Visão Global

As “três grandes transições” na economia chinesa

Interessante sinal dos tempos. Quem abre o caderno de economia de algum jornal ocidental, por algum momento, terá a impressão de que a economia chinesa está à beira de um colapso. Isso porque as previsões de crescimento do PIB chinês, segundo a Goldman Sachs, caíram dos iniciais 8,2% para 7,8%. O detalhe é que nenhuma economia capitalista do mundo desenvolvido crescerá acima de 5,7%.

Por Elias Jabbour*

Os analistas ocidentais não aprendem com seus próprios erros. Há cerca de trinta anos que, de uma forma ou de outra, eles estão prevendo o “colapso” do modelo chinês. Para eles democracia liberal e desenvolvimento econômico são duas faces da mesma moeda. É como uma religião. Ou uma repetição piorada do que Marx chamava de “economia vulgar”. Ou seja, economistas que lutam e ganham a vida para defender o indefensável. Ou simplesmente mentir. A mentira é como uma profissão de fé de economistas liberais…

No caso chinês as razões para o “colapso iminente” estão relacionadas seja com os problemas energéticos recentes ou com a “falta de confiança” diante da execução do programa de “prosperidade comum” comandada pelo presidente chinês. É provável de os Estados Unidos lançarem uma campanha internacional pelo “direito à desigualdade” diante da ameaça real ao capitalismo que a China propõe caso os objetivos em torno da “prosperidade comum” sejam alcançados.

Na luta política não existem coincidências. Estamos diante de uma “tempestade semiótica” encampada por intelectuais orgânicos do imperialismo norte-americano espalhados pelo mundo. O objetivo não é somente difamar a experiência chinesa, como fizeram no passado em relação à União Soviética. O objetivo é criminalizar intelectuais que demonstrem alguma simpatia para com as conquistas recentes da Revolução Chinesa, fechando espaços para opinião tanto na universidade quanto na imprensa a esses intelectuais – incluindo esse que vos escreve. Como explicar a clara invisibilidade imposta ao grande feito chinês da erradicação da pobreza extrema – a maior conquista da história humana, em minha opinião?

Enfim, o que penso que está ocorrendo à economia chinesa? Eu observo que as contradições que a China tem enfrentado em sua trajetória recente de desenvolvimento estão relacionadas com o que chamo de “três grandes transições” pelas quais têm passado o país. Essa noção de “três grandes transições” tem um pressuposto teórico e histórico muito claro relacionado com o fato do processo de desenvolvimento ser algo caracterizado por saltos de um ponto de desequilíbrio a outro. Dada essa característica intrínseca a qualquer processo histórico os processos de desenvolvimento de longa duração são caracterizados pelo lançamento cíclico de inovações institucionais capazes de mediar e superar as contradições geradas pelo próprio processo de desenvolvimento, abrindo – assim – um novo ciclo de desenvolvimento.

O processo de desenvolvimento, como todo processo histórico, é caracterizado por uma sequência de transições condicionadas historicamente. No caso chinês, o sucesso do seu processo de desenvolvimento desde 1978 está justamente na capacidade de o Estado encaminhar soluções rápidas às contradições que foram surgindo ao longo do processo. O que diferencia o momento atual dos anteriores é que a China está passando por um processo onde três transições estão ocorrendo no país de forma simultânea. Isso tem exigido máxima concentração de energias da governança chinesa em um ambiente externo de pressão imperialista e de grandes questões internas.

O slogan da “prosperidade comum” na verdade é a síntese das grandes soluções encaminhadas pelo Partido Comunista da China aos desafios anexos às “três grandes transições”. De um ponto de vista mais histórico e estratégico, estamos diante do que Friedrich Engels chamava de “dores do parto do nascimento de uma nova sociedade”. O socialismo é uma realidade em constante mutação qualitativa na China, ainda em seus primeiros passos.

A primeira transição tem relação com o desafio de reduzir as emissões de carbono em uma economia altamente dependente desta forma de gerar energia. Existe uma necessária coordenação entre os objetivos traçados pelo governo chinês com as demandas da economia real.

A segunda transição também é muito desafiadora, pois está relacionada com um ciclo de inovações institucionais caracterizada pela mudança dos esquemas de propriedade no país. Explico melhor. Em recentes artigos escritos por mim, e publicados no Brasil e no exterior, eu tenho colocado que as reformas econômicas iniciadas em 1978 fizeram emergir na China uma nova classe de formações econômico-sociais, o “socialismo de mercado”. Uma das características fundamentais desta “nova formação econômico-social” é a convivência de diversas formas de propriedade, sendo a propriedade pública a dominante.

Ao longo dos últimos quarenta anos a continuidade do processo de desenvolvimento chinês foi garantida por ondas de inovações institucionais que iam reorganizando o papel do Estado e das outras formas de propriedade no processo de desenvolvimento. Percebi em minhas pesquisas que de um lado o papel do Estado cresceu do ponto de vista qualitativo, ou seja, elevou sua capacidade de intervenção na realidade. Por exemplo. Por outro lado, o setor privado elevou seu papel do ponto de vista quantitativo. Ou seja, surgiu ao longo das últimas décadas um poderoso setor público na economia chinesa ao lado de um gigantesco setor privado.

No atual estágio de desenvolvimento atingido pela China este tipo de onda de inovações institucionais já não tem como entregar os mesmos efeitos positivos dos momentos anteriores. O próprio governo chinês percebeu isso e lançou mão de um ciclo de inovações institucionais de novo tipo, visando um salto de qualidade nos próprios esquemas de propriedade no país. Trata-se de um processo nada tranquilo, digamos assim.

Ou seja, a substituição da propriedade privada em alguns setores (educação, saúde e imóveis) pela propriedade e/ou regulação pública é um processo nada fácil diante da própria novidade que este tipo de transição enseja. É muito diferente socializar os meios de produção em um ambiente de ruína econômica (por exemplo, Rússia em 1917 e China em 1949) em comparação com uma economia onde existem imensos monopólios privados do porte da Evergrande.

A “terceira grande transição” é o que tenho chamado de “desafio da produtividade”. O país está em transição a novas e superiores formas de acumulação e de planificação econômica com o claro objetivo de alcançar tanto elevação da produtividade do trabalho quanto soberania tecnológica. Este desafio tem um componente político nada trivial: a oposição firme e violenta imposta pelo imperialismo norte-americano diante da possibilidade de a China ter acesso às tecnologias em torno dos chamados microchips.

É pela ótica dessas “três grandes transições” que acredito que devemos observar o comportamento da economia chinesa.

* Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ. Membro do Comitê Central do PCdoB

 

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