Significado histórico da derrota dos EUA na Ásia Central
Desde o último domingo, dia 15 de agosto, muito antes do que as tais agências de “inteligência” previram, o grupo guerrilheiro islâmico – mujaredins – chegaram à Cabul, cercando a cidade e tomando o poder, com a simbologia de deixarem-se fotografar na cadeira do “presidente” do país, no Palácio Presidencial, cujo “titular” havia fugido do país, com milhões de dólares, e tendo se asilado em Dubai nos Emirados. Há muitos aspectos a serem esclarecidos, estudados, analisados nesse processo, em especial os seus desdobramentos, que é o que pretendemos neste nosso novo ensaio.
Prof. Lejeune Mirhan *
Neste meu novo ensaio, não pretendo contar a história milenar da presença da civilização na região da Ásia Central, muito menos da formação do atual Afeganistão. Isso demandaria extensa pesquisa e não deve ser foco de nosso trabalho. Tampouco vou descrever a luta dos mujahedins contra a ocupação soviética (1979-1989), nem escreverei sobre o curto governo dos Talibãs (1996-2001) e mesmo os últimos 20 anos de ocupação – a mais longa já realizada – pelos EUA.
O foco de minha análise será o dos últimos dias que antecederam a queda de Cabul, os desdobramentos, a possibilidade de formação de governo, as implicações regionais e na geopolítica mundial que, alguns autores têm dito, afetará a correlação de forças em plano mundial.
Esta presente análise foi feita em função dos últimos acontecimentos que ocorreram no Afeganistão, com a tomada da Capital Cabul e a fuga do presidente títere, em um abandono completo e com muita rapidez, e a antecipada retirada das tropas dos Estados Unidos. Foi um desmonte e desmoronamento tanto do estado nacional, quanto das tão festejadas tropas regulares afeganes, estimadas em 300 mil soldados “treinados pelos EUA e muito bem armados” (sic).
A imagem nos faz lembrar – e não há como não compararmos – com aquela de abril de 1975, quando os Estados Unidos saíram do Vietnã e foram fragorosamente derrotados após 12 anos de agressões. Nós temos hoje imagens que fazem essa comparação, com os helicópteros retirando o pessoal diplomático, não só dos Estados Unidos, como de várias embaixadas de outros países que mantinham relações diplomáticas com o Afeganistão. Não se sabe daqui para frente como as coisas ficarão.
Mas, as verdadeiras e mais marcantes imagens – que comprovam mesmo a dimensão e extensão da derrota imperialista – são as imensas filas para embarcar pela rampa traseira dos imensos aviões cargueiros militares estadunidenses, os C-17.
São aviões fabricados pela Boeing e denominados Globemaster III, fabricados de 1991 até 2015, tendo, alguns deles, deixado Cabul com a sua capacidade máxima de transporte de passageiros que é de 830 pessoas. É avião de carga, de transportes de tropas (paraquedistas e soldados regulares), bem como transporte médicos com macas.
A imagem do helicóptero no telhado da embaixada em Saigon é muito pequena se comparada com as imagens do aeroporto de Cabul, ainda controlado pelos EUA até o dia 31 de agosto. E os Talibãs estão irredutíveis quanto à não extensão desse prazo final dado para a desocupação do aeroporto.
Introdução
O grupo Talibã significa “estudantes” na língua Pashtu (uma das línguas faladas no Afeganistão). Eles não surgem no Afeganistão, mas no Paquistão, em 1994. Há muitas pessoas fazendo uma análise errônea dizendo que o Talibã, tanto quanto a Al-Qaeda, do Osama Bin Laden são crias dos Estados Unidos e da CIA .
Esta informação não está correta. A Al-Qaeda surge em 1988, também no Paquistão, essa sim, com apoio integral dos Estados Unidos. Nos 10 anos que esses mujahedins combateram a ocupação soviética, a CIA/EUA treinaram 90 mil pessoas, na chamada Operação Ciclone (1). Portanto, Osama Bin Laden e o seu grupo terrorista este sim, são crias da CIA, disso não se pode ter dúvida.
Eles foram apoiados, treinados e armados pelos Estados Unidos, com o intuito claro de derrotar a União Soviética que – a pedido do governo socialista afegão em 1979, advinda da chamada Revolução Saur – pediu a vinda de tropas pela solidariedade internacional, no sentido de que o governo, que era de esquerda, onde havia liberdade para as mulheres, liberdades políticas e democráticas e nenhuma restrição.
Aquele governo estava sendo acossado por esses que eram apresentados pela imprensa estadunidense que eles eram os freedom fighters – lutadores da liberdade (sic) – ou ainda freedom warriors – guerreiros da liberdade – mas que, na verdade, posteriormente viriam a ser terroristas sob o comando da Al-Qaeda, cuja atividade em todo mundo é exclusivamente terrorista. E liderados pelo terrorista saudita, Osama Bin Laden, acusado de ser o mentor dos ataques às torres gêmeas em Nova York, nos EUA.
Eles foram, então, financiados durante dez anos (de 1979 a 1989), até quando a União Soviética saiu de vez do país e viria a acabar dois anos depois, em dezembro de 1991. Portanto, a criação do grupo Talibã se dá apenas em 1994 – portanto cinco anos depois que a URSS deixa o Afeganistão. A assunção deles ao poder no Afeganistão se dá um tempo depois, em 1996.
Eles vão governar o país no vácuo político muito grande que existiu entre a saída das tropas soviéticas em 1989 até a tomada de poder real em 2006. Os Talibãs não eram reconhecidos por quase ninguém no mundo. Apenas três países reconheceram o grupo como governo do Talibã no Afeganistão: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes. Este último, atualmente, está entre os países que consideram o grupo “terrorista” (sic).
No dia 7 de outubro de 2001, os Estados Unidos invadem o país. Lembremos que as tropas dos Estados Unidos chegaram apenas 26 dias após os ataques às Torres Gêmeas, que ocorreram no dia 11 de setembro daquele ano.
Eles chegaram e ocuparam o país inteiro, em uma operação fulminante. Os Estados Unidos e outros países aliados chegaram a ter 150 mil soldados no país, um dos mais pobres do mundo, com um PIB de 20 bilhões de dólares (2). Há estimativas de que nestes 20 anos os Estados Unidos gastaram dois trilhões de dólares e saem de lá derrotados.
O contexto da vitória talibã
Eu não estou de acordo com a classificação do grupo Talibã como terrorista. Terrorismo é praticado pela Al-Qaeda. Eles são resistentes, guerrilheiros muçulmanos fundamentalistas, uma guerrilha camponesa. Com uma formação política baixa, mas com elevada compreensão da luta anti-imperialista.
Parte dos comentários que li nos primeiros dias da tomada do poder em Cabul, escritos por parte de gente de nosso próprio campo, compara o Talibã com a Al Qaeda, chama-os abertamente de terroristas e – o que é pior – afirmam que eles foram mesmo criados pelos EUA e pela CIA.
Um absurdo tudo isso. Típica posição de alguém que se aventura a ser “analista internacional” sem saber um mínimo da história de um país e de um povo, de sua trajetória de luta (3). Com a desinformação, acabam na prática apoiando a ocupação estadunidense. É lamentável tudo isso. Ataca-se o grupo guerrilheiro da resistência com a mesma intensidade – e até mais – como atacam o imperialismo estadunidense.
Devemos sim, com todas as nossas forças, comemorar a fragorosa derrota do imperialismo estadunidense. Quanto a isso não podemos ter dúvidas. Tenho dito que, quando Biden venceu nos EUA em novembro de 2020, parte das pessoas que foram para as ruas fazer festa não foi por causa da sua vitória, mas pela derrota do fascista Donald Trump.
Da mesma forma digo sobre a derrota de Nethanyahu. A festa nas ruas de Tel Aviv não foi pela formação de um governo oposicionista – que não mudou nada para os palestinos – mas sim pela fragorosa derrotada do fascista, que governou Israel por longos 12 anos.
Nós não comemoramos a ascensão ao poder dos Talibãs. Sabemos que, no passado de há 20 anos – ainda vivo na memória de todos nós, em especial das mulheres – eles oprimiram mulheres enquanto governaram por cinco anos. Por isso é que nós temos que ter uma elevada consciência política do que está acontecendo, e saber separar esses dois aspectos. Isso é dialético.
Portanto, não se trata de comemorar a tomada do poder pelos Talibãs. Mas, com relação a isso, temos que ter cautela e aguardar a formação do governo – esperada para início de setembro após a desocupação completa dos EUA do aeroporto, onde suas tropas ainda acantonadas (acampadas) para assegurar a repatriação dos seus colaboradores (na verdade, colaboracionistas).
Então, a imagem dos EUA saindo da sua Embaixada, agora é muito mais dramática do que foi a saída de Saigon, no Vietnã. A simbologia se faz, como disse, com as imensas filas de colaboracionistas querendo sair do país, entrando nos cargueiros militares do império. O que essas fotos e imagens da fuga de Cabul nos ensina? Que o imperialismo estadunidense não é invencível. Como não foi em 1975, no Vietnã.
Nós já sabíamos disso quando ocorreu a Revolução Chinesa, quando ocorreu a Revolução Cubana ou quando ocorreu a Revolução na Nicarágua, no Vietnã e em tantos outros lugares. Então, nós sabemos que eles não são invencíveis.
A última dessas vitórias tinha sido no Vietnã, que lutou diretamente contra a maior potência imperialista no mundo, durante 12 anos, onde morreram 60 mil soldados estadunidenses, naquela guerra de agressão e, morreu até dois milhão de vietnamitas (estimados), entre povo e soldados. Então, é preciso dizer que esta é uma vitória da soberania e da independência nacional, com a libertação da dependência dos Estados Unidos.
Outro aspecto que quero registrar é a vitória de uma teoria, chamada de Guerra Popular Prolongada – GPP (na sigla inglesa PPW ou Prolonged People’s War). Ela foi desenvolvida originalmente por Mao Zedong e parte do princípio de uma luta do tipo guerra de guerrilhas, que tem por objetivo atrair os inimigos para o interior, terreno em que os guerrilheiros mais dominam.
Essa é uma guerrilha essencialmente camponesa. A teoria menciona o cerca das cidades pelo campo. Na China foi aplicada desde o início da guerra civil em 1927, até a tomada do poder pelos comunistas em Pequim, em 1º de outubro de 1949 (4).
Eu fui formado em minha juventude, em meados da década de 1970, sob a influência do pensamento de Mao Zedong e da teoria da Guerra Popular Prolongada. Quero registrar que a vitória dos Talibãs é também a vitória desta teoria. Ela também foi aplicada intensamente pelos vietnamitas do Partido Comunista do Vietnã, na longa guerra de guerrilhas travada contra os EUA em 12 anos (1963-1975). E agora, em 20 anos, pelos Talibãs.
Os Estados Unidos, durante o período que ficaram no Afeganistão, tiveram a seu serviço milhares e milhares de colaboradores, que são na verdade colaboracionistas. Fala-se pelo menos 20 mil tradutores da língua Pashtu para o inglês e outras. Alguns órgãos de imprensa mencionam até 300 mil afegãs que de alguma forma prestaram serviços às tropas de ocupação.
É preciso dizer que nos 20 anos que os EUA tiveram no Afeganistão, não se registrou nenhum avanço em termos sociais. A crise pelo qual o país hoje atravessa, é claramente em função da sua política de ingerência interna em todos os países, que eles se acham no direito de fazer, de opinar, de dizer o que os outros devem fazer.
Fala-se muito nos refugiados que hoje querem sair do país, estimados em 300 mil pessoas. Mas, a mídia jamais fala dos cinco milhões de deslocados internos e refugiados que procuraram abrigos em outros países da região, que ocorreram durante este período de ocupação. Ou seja, o grande causador dos deslocamentos e dos refugiados é claramente os EUA.
Esses colaboracionistas faziam alguns tipos de serviços nas bases miliares – eram na verdade serviçais –, serviam como guias e orientadores. Os tradutores, principalmente, entre o pessoal mais preparado e bem formado, estão sendo retirados junto com o pessoal do corpo diplomático dos Estados Unidos. Isso tem gerado protestos dos Talibãs em suas coletivas de imprensa, pois esse pessoal fará falta na reconstrução e desenvolvimento do país, em sua nova fase.
Quando Biden anunciou a retirada, ele disse que deixaria apenas 600 soldados para proteger a Embaixada dos EUA. Posteriormente mandou mais dois mil para proteger a retirada inicial de seu pessoal, que passou a ter uma velocidade maior. Mais recentemente, ele deslocou mais três mil soldados. Todos acampados no aeroporto de Cabul, pois já que não podem mais circular pela capital.
A mídia, em que pese a sua fúria contra os Talibãs, também tem sido dura contra os EUA e a sua ocupação fracassada. Os termos que eles têm usados vão desde “completo fracasso da inteligência e da CIA”, bem como “desastre estratégico” e “fracasso completo da diplomacia estadunidense”. Em 23 de junho de 2021, o próprio Wall Street Journal publicou um relatório da CIA em que eles avaliavam que os Talibãs não tomariam o poder antes de 90 dias pelo menos (estas informações não estão referenciadas, pois foram obtidas a partir de diversos vídeos disponíveis no YouTube).
A própria República Federal da Alemanha tem dito que a derrota não é apenas dos EUA, mas da própria OTAN, a carcomida e decadente Organização do Tratado do Atlântico Norte, estrutura militar que consome bilhões de dólares todos os anos e mostrou-se completamente incompetente. Segundo eles, as cenas produzidas nos últimos dias no Afeganistão são “vergonhosas para todo o Ocidente”. A Inglaterra classificou o que lá ocorreu como um completo fracasso de toda a comunidade internacional.
Segundo a República Tcheca, os EUA perderam muito prestígio internacional com essa fragorosa derrota. Isso deixa dúvidas sobre a própria legitimidade da OTAN. O Partido Republicano nos EUA declarou que o que ocorreu foi um “vergonhoso fracasso, um erro estratégico”. Eles preveem a volta em alguns meses da Al Qaeda (existem muitas dúvidas sobre se isso irá ocorrer).
O próprio Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN, ainda que ele elogie as forças armadas afegãs, por eles treinados e armados, não assume a sua culpa, jogando a responsabilidade nos soldados afegãos. Preferiu culpar os políticos afegãos pela derrota por não terem “encontrado uma solução política pacífica”.
Portanto, esse contingente elevado de soldados, tem a única e exclusiva missão de garantir a retirada de tropas e garantir a retirada do pessoal do corpo diplomático estadunidense, que estavam queimando de forma acelerada documentos da embaixada e a abandonando rapidamente, e dirigindo-se ao aeroporto de Cabul. Por certo que os aviões cargueiros e de passageiros que têm sido enviados para Cabul, retiram pessoal, corpo diplomático e colaboracionistas de várias embaixadas, não só dos EUA.
A base militar de Bagram, onde os EUA investiram meio bilhão de dólares em sua modernização, já está em posse dos guerrilheiros Talibãs. E foi tomada praticamente sem que um só tiro fosse disparado. O Afeganistão inteiro, na verdade, já está sob o controle dos Talibãs. Não há mais uma cidade importante que não tenha sido capturada pela guerrilha Talibã. Na sexta-feira, dia 13, eles já haviam tomado Erat, Kandahar, uma cidade histórica muito antiga (existem registro de presença humana nessa localidade há pelo menos três mil anos). Já no dia 15 de agosto, finalmente, tomaram Cabul.
No dia 14 de agosto, sexta-feira, às 14h45 (hora local), o presidente subserviente, à serviço dos Estados Unidos, Ashraf Ghani, assinou a sua carta de renúncia. A imprensa noticiou – desmentido, por certo pelo Ghani – que ele fugiu levando consigo quase 170 milhões de dólares.
Esse traidor do povo afegão, tem sua formação toda ela na esfera da órbita estadunidense. Sua graduação é na Universidade Americana de Beirute (que conheci pessoalmente). Seu doutorado foi na Universidade de Colúmbia. Serviu ao Banco Mundial.
Como as notícias nos chegam mais lentamente, foi anunciado a formação de um governo de transição. Nesta terça, dia 24 de agosto, foi formado um Conselho de Governo, composto de 12 pessoas. Alguns nomes têm sido veiculados pela imprensa, entre eles o conselho incluirá um dos fundadores do movimento, Mullah Mohammad Yaqoob, filho do fundador do Talibã, Mullah Mohammad Omar, bem como Khalil Haqqani.
Os Talibãs, aparentemente, tentam mostrar que não são os mesmos que governaram naquele período mais obscuro há 25 anos. Eles cercaram Cabul e estão autorizando que as pessoas saiam tranquilamente. O intento deles – e eles conseguiram – era o de tomar a capital sem violência. Estão dizendo que não vão punir nenhum dos colaboradores. Falam em conceder anistia ampla, geral e irrestrita.
É preciso dizer que eles tinham na Capital, o que se chama de “células adormecidas”, ou seja, eram militantes Talibãs, que tinham em suas casas armas escondidas e que em determinado momento, foram às ruas e ajudaram na ocupação da cidade.
Esse novo governo em processo de constituição, que será de transição deve ser formado e deve ter no seu comando, ou como presidente ou como primeiro-ministro, Ali Ahmad Jalal, que já havia sido ministro do interior, num período de dois anos, depois da ocupação, por volta de 2003. É muito provável que esse nome tenha a simpatia e a concordância dos guerrilheiros.
É preciso registrar que na cidade de Doha, a capital do Qatar, estava havendo uma conferência de transição do poder, que já vinha em andamento, visto que já se sabia que o Talibã venceria esta batalha. É possível que as conversações tenham começado um mês antes da chegada dos guerrilheiros à Cabul.
Há um importante registro histórico que devemos fazer, de que os Estados Unidos jamais venceram guerra alguma, em qualquer país. Eles perderam todas. Só ganharam a Segunda Guerra, porque os comunistas do Exército Vermelho estavam juntos. Não fosse isso, eles perderiam. Mas, os livros de história dizem que eles é que ganharam a guerra.
O Talibã
Segundo o experiente jornalista brasileiro Pepe Escobar, da Asia Times, que só escreve em inglês – ele está fora do país há mais de 40 anos – temos que considerar o grupo Talibã um grupo de guerrilha camponesa, semelhante a que existiu no Vietnã.
Segundo Pepe Escobar – e diversos outros autores que li – os Talibãs atuais não guardam quase nenhuma semelhança aos seus fundadores em 1994 – há 27 anos – bem como o perfil do grupo à época de 2001. Eles estariam mais tarimbados não só na luta, mas na política e na diplomacia internacional (5).
O porta voz do grupo, Zabihullah Mujahid, que chegou a ser preso e torturado na base de Guantánamo, em Cuba, que pertence aos EUA, vem dando coletivas de imprensa quase todos os dias. Em uma dessas, ele anunciou um conjunto de propostas, projetos, proposições e ideias, onde expressou para toda a imprensa internacional sediada em Cabul, que encaramos como uma espécie de programa do grupo.
Publico a seguir – de forma resumida – os principais extratos do programa dos Talibãs para o país (6):
- As mulheres poderão ser educadas até o nível universitário; bem como poderão trabalhar;
- Serão pedidos às mulheres que usem o hijab, véu muçulmano que cobra apenas os cabelos), e não serão obrigadas a usar a burca;
- Eles asseguram que não ameaçam ninguém e não alimentarão inimizades contra ninguém;
- O Talibã anunciou um perdão geral;
- O Talibã orgulha-se de ser a força que libertou o Afeganistão da ocupação por forças estrangeiras, depois de 20 anos de luta;
- A segurança das embaixadas estrangeiras e de organizações internacionais humanitárias da ONU é prioridade para os Talibãs. Forças especiais dos Talibãs garantirão proteção em solo para os que estão deixando o Afeganistão e para quem opte por ficar no país;
- Será constituído um governo islâmico forte e inclusivo no Afeganistão;
- Os Talibãs não atacarão cidadãos norte-americanos no aeroporto de Cabul. Nenhum cidadão norte-americano ou de outras nacionalidades serão agredidos;
- A mídia estrangeira poderá continuar a trabalhar no Afeganistão, sem nenhuma restrição. Jornalistas poderão criticar o governo dos Talibãs e divulgar detalhes do próprio trabalho;
- Funcionários públicos devem continuar a trabalhar normalmente para benefício do Estado e da sociedade. A anistia geral aplica-se também a eles;
- Os Talibãs não perseguirão tradutores afegãos que trabalharam com o regime de ocupação, não sofrerão retaliações e não precisam deixar o Afeganistão;
- Os Talibãs garantem que o território do Afeganistão não será usado para atacar outros países;
- Todo o pessoal militar afegão que trabalhou diretamente com a ocupação das forças também receberá anistia;
- Os Talibãs querem o reconhecimento da comunidade internacional e não ameaçam outros países;
- Os Talibãs são avalistas da segurança do povo de Cabul e impedirão saques, roubos, assaltos e todos os outros crimes;
- Os Talibãs não foram movidos pelo espírito de vingança, mas que não tiveram escolha, naquelas circunstâncias de guerra. Agora, são outros tempos, e a abordagem será diferente;
- Os Talibãs prometem que, muito rapidamente o Afeganistão será transformado, visando uma vida melhor ao seu povo. Uma série de medidas serão tomadas para melhorar a economia do país, com a ajuda de países amigos;
- Os Talibãs mantêm boas relações com Paquistão, Rússia e China, mas não fazem parte de nenhum bloco político-militar;
- Do ponto de vista dos Talibãs, a guerra afegã está oficialmente acabada. Os Talibãs querem que os dias de guerra fiquem no passado, e o Afeganistão não é mais campo de batalha entre afegãos e potências estrangeiras;
- Os Talibãs comprometem-se a garantir que o governo afegão seja aberto ao povo e pretendem incluir representantes de diferentes grupos no futuro governo;
- Os Talibãs não permitirão que o Afeganistão se converta em paraíso seguro para terroristas internacionais (alusão clara ao ISIS/DAESH/EI).
Uma primeira leitura dessa plataforma – propositalmente, suprimi tópicos menos vitais para efeitos de economia de espaço – vê-se que são intenção e planos de governo de um grupo político amadurecido por mais de 20 anos de combates e de resistência, de armas em punho.
Não se vê nessa plataforma rancor, ódio, intensão de perseguição. Claro que precisamos dar tempo para que eles se assenhorem do país, formem seu governo da forma mais ampla possível e passem a reconstrução do país com apoio de muitos países interessados, em especial China, Rússia e Irã.
A título de informação há uma declaração importante que é a da porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, que disse: “as forças em confronto no Afeganistão, ambos tiveram apoio dos Estados Unidos, o mundo observa com horror os resultados de outro experimento histórico dos Estados Unidos”. O experimento histórico a que ela se refere, é a guerra de agressão, mais uma que o mundo presencia, o horror da guerra e um desfecho desfavorável para os Estados Unidos (também aqui a declaração foi obtida de vídeo público no YouTube, no canal RT, em espanhol).
É preciso dizer que morreram no Afeganistão em torno de 2.500 estadunidenses, 450 britânicos, 160 canadenses e 90 franceses, em torno de quatro mil soldados, de várias nacionalidades. Assim como só nos Estados Unidos, houve 20 mil feridos e, esses feridos, causam “despesas” para o tesouro do Estado, para o resto da vida, porque eles são mutilados, eles precisam de pensão, eles precisam de fisioterapia, de acompanhamento etc. Então, são 20 mil feridos de guerra. Calcula-se que 60 mil das forças afegãs morreram, outros 60 mil Talibãs e 120 mil civis.
É preciso dizer que a tal modernidade das forças de segurança do Afeganistão foram feitas pelos Estados Unidos e transferiram para eles mais de 100 aeronaves, algumas delas tucanos, fabricados pela Embraer, que eles consideram o melhor avião para combates curtos e rápidos.
Transferiram centenas de blindados. Ou seja, o Talibã chega ao poder e tem um armamento, blindados e aeronaves modernas à sua disposição. Assim, é possível entender o poder de fogo que esses “estudantes”, guerrilheiros mujahidin vão adquirir.
Aqui é fundamental desmontarmos a farsa dos tais “300 mil homens treinados e bem armados pelos EUA e pela OTAN”. Isso é a maior obra de ficção da história de uma guerra. Jamais existiram de fato um contingente dessa magnitude. Como não há “folha de pagamento regular e de forma eletrônica”, em função da guerra, milhares desses “soldados” eram pagos em dinheiro vivo, através de malas de dinheiro vivo e em dólares, feitos pelos comandantes regionais.
Por exemplo: se um soldado fosse contratado para receber mil dólares por mês de “trabalho”. Um “comandante” regional tinha, digamos 15 mil “soldados”. Este “comandante” receberia mensalmente uma “mala” com 15 milhões de dólares. Parte disso era, de fato, pago aos “soldados”. A outra parte, a maior delas, ficava com esse “comandante”. Muita gente enriqueceu com essa guerra de ocupação.
Dizer que o grupo Talibã ainda não inspira confiança sobre o novo governo que eles vão estabelecer é falar sobre lugares comuns. De qualquer forma é preciso demonstrar elevada compreensão política para comemorar a derrota dos Estados Unidos, sem enaltecer e já comemorar a vitória de um grupo que ainda busca legitimidade nacional e internacional. Essa é a nossa diferença de enfoque com outras correntes políticas, que mais atacam os Talibãs do que o imperialismo.
Assim, nós vemos a fraqueza tanto dos Estados Unidos quanto do próprio governo títere, a serviço deles. Os que estavam “governando” o país, avaliavam que a chegada do Talibã ainda demoraria três meses para tomar a capital Cabul. E aí foram pegos completamente de surpresa e, por isso, muitos destes estão fugindo de Cabul.
Joe Biden deu uma coletiva no dia 16 de agosto, dizendo que o grande culpado dessa situação foi o seu antecessor, Donald Trump. Ele lembra este que se apresenta como “presidente” de nosso país, em que tudo que é problema no seu governo ele culpa o PT.
De fato, Donald Trump assinou um acordo de paz com os Talibãs, em 29 de fevereiro de 2020. É verdade que neste acordo a prioridade do cessar-fogo, a proibição do Talibã era de agredir exclusivamente as forças de ocupação dos Estados Unidos e seus aliados, não necessariamente o pessoal, funcionários do governo. Ou seja, apenas os soldados das tropas de ocupação estariam protegidos pelo acordo.
O acordo não protegia as forças afegãs de segurança treinadas pelos próprios Estados Unidos. Portanto, a interpretação deste acordo de paz que Trump fez protegeu, de certa forma, as forças dos Estados Unidos e seus aliados, mas deixou todos os soldados afegãos por eles treinados, como alvo fácil e a mercê dos guerrilheiros mujahidin, dos talibãs. Então, Biden faz essa crítica ao seu antecessor.
A Rússia e a China já estão se colocando à disposição para ajudar. Sobre a República Popular da China, que faz fronteira com o Afeganistão, especialmente, na região da China, que os Estados Unidos criticam. Sem nenhum fundamento, eles dizem que na região de Xinjiang, onde existe a etnia Uigures, majoritariamente muçulmana, a China violaria os “direitos humanos”. Tudo isso sempre desmentido não só pela China, mas por observadores internacionais idôneos. A China tem a justa preocupação com a infiltração de muçulmanos, fundamentalistas sunitas naquela região.
Esperamos que isso não aconteça. A China está se colocando à disposição, em especial para a fase da reconstrução do país. A China tem interesse que o Afeganistão volte para as novas rotas da seda, como já foi no passado.
Eu acho que a China vai sair deste processo como uma grande mediadora de uma possível reconciliação nacional. Mas, o mais importante, os Estados Unidos saem de cena em toda a Ásia Central. Não poderia deixar de registrar o contato telefônico estabelecido pelos presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin, da China e Rússia, preocupados com o futuro do Afeganistão e acordaram em prestar toda a ajuda possível.
Eu já tinha feito uma análise anterior, afirmando que os Estados Unidos já estão saindo do Oriente Médio. É claro que não nessa dimensão que agora saem do Afeganistão, com o “rabo no meio das pernas”, mas estão saindo também do Iraque e da Síria, nestas condições, porque tanto o exército desses países quanto os guerrilheiros solidários, esses governos da Síria e do Iraque, fustigam diariamente o que restou das tropas dos Estados Unidos. Então, o objetivo é que os EUA deixem completamente todo o Oriente Médio e, na medida que eles vão deixando – como não há vácuo na política – a China e a Rússia estão ocupando seu espaço.
A seguir, da forma a mais didática possível, quero apresentar uma lista de nove questões muito importantes, onde irei procurar esclarecer os principais problemas e as principais dúvidas que vêm surgindo nos últimos dias referentes à tomada de poder política, por processo revolucionário dos Talibãs, no Afeganistão.
- Talibã x CIA
Aqui voltamos a reafirmar que o Talibã não foi criado pela CIA. É fato que a agência patrocinou, armou e treinou 90 mil afegãos e gente de fora do país, que foram para lá, os muçulmanos chamados mujahidin (guerrilheiros) e jihadistas de vários países, que lutavam contra um governo, que era apoiado pela União Soviética. Um governo de orientação socialista que havia feito uma revolução bastante avançada, no ano de 1978 e, acossado pela oposição e pediram ajuda solidária da URSS, que mandou tropas e acabou ocupando o país por 10 anos.
Esses guerrilheiros muçulmanos fizeram, claramente, o jogo dos Estados Unidos, que interessava em financiá-los, para enfraquecer e derrotar a União Soviética. Esta é uma das provas, entre tantas outras, que em política internacional não há sentimentos, há jogo de interesses. Acabaram por destruir um país progressista e com uma sociedade avançada (7).
Desta forma, os EUA aliam-se a fundamentalistas religiosos que, futuramente, virariam terroristas da organização Al-Qaeda, porque naquele momento os interesses eram coincidentes. Eles, inclusive, foram recebidos pelo presidente fascista, de extrema-direita, Ronald Reagan na Casa Branca, o que foi fartamente documentado. O Talibã, por sua vez, é um grupo guerrilheiro independentista e que luta pela soberania nacional do seu país, o Afeganistão.
Não há dúvidas de que esses guerrilheiros foram financiados. Mas, eles não são o Talibã, que surge cinco anos depois que a União Soviética deixou o Afeganistão, em 1994. Inclusive, surgem no Paquistão. Por certo, alguns dos que foram armados e treinados pela CIA, devem ter participado da fundação do Talibã, em 1994. Mas, não há uma conexão entre as duas coisas. Os que fazem essa associação – seja por ingenuidade ou proposital – cometem uma grande injustiça.
- Al-Qaeda é terrorista
A Al-Qaeda, sim, de fato, viraria uma organização terrorista, ela que foi fundada em 1988, um ano antes da URSS deixar o Afeganistão. Posteriormente, em 11 de setembro de 2001, ela será responsabilidade – ainda que isso tenha controvérsia – de ser os operadores dos ataques cinematográficos às torres gêmeas em Nova York.
Segundo o camarada Joseph Stálin, em um dos seus vários desenvolvimentos teóricos sobre a questão nacional, ele tem uma bela passagem, que é quando ele fala, inclusive da luta do Emir do Afeganistão contra o imperialismo inglês que almejava, evidentemente, tomar conta daquele país. Diz Stálin: “(…) A luta do emir do Afeganistão pela independência de seu país é, objetivamente, uma luta revolucionária, apesar das ideias monárquicas do emir e dos seus adeptos, porque essa luta enfraquece, decompõe e mina o imperialismo” (8).
É isto que temos que entender. Temos que comemorar efusivamente a derrota dos Estados Unidos e reconhecer o caráter da luta travada como revolucionária e anti-imperialista, independente de quem é que ganhou essa batalha. Ou seja, o caráter da revolução ocorrida no Afeganistão é, objetivamente, revolucionária, pois visa a soberania e independência nacional, a expulsão da potência estrangeira ocupante.
Quero aproveitar este momento de meu estudo para relembrar que o pensamento marxista diz que o que dá o caráter e o conteúdo de um determinado estado nacional é a classe que domina o seu aparelho. No entanto, marxistas posteriores ao próprio Marx e Lênin, dizem que também as propostas e planos de governo, projetos nacionais devem ser levados em conta. Assim, tendo em vista o belo programa de governo apresentado acima, fica para meus e minhas leitores/leitoras uma avaliação do caráter real do grupo que venceu uma revolução popular no pobre Afeganistão.
Por fim, é preciso lembrar que não podemos achar que fazer revoluções anti-imperialistas é uma exclusividade da esquerda marxista. Esse é um erro crasso que grande parte da esquerda brasileira comete neste momento ao tecer suas “análises” sobre os acontecimentos no Afeganistão. O fato de os Talibãs não serem de esquerda, não tira de seu movimento o caráter revolucionário.
Nunca é demais lembrar que Augusto César Sandino, que lutou contra o imperialismo, bem como Farabundo Marti em El Salvador e mesmo Fidel Castro em 1959, em Cuba, nenhum deles jamais foi comunista e fizeram grandes e importantes lutas anti-imperialistas (Fidel torna-se comunista uns anos depois da Revolução).
- Talibã e o Irã, China e Rússia
O Talibã nada fará para articular contra os governos do Irã, da China e da Rússia e, nesta ordem, acho que eles serão reconhecidos como governo em primeiro lugar por esses países, que têm todo interesse em manter um governo estável, com caráter anti-imperialista na Ásia Central.
Eu tenho dito que a derrota dos EUA não é só no Afeganistão, mas em toda a Ásia Central. Os Estados Unidos saem da Ásia, o único ponto que eles ainda estavam e que é cercado por cinco países majoritariamente muçulmanos e pela República Popular da China.
Por exemplo, se um dia os EUA agredissem o Irã, país que faz fronteira com o Afeganistão, teriam a facilidade de usar a base militar que eles mesmo criaram chamada de Bagram e que é uma das mais modernas e maiores do mundo.
Quando Israel faz a bravata que atacará o Irã, além de não ser simples isso tecnicamente falando, em função da autonomia dos seus caças para bombardearem Teerã e voltarem para Tel Aviv, se um dia de fato essa agressão ocorresse, a melhor forma e mais próximo seria pela fronteira do Afeganistão. Felizmente, isso, jamais ocorrerá agora.
- O “novo” Talibã
O Talibã de hoje quase nada tem a ver com aquele que governou o Afeganistão por cinco anos, de 1996 até 2001. São vários os fatores que nos permitem afirmar isto, além da plataforma que publicamos acima. Os Talibãs já estão protegendo todas as embaixadas em Cabul. Eles conclamam a população a voltar ao trabalho; conclamam aos industriais e aos comerciantes para não fecharem as portas, porque a normalidade será restabelecida.
De maneira alguma estou de acordo com comparações que alguns memes estão circulando, afirmando que os Talibãs são iguais aos grupos milicianos bolsonaristas. Os milicianos do Brasil, apoiadores de um governo fascista, são entreguistas e não defendem a soberania nacional.
Temos que ter cautela e aguardar, antes de criticar e atacar alguém que, neste momento, está combatendo o imperialismo. A batalha não está vencida. Forças dos EUA junto com o vice-presidente daquele que fugiu, Amru llah Saleh, já está articulando a volta da resistência para, evidentemente, derrotar o grupo Talibã e voltar ao poder, a serviço dos EUA. Ele já se apresentou como “presidente legítimo” (sic).
A dimensão da derrota dos Estados Unidos só se compara com a derrota que eles tiveram depois de 12 anos de guerra com o Vietnã. Mas esta aqui é muito maior, como já dissemos. A imagem da fuga da embaixada com helicópteros, ela se repete exatamente agora, quando os Estados Unidos saem do Afeganistão, não por decisão própria, não por uma questão planejada.
Os EUA saem fugidos, escorraçados e derrotados. A cena do aeroporto de Cabul com as pessoas tentando entrar no avião para fugir do país e que caíram na pista (três morreram e não se sabe quantos mais que apareceram com seus corpos mutilados no trem de pouso da aeronave cargueiro). Trata-se então, de uma derrota regional, da Ásia Central.
- Vitória da luta independentista
É preciso dizer que houve a vitória de uma concepção de luta independentista pela soberania nacional e nós precisamos entender isto. Foi uma vitória do povo. Nenhum grupo resiste 20 anos ao maior, mais poderoso e melhor armado exército do mundo, que são os do Estados Unidos, sem o apoio do povo.
Eles perderam para o povo que tem muita simpatia, tal qual o Hezbollah tem pelo povo do Líbano, porque sabe que, independentemente da questão política, é o Hezbollah que resiste à invasão do Líbano pelos sionistas de Israel.
O tal “presidente” Ashraf Ghani não era um presidente legítimo, mas sim um títere, um testa-de-ferro dos Estados Unidos. Isso é mais uma prova de que eles não se preocuparam em promover a democracia, criar partidos, eleger um parlamento. Todos os “presidentes” foram títeres da ocupação do imperialismo e nomeados pelos Estados Unidos e seus prepostos no Afeganistão.
Aqui um breve e pequeno registro sobre a bandeira do Afeganistão, de três cores. A bandeira do Talibã é branca com a inscrição em letras do tipo árabe onde se diz “Emirado Islâmico do Afeganistão”. Essa bandeira, pela qual alguns afegãos choram e dizem amá-la é, na verdade, a bandeira imposta pelo imperialismo ocupante do país desde 2001. De forma que não tem nenhum sentido a sua defesa. Muito provavelmente, mais adiante, a bandeira do país deverá vir a ser modificada, assim como os seus símbolos nacionais e o hino nacional afegão.
- O imperialismo não é invencível
Uma outra característica clara é que mesmo para um exército pequeno e mal armado como o Talibã, cujas únicas armas são os fuzis Kalashnikov – chamada de AK-47, a vitória militar ficou muito claro. Isto quer dizer que foi um movimento guerrilheiro apoiado pelo próprio povo, nas suas próprias forças, como dizia Mao Zedong, vencerá.
Precisamos nos despir deste preconceito que a própria mídia tem colocado como ponto central, que são os direitos das mulheres. Enquanto os Estados Unidos nada fizeram nesses 20 anos por tais direitos que, inclusive, eles serão garantidos e restabelecidos, porque faz parte do programa de trabalho do Talibã.
Digo mais, não se pode contrapor a negatividade que uma vitória anti-imperialista, por uma suposição de que as mulheres não serão respeitadas. São duas coisas distintas que eu acho que parte da esquerda levanta, que diminui a real dimensão da derrota dos Estados Unidos. Não se pode contrapor uma questão com a outra.
Como venho dizendo, temos que ter cautela, aguardar. Não podemos afirmar que o Talibã irá, seguramente, desrespeitar as mulheres. Nunca é demais dizer que nenhum direito foi assegurado e garantido às mulheres e ao povo afegão em geral nos 20 anos de ocupação.
Ao contrário. Milhares de mulheres foram estupradas pelas tropas de ocupação. E, ademais, a burca, seguiu sendo usado por muitas mulheres, mostrando que isso é costume tribal local e nada tem a ver com preceitos religiosos islâmicos.
- O novo presidente
O novo chefe do governo dever ser Abdul Ghani Baradar, que estava exilado em Doha, no Qatar. Ele, nas últimas três semanas, já estava participando de negociações para a transição, porque era irreversível o processo de conquista e tomada do poder. Os Estados Unidos sabiam disso e foi por isso que saíram correndo, porque a vitória era inevitável.
É preciso também registrar, que o Talibã proibiu o cultivo de papoula, que é a planta básica para fazer o ópio, no Afeganistão, no ano 2000, um ano antes de os Estados Unidos invadirem o país e voltou com muita força o cultivo da papoula e muitos ganharam bilhões de dólares após outubro de 2001. O tráfico internacional de drogas voltou com força, de forma que não é errado dizer que os Estados Unidos criaram um narcoEstado. Essa é a opinião de uma autora, do qual gostei muito, Marian Suzyli, jornalista e analista internacional que afirma (9).
- Não tem nada a ver com o combate ao terrorismo
Esta invasão não teve nada a ver com o combate ao terrorismo, como sempre foi alardeado. Muito ao contrário. Foi exatamente a partir da invasão que o terrorismo se propagou para toda a região. Foi criada a Al-Qaeda.
Na Síria eles criaram a Frente Nusra, que é do conglomerado terrorista da Al-Qaeda, um grupo que combateu por oito anos contra o governo do dr. Bashar Al-Assad. Os terroristas perderam na Síria. Vão perder na Líbia, apesar de eles terem destruído e dividido o país, que vive num caos.
Por onde os Estados Unidos passaram no Oriente Médio e na Ásia Central, no caso do Afeganistão, deixaram um rastro de morte, humilhação, destruição, tráfico de drogas. Além da Al-Qaeda, tem o Estado Islâmico (que alguns conhecem pela sigla ISIS ou em árabe DAESH). Eles não são e nunca foram nem Estado e nem um grupo islâmico. Este é um grupo terrorista apoiado pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos.
- Governo Pragmático
O Talibã fará um governo pragmático. Terão a participação de vários grupos políticos, portanto, não serão hegemônicos. Não farão nada do que fizeram antes. Aliás, esta é uma expectativa de todos os estudiosos de política internacional do mundo. Eu não vi nenhum artigo, dizendo que o Talibã vai oprimir, vai amordaçar as mulheres e retirar seus direitos. E se vier a fazer isso, ficará isolado do mundo inteiro.
Eu acho difícil hoje eles adotarem essa prática. Eles vão querer ter relações diplomáticas com o mundo inteiro. Eles já pediram para que os corpos diplomáticos não saiam de Cabul e estão protegendo todas as embaixadas. Até os Estados Unidos, provavelmente, reconhecerão o governo dos Talibãs.
A violação dos direitos humanos nos 20 anos de ocupação (10)
Em 20 anos de ocupação no Afeganistão muitas barbaridades e violações dos direitos humanos básicos contra o povo afegão foram cometidas pelas tropas de ocupação. Milhares de mulheres afegãs foram estupradas pelos soldados. Mas, uma série de opiniões e notícias têm vindo a público e as reproduzo a seguir.
A China declarou que os EUA, Austrália e a Inglaterra devem prestar contas pelas violações dos direitos humanos cometidas pelas tropas de ocupação. Um relatório investigativo feito pela Austrália, entre 2009 e 2013, sobre seus soldados no Afeganistão, dão conta de mortes de 30 civis e até mencionam degolamentos.
A conceituada revista Rolling Stone acusa a Inglaterra de acobertamento das evidências dos abusos de suas tropas, assim como os acusam de uma política deliberada de assassinatos. O conceituado jornal The Guardian, da Inglaterra noticia que um ataque aereo dos EUA no Afeganistão matou 47 pessoas (civis) que iam a uma festa de casamento. A BBC londrina também informa que os EUA atacaram uma clínica na cidade de Kunduz que matou 42 pessoas. Por fim, a agência de notícias Reuters fala em um ataque com drones dos EUA que matou 30 trabalhadores rurais.
Todas essas e tantas outras atrocidades devem começar a vir à tona cada dia mais e devem ser apuradas às últimas consequências. Isso deve demolir de vez os que ainda falam que os tais 20 anos de ocupação estadunidense foram a maior maravilhosa para o povo e para as mulheres.
Algumas conclusões iniciais
Quem ganhou e quem perdeu nesse conflito? Não há dúvidas de que quem perdeu foi o imperialismo estadunidense. O presidente dos EUA, Joe Biden, com a falência de sua política externa – que foi tema de meu último ensaio (11), vivem a sua mais profunda e derradeira decadência em toda a sua história. O próprio Donald Trump vem dizendo que a derrota foi tão magistral que não pode ser chamada de derrota, mas sim de uma rendição (12).
Indubitavelmente, ganharam o Irã, a China e a Rússia. Se um dia, o Talibã quiser, de fato implantar uma República Islâmica do Afeganistão – ou Emirado Islâmico como eles vem chamando, mantendo a tradição antiga de seu país –, nesta nova fase que o país viverá, espero que se espelhem muito no que é a República Islâmica do Irã, que tem 42 anos de existência.
No Irã eles já fizeram oito eleições presidenciais desde 1979, bem como têm um parlamento funcionando, tem o Poder Judiciário secular, civil, mas tem também um Poder Religioso baseado na Sharia. O Irã tem muito a ensinar a esta juventude Talibã.
Eu quero falar sobre a máquina midiática de “moer carne” que está em movimento. Mentiras, falsidades, reportagens distorcidas e enviesadas serão amplamente produzidas pelas grandes corporações midiáticas. Elas manipularão as cabeças das pessoas já pré-dispostas a verem o Talibã como o mesmo opressor das mulheres de há 20 anos.
Pior do que isso. Acho que o Afeganistão viverá, por mais que exista vontade política dos Talibãs de pacificar o país, possivelmente uma guerra civil, tendo contra eles grupos armados pelos Estados Unidos, especialmente o grupo chamado de Aliança do Norte, que era liderado pelo falecido Ahmad Shah Massoud (13). Hoje é seu filho, Ahmad Massoud, de apenas 32 anos que promete dar combate ao Talibã (14) e que poderá vir a ser apoiado pelos EUA.
O Talibã nos últimos dias emitiu um importante comunicado onde reconhece a República Popular da China como a principal potência mundial e que virá a ter um papel relevante nesta nova fase do Afeganistão, que poderá vir a contribuir para a reconstrução do país.
A impressão que fica, com a estrondosa derrota dos Estados Unidos e com o completo abandono dos seus aliados no Afeganistão, de vários países e mesmo as centenas de milhares de afegãos que com eles colaboraram, que o Ocidente e os seus aliados em todo o mundo estão literalmente em pânico pela atitude da potência estadunidense, que mostrou que abandona tudo e todos pensando exclusivamente em seus interesses.
Quero aqui me associar ao amigo, camarada e coautor de dois dos meus livros, o jornalista e editor internacional do portal Brasil 247, José Reinaldo Carvalho. Em recente artigo, ele tece considerações sobre as perspectivas na geopolítica mundial, decorrente da nova situação criada pela fragorosa derrota dos EUA na Ásia Central (15).
Ao finalizar esse (trabalhoso e grande) ensaio, não poderia deixar de falar sobre as riquezas do subsolo do Afeganistão. Pouco se está falando disso e, seguramente, os EUA exploraram essas riquezas nos 20 anos que ocuparam o país.
Trata-se dos minerais cobre, cobalto e lítio. As estimativas em função das reservas comprovadas são estimadas hoje em três trilhões de dólares (quase dois PIBs do Brasil). A imprensa despertou para isso, por certo, agora que tal riqueza será explorada pelo governo nacional e soberano do Afeganistão, que terá à frente o grupo guerrilheiro Talibã (16).
Uma questão fundamental que também tem sido omitido pela grande mídia ou noticiado sem qualquer destaque, são as reservas em dólares do Afeganistão, estimados hoje em 10 bilhões de dólares, que estão em papel moeda aos cuidados do Federal Reserve – uma espécie de Banco Central dos EUA.
Existem também uma parte dessas reservas na forma de títulos do Tesouro dos EUA. Mas, o pior de tudo isso é que o imperialismo estadunidense está tomando providências e já bloqueou todos esses recursos, para evitar que eles “caiam nas mãos do Talibã”. Um verdadeiro absurdo. Até acho que eles, que devem vir a reconhecer o novo governo, devem liberar esses recursos. Mas, por ora eles estão bloqueados (17).
Finalizo este trabalho com uma questão relacionada à possibilidade de os EUA virem – ou não – a reconhecerem o novo governo dos Talibãs. Pessoalmente, acho que isso vai acabar ocorrendo, pois eles não querem um governo de um importante país, se opondo a eles. E o fato que eles têm um governo anti-imperialista que os derrotaram, em nada modifica essa situação.
O caso do Vietnã é mais flagrante para provar que vale o pragmatismo. Os EUA mantêm com o Vietnã, governado por um Partido Comunista, muito boas relações de todos os tipos. Nesta quarta-feira, dia 25 de agosto, a vice-presidente Kamala Harris, esteve em visita exatamente ao Vietnã, no Sudoeste asiático, como que para garantir parcerias e amizade (18).
Como vários autores têm afirmado – e encontro-me entre esses – o mundo vive de forma acelerada, um processo de mudança. A ordem em transição da unipolaridade para a multipolaridade já foi concluída. Vivemos já um mundo praticamente multipolar, com a força emergente da Rússia e da China, que vem sendo capaz de conter a fúria agressiva do imperialismo dos Estados Unidos. E o Irã vem jogando a cada dia um papel maior nessa conjuntura política internacional.
Ainda voltaremos mais vezes ao tema do Afeganistão e ao seu novo governo dos Talibãs, que ficará na nossa ordem do dia, na geopolítica mundial, por muito tempo ainda.
Notas:
- Vejam maiores informações sobre essa operação neste link <https://bit.ly/3jcr26Z>;
- Veja neste link informações completas sobre o Afeganistão <https://bit.ly/3sKydqm>;
- Aqui neste link, maiores informações sobre o Talibã <https://bit.ly/3B8a1kD>;
- Mais detalhes sobre essa teoria de Mao Zedong veja neste link <https://bit.ly/3diZGJA>;
- O excelente artigo de Pepe Escobar, traduzido pelo coletivo Vila Vudu de tradutores cujo título é O emirado islâmico do Afeganistão volta retumbante e pode ser lido no original neste link <https://bit.ly/2UKZvQV>;
- Os termos foram traduzidos direto do russo para o inglês e do inglês para a nossa língua pelo coletivo Vila Vudu de tradutores. O original pode ser lido neste link <https://bit.ly/3kjNeLT>;
- Vejam no link a seguir o excelente artigo de John Pilger, sobre a destruição que os EUA cometeram contra um país moderno e próspero, que era o Afeganistão, ao apoiarem guerrilheiros fundamentalistas de extrema direita: <https://bit.ly/3khKy1e>;
- Veja em Joseph Stálin: Sobre os Fundamentos do Leninismo. VI – A Questão Nacional, Editora Parceria A. M. Pereira, Portugal, 1974, Lisboa, 154 páginas;
- A matéria a que me refiro saiu publicada no Russia Today com o título traduzido de “O que o momento Saigon do Afeganistão nos ensina sobre as ‘guerras humanitárias’ da América” e pode ser lido no original neste endereço <https://bit.ly/3sLra0L>;
- Todas as informações que utilizo neste pequeno capítulo foram obtidas neste link <https://bit.ly/3guIbXN> que é uma reportagem no canal Russia Today em Espanhol, cujo título é Ex-militar acredita que os EUA tentam apagar as pegadas de suas atrocidades no Afeganistão;
- Este meu mais recente ensaio pode ser lido no meu site pessoal neste link <https://bit.ly/3AWRKql>;
- Esta afirmação foi feita em um comício que Trump realizou no domingo, dia 22 de agosto e pode ser lida neste link <https://bit.ly/3jend1n>;
- Mais informações desse grupo neste link <https://bit.ly/3jcapbN>;
- Massoud Jr. promete combater o governo do Talibã na região do Panjshir. Veja mais detalhes neste link <https://bit.ly/3gubHNI>;
- Pode-se ler o mencionado artigo no link a seguir <https://bit.ly/3zhNnpD>;
- Esta notícia foi publicada no Brasil apenas recentemente e em apenas um grupo de mídia, que é o sistema Globo de jornalismo, através dos seus portais G1, que pode ser lido neste link <https://glo.bo/38fFmpk>;
- Veja nesta matéria de 18 de agosto do portal da CNN Brasil sobre esse assunto neste link <https://glo.bo/38fFmpk>;
- Sobre a viagem que a vice-presidente dos EUA fez ao Vietnã pode ser lida nesta link <https://bit.ly/3sQD6Oz>.
* Sociólogo, professor universitário (aposentado) de Sociologia e Ciência Política, escritor e autor de 17 livros (duas reedições ampliadas), é também pesquisador e ensaísta. Atualmente exerce a função de analista internacional, sendo comentarista da TV dos Trabalhadores, da TV 247, da TV DCM, do Iaras e Pagus, entre outros canais, todos por streaming no YouTube. Publica artigos e ensaios nos portais Vermelho, Grabois, Brasil 247, DCM, Outro lado da notícia, Vozes Livres, Oriente Mídia e Vai Ali. Todos os livros do Professor Lejeune podem ser adquiridos na Editora Apparte (www.apparteditora.com.br). Leia os artigos do Prof. Lejeune em seu site www.lejeune.com.br. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br e Zap é +5519981693145. Youtube: https://www.youtube.com/c/CanaldaGeopolítica; Facebook: https://www.facebook.com/ApparteLivrariaEditora; Facebook: https://www.facebook.com/professorlejeunemirhan/?ref=pages_you_manage; Twitter: https://twitter.com/lejeunemirhan?s=11; Instagram: https://instagram.com/lejeunemirhan?utm_medium=copy_link.
Os artigos e ensaios publicados na editoria TODO MUNDO (Opiniões e Debates) não refletem necessariamente a opinião do PCdoB sobre o tema abordado.