Luta dos povos

Chega ao Brasil navio com fosfato do Saara Ocidental espoliado pelo Marrocos

O navio Golden Bonnie partiu do porto de El Aiún —no Saara Ocidental ocupado pelo Marrocos— e atracou na segunda-feira (13) no porto de Santos no Brasil, trazendo fosfato extraído e exportado pela estatal marroquina OCP. Há uma década no Brasil, onde planeja aumentar operações, a empresa comercializa o recurso com produtoras de fertilizantes. O caso não é isolado e demanda exame e denúncia.

Por Moara Crivelente*

Embora haja reservas em território marroquino, parte do fosfato e da fosforite (pedra de fosfato) comercializada como marroquina é extraída de território ocupado saarauí e exportada pelo porto de El Aiún. Mas a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus estados membros não reconhecem a soberania do Marrocos sobre o Saara Ocidental, o que torna a atividade ilegal, espoliação.

O território foi colonizado pela Espanha e, desde 1963, é considerado pela ONU pendente de descolonização através do exercício do direito à autodeterminação pelo povo saarauí. O exercício é porém impedido pelo Reino do Marrocos desde que este passou a ocupar e recolonizar a região, em 1975. Naquele mesmo ano, o Tribunal Internacional de Justiça emitiu parecer em que afirma não haver bases que sustentem a reivindicação do território pelo Marrocos.

Em 1976, a Frente Popular para a Libertação de Sakía el Hamra e Rio de Ouro (Polisario) proclamou a República Árabe Saarauí Democrática (RASD). A RASD é reconhecida por dezenas de países, mas não pelo Brasil, que considera esta uma disputa a ser resolvida diplomaticamente. Em 1991, um cessar-fogo suspendeu os confrontos entre a Polisario e o Marrocos para que uma consulta fosse realizada, sob monitoramento da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso). Passadas três décadas, o acordo não foi implementado. O Brasil participa da missão de manutenção da paz da ONU e até já liderou suas tropas. Portanto, tampouco reconhece a soberania marroquina sobre o território.

Espólio dos recursos saarauís e a ocupação marroquina

Segundo a página do OCP (Office Chérifien des Phosphates), suas atividades estão concentradas em três regiões, com quatro pontos em Khouribga, três em Gantour e um em Bu Craa, que fica no Saara Ocidental. A empresa tem em curso ainda um projeto de “desenvolvimento industrial” que alega “contribuir para o desenvolvimento socioeconômico das regiões sul do Marrocos: Guelmim – Oued Noun, Laâyoune – Sakia El Hamra e Dakhla – Oued Ed-Dahab” (Laâyoune é a grafia francesa de El Aiún). Ali o OCP opera através da companhia Phosboucraa, estabelecida pela estatal espanhola INI em 1962, com 65% das ações adquiridas pela OCP em 1976 e o restante, em 2002.

Embora a política de regionalização marroquina pretenda apagar a fronteira entre o seu território e o ocupado, à exceção de uma parte, as regiões mencionadas no projeto pertencem ao Saara Ocidental. Não é nova a política ou pretexto do desenvolvimento para consolidar a colonização. Mas que a política marroquina de ocupação colonial do território saarauí repercuta na atividade comercial brasileira, em tão importante setor como a agricultura, não é de menor relevância. Em 2019, o diretor do OCP no Brasil o demonstrava em números.

Em entrevista à Agência de Notícias Brasil-Árabe (Anba), Olavio Takenaka contava que o Grupo OCP reforça sua presença no país, onde atua desde 2010 com filiais em Paranaguá (Paraná), Rio Grande e Itaqui (Rio Grande do Sul), Rondonópolis (Mato Grosso) e Aratu (Bahia), e dois escritórios na capital paulista. O plano era a inauguração de armazéns em Goiás, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina em 2020 e outros em 2021. Segundo Takenaka, o OCP é o maior fornecedor de fósforo do Brasil, com 40% de participação nas importações brasileiras.

A empresa busca aumentar a produção no Marrocos —e Saara Ocidental— para “atender as demandas ao redor do globo.” Informes do Grupo OCP relatavam um lucro bruto de USD 1,85 bilhão no primeiro semestre de 2019. Estima-se que apenas alguns países têm fosfato e a demanda mundial tem aumentado rapidamente —Marrocos sozinho controla 75% das restantes reservas mundiais. De acordo com informes à Bolsa de Valores Irlandesa em 2014, a empresa marroquina relatava 500 milhões de toneladas de fosfato nas reservas de Bu Craa, com a extração dependente da infraestrutura. O Marrocos construiu, por isso, uma grande esteira de transporte que leva o recurso extraído até El Aiún e outras instalações costeiras.

Outros recursos são explorados pelo Marrocos no Saara Ocidental, como o proveniente da pesca. As águas territoriais saarauís conformam um dos maiores bancos pesqueiros do mundo. Até 2016 estimava-se, por baixo, que os 40 anos de ocupação renderam ao Marrocos USD 1,34 bilhão no setor, sobretudo operado em exploração intensiva e possivelmente insustentável desde Dakhla. Os dados aparecem no livro editado por Damien Kingsbury, Western Sahara: International Law, Justice and Natural Resources (2016).

Segundo a Autoridade de Petróleo e Mineração da RASD, prospecções já realizadas em acordo com a australiana Hanno Resources mostraram que o Saara Ocidental pode ser rico ainda em minério de ferro, ouro, metais básicos e urânio, além da mina de fosfato de Bu Craa. Estes recursos serão chave na consolidação do estado saarauí.

Por isso, deve ficar clara a ligação direta entre a exploração sustentando a ocupação e colonização do território pelo Marrocos. O conflito direto pode ainda ser reativado na falta de progresso diplomático. Qualquer participação na espoliação é um estímulo para a manutenção do estado de coisas e tem repercussões inclusive no âmbito do direito internacional humanitário, que regula conflitos armados e ocupação militar, por exemplo. A responsabilidade criminal de indivíduos ou estados pela participação neste comércio ilegal é analisada por especialistas à luz do direito internacional e do doméstico em diversos países.

Estratégia saarauí de proteção dos recursos 

O presidente da Associação para o Monitoramento dos Recursos e Proteção Ambiental do Saara Ocidental (AREN) Lahcen Dalil, que fez a denúncia, relata por telefone que, no porto de El Aiún, ao questionar sobre o destino do Golden Bonnie (IMO: 9400875) —de bandeira das Ilhas Marshall— foi informado apenas de que o cargueiro partia com 32.000 toneladas de fosfato rumo ao Brasil. A página de monitoramento Marine Traffic confirma a chegada do navio no porto de Santos em 13 de abril. Embora ainda não haja mais informações sobre este caso, importantes precedentes devem soar o alerta.

Em 2017, dois casos de impedimento de navios vindos de El Aiún com recursos exportados pelo Marrocos foram proeminentes. O Ultra Innovation foi detido pelas autoridades panamenhas a pedido da RASD, que o Panamá reconhece desde 1978, mas a corte local rejeitou o caso alegando evitar politização. No cargueiro estavam 50 mil toneladas de fosfato exportado pelo OCP ao Canadá, segundo a agência de notícias Reuters.

No mesmo ano, o NM Cherry Blossom carregava 55 mil toneladas de fosfato rumo à Nova Zelândia, mas foi detido na África do Sul e lá ficou por um ano, até que a Suprema Corte determinou que a carga fosse comprada da RASD em leilão, mas o prazo passou sem que a compra fosse feita. Uma companhia britânica então pôde adquiri-la pagando apenas pelas taxas jurídicas para devolvê-la ao OCP. Ainda, as companhias de transporte avaliam formas de fazer o percurso sem parar para abastecer, evitando a detenção dos cargueiros e eventual responsabilização jurídica. Assim mesmo, estabelecer o precedente foi o objetivo alcançado e a Polisario deve manter a estratégia, afirmou o advogado e diretor da Autoridade de Petróleo e Mineração da RASD Kamal Fadel à Reuters na época.

Em 2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia já havia emitido parecer positivo à queixa apresentada pela Polisario sobre a exploração dos recursos saarauís sobretudo devido a acordos de liberalização comercial entre a UE e o Marrocos. Uma nova batalha segue pela implementação de um atestado de proveniência dos produtos exportados pelo Marrocos. O Tribunal decidiu que os acordos não podem envolver recursos provenientes do Saara Ocidental explorados sem o consentimento do povo saarauí.

Tal constatação não resulta de genéricas avaliações éticas, mas de resoluções e declarações da ONU relativas a povos não autônomos —como a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais na resolução 1514 da Assembleia Geral, de 1960. Em 1958 a Assembleia Geral demandava maior atenção ao direito à autodeterminação e à soberania dos povos sobre seus recursos, que ficou plasmado na resolução 1803 (XVII) de 1962. Em dezembro de 2016, o órgão reforçava sua posição sobre o tema em outra resolução que demandava a adoção de uma série de medidas naquele sentido.

Mas além da resistência e da exigência do referendo de autodeterminação, a muitos saarauís no território ocupado resta competir por empregos com a população de colonos marroquinos incentivados a assentar na região ao longo dos últimos 45 anos, enquanto o governo marroquino alega contribuir para o seu desenvolvimento. Outra parte da população subsiste nos campos de refugiados no deserto argelino através da cooperação e escassa assistência humanitária enquanto consolida as instituições do seu estado nacional, fundamentalmente, desde o refúgio. Desde estes locais de resistência e a nível internacional, saarauís e solidários têm lançado campanhas diversas, denunciando a espoliação e demandando ação.

A proteção dos direitos dos povos não autônomos sobre os seus recursos é chave; a exploração alicerça a política colonial e de ocupação dos seus territórios e, em grande medida, financia ou consolida a prática. A comercialização desses recursos não pode ser normalizada; deve ser monitorada e rechaçada por qualquer ator envolvido ainda que indiretamente, pelo respeito ao direito do povo saarauí à autodeterminação ou pelo simples compromisso com o direito internacional.

Em 21 de abril o Cebrapaz realiza um seminário virtual com o representante da Frente Polisario junto à ONU Sidi Omar. Inscreva-se clicando aqui.

* Por Moara Crivelente, cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ)

Fonte: Cebrapaz

 

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