença tendem a reduzir drasticamente a demanda e a oferta de mercadorias e serviços, o que causará uma recessão de proporções difícil de prever. Assim, o dilema com que todos os governos estão se defrontando é conciliar o combate à doença, impedindo sua disseminação e, ao mesmo tempo, manter algum nível de atividade econômica e conter o aumento do desemprego.
Nesse sentido, junto com as medidas de distanciamento social a fim de impedir a propagação do vírus, os governos passaram a executar políticas fiscais e monetárias expansionistas. Os bancos centrais reduziram as taxas de juros e injetaram liquidez no sistema bancário. Inicialmente o FED injetou 1,5 trilhão de dólares no mercado, mitigando a instabilidade e a corrida para o dólar (flight-to-quality) que ocorre em momentos de crise internacional. Ou seja, as mesmas ações postas em prática na crise de 2008. Isso foi fundamental para o Brasil, por exemplo, pois antes da pandemia o país já enfrentava uma fuga de capitais que em 2019 foi a maior registrada nos últimos 38 anos. Em relação à política fiscal, estão sendo adotadas medidas de corte de impostos de empresas, políticas de aumento dos gastos, visando a expansão da demanda agregada, entre outras medidas O FMI tenta dar alguma resposta, garantindo empréstimos bilaterais, além de uma política de perdão de dívidas dos países pobres.
Desse modo, quase que por milagre, governos de vários matizes viraram gastadores, passando ao largo de qualquer disciplina fiscal. Até o Financial Times, altar da plutocracia financeira internacional, resolveu surpreender. Em editorial no último três de abril, o jornal critica os governos que permitiram o trabalho precarizado e mal regulamentado, pede que se rediscuta as políticas radicais que reduziram o papel do Estado na economia nas últimas quatro décadas e afirma até que os privilégios dos mais ricos deverão ser questionados.
Portanto, não restam dúvidas que esta crise colocou novamente em xeque os pilares do neoliberalismo. A questão é se isso significará a sua morte, como se passou a apontar. A experiência recente com a crise de 2008 mostra que é melhor ser cauteloso. Mas uma coisa parece certa, o peso da China no sistema internacional será maior. A China foi o primeiro país a enfrentar o Covid-19 e demonstrou uma capacidade de combate notável. As medidas de isolamento implementadas pelas autoridades chinesas conseguiram conter a doença, e em 12 de março o governo anunciou que o pico do Covid-19 tinha passado. Impediram que o Covid-19, iniciado em Wuhan, se espalhasse para outras províncias importantes, como a capital Beijing. Com população de um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas, caso o controle da pandemia fracassasse, as consequências negativas sobre o país e provavelmente para restante do mundo seriam catastróficas. Além disso, passaram a produzir mascarás de proteção e respiradores numa quantidade capaz de atender várias partes do mundo. Isso deveria ter servido de exemplo a governos como dos Estados Unidos e da Itália que inicialmente buscaram minimizar a crise sanitária, e agora se encontram numa situação gravíssima que se traduz na afirmação abjeta de Trump: “Precisamos das máscaras. Não queremos outros conseguindo máscaras”.
A China tem sido o principal motor do crescimento mundial. Desde a crise de 2008, ao contrário de grande parte da Europa que embarcou em políticas de austeridade econômica, a China baseada na superioridade de sua economia planejada – o chamado socialismo com características chinesas – manteve elevado nível de investimentos em saúde e educação, realizou grandes obras em infraestrutura, e assim deverá jogar papel central na recuperação econômica. Nesse sentido, a saída da crise trará um reposicionamento da China no tabuleiro global e consequentemente uma resposta contrária dos Estados Unidos que deverá endurecer o seu protecionismo e aumentar ainda mais a tensão entre os dois países. Isso trará ainda mais turbulência ao sistema capitalista mundial, ainda envolto com problemas mal resolvidos da crise de 2008.
* Doutor em Economia e professor do departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Referências
CARVALHO, Fernando Cardin (2012). “O G20 e a Reforma do Sistema Financeiro: Possibilidades e Limitações”. In: CINTRA, Marcos Antônio Macedo, GOMES, Keiti da Rocha (Orgs). As Transformações no Sistema Financeiro Internacional. Brasília: Ipea.
FERNANDES, Marcelo Pereira; WEGNER, Rúbia Christina (2018). “Regional Integration: Mercosur on the Verge of Political Orientations”. Austral Brazilian Journal of Strategy & International Relations, v. 7, p. 245-263.
FINANCIAL Times (2020). Virus lays bare the frailty of the social contract. Editorial, 3 de abril.. Disponível em: <https://www.ft.com/content/e26524a5-c868-451c-a7d7-a91627a1722c>. Acesso em: 4 de abril de 2020.
FRANCE in Singapore (2009). “G20. Summit: Statements by President Nicolas Sarkozy”. Disponível em: < https://sg.ambafrance.org/G20-Summit-Statements-by-President>. Acesso em: 2 de abril de 2020.
Fonte: Revista Mundorama