Visão Global

EUA: Bernie Sanders parte para o ataque

“Temos um presidente que é um mentiroso compulsivo, uma fraude racista, sexista, xenofóbica, religiosamente intolerante e que está levando este País a um caminho autoritário”. Parece que é sobre Bolsonaro, mas Bernie Sanders está falando de Donald Trump.

Por Wevergton Brito Lima*

O senador Bernie Sanders, que perdeu em 2016 as prévias do Partido Democrata para Hillary Clinton, ficando fora da disputa presidencial daquele ano, lançou, no último dia 02 de março, no Brooklyn, onde nasceu, sua candidatura para as primárias de 2020, prometendo derrotar Donald Trump e “completar a revolução que começamos”.

Em 2016, Donald Trump venceu a eleição presidencial, apesar de ter sido superado por Hillary Clinton em mais de dois milhões e oitocentos mil votos. Eleger um candidato que teve menos votos do que o concorrente é coisa normal no arremedo de “democracia” dos falsos campeões da liberdade.

É nesta singular “democracia” que Bernie Sanders chega a ser considerado um “extremista”, por ter a ousadia de se declarar partidário do “socialismo democrático”. Até mesmo o instável Donald Trump o chama de “louco Sanders”.

No entanto, Sanders é um socialdemocrata moderado. Recentemente, por exemplo, apoiou as provocações do seu país contra a Venezuela bolivariana, embarcando na canoa furada da falsa “ajuda humanitária”.

De qualquer forma, o discurso de Sanders toca em pontos dolorosos da vida real nos EUA, que vão além da imagem projetada pelo aparato midiático: “Hoje, temos mais desigualdade de renda que em qualquer momento desde os anos 1920, e os três americanos mais abastados têm mais riqueza que a metade mais pobre da população (…) milhões trabalham em mais de um emprego porque recebem salários de fome, 34 milhões de americanos não tem plano de saúde, e pagamos os preços mais altos do mundo pelos remédios com prescrição médica (…) Temos uma das taxas mais altas de pobreza infantil entre as principais nações e um sistema de creches disfuncional e financeiramente inacessível. Enquanto muitos Republicanos querem cortar a Segurança Social, algo próximo da metade dos americanos mais velhos não tem poupança para aposentadoria alguma.”

Bernie Sanders colocou Trump no centro do ataque: “temos um presidente que é um mentiroso compulsivo, uma fraude racista, sexista, xenofóbica, religiosamente intolerante e que está levando este País a um caminho autoritário”, afirmou.

O senador por Vermont terá uma dura batalha pela frente. Além do poderoso rival republicano, já anunciaram que irão concorrer às primárias do Partido Democrata outros nove candidatos e mais devem surgir. Mas Sanders é muito popular, carismático e por pouco não ganhou a prévia de 2016.  Levando em conta a realidade do mundo político estadunidense e seus limites, Sanders é uma boa novidade e a derrota de Trump para um “socialista” (mesmo um socialista à moda dos EUA), serviria para aumentar a margem de manobra por bandeiras progressistas mais avançadas, tanto dentro quanto fora dos EUA.

Isso sem contar que o presidente brasileiro e seu chanceler maluquinho, diante de uma eventual derrota de Trump para um maligno produto do “marxismo cultural”, teriam que procurar outro líder mundial para se subordinarem na cruzada em “defesa da sociedade cristã e ocidental”, tarefa nada fácil e motivo mais do que o suficiente para que muita gente acompanhe com simpatia a candidatura Sanders.

Leia, abaixo, a íntegra do discurso do senador Bernie Sanders de 2 de março, traduzido por Guilherme Arruda (militante do RUA e estudante da USP) e publicado no Portal Vermelho.

* Jornalista, editor do i21

Há alguns dias, quando lançamos nossa campanha presidencial, convidei pessoas de todo o País a se inscreverem para fazer parte de uma campanha pela base (1) sem precedentes. A resposta do povo americano (2) foi histórica.

Em seis dias, mais de um milhão de pessoas responderam a meu chamado. Americanos de cada um dos distritos congressuais (3) no País se dispuseram a ajudar a liderar um movimento que não é apenas sobre derrotar Donald Trump, o presidente mais perigoso na história moderna americana, mas também sobre criar um governo baseado nos princípios de justiça econômica, social, racial e ambiental.

Essa tarefa não será fácil. Hoje, temos mais desigualdade de renda que em qualquer momento desde os anos 1920, e os três americanos mais abastados têm mais riqueza que a metade mais pobre da população.

A despeito do desemprego relativamente baixo, milhões trabalham em mais de um emprego porque recebem salários de fome, 34 milhões de americanos não tem plano de saúde, e pagamos os preços mais altos do mundo pelos remédios com prescrição médica.

Vergonhosamente, tratamos os mais vulneráveis entre nós com desdém. Temos uma das taxas mais altas de pobreza infantil entre as principais nações e um sistema de creches disfuncional e financeiramente inacessível. Enquanto muitos Republicanos querem cortar a Segurança Social (4), algo próximo da metade dos americanos mais velhos não tem poupança para aposentadoria alguma.

E, no meio disso tudo, temos um presidente que é um mentiroso compulsivo, uma fraude racista, sexista, xenofóbica, religiosamente intolerante e um alguém que está levando este País a um caminho autoritário.

Para ter êxito em criar um governo e uma economia que funcionam para a maioria (5), teremos que ir pro embate com interesses poderosos que dominam nossa vida política e econômica– Wall Street, as empresas de plano de saúde, as companhias farmacêuticas, a indústria dos combustíveis fósseis, o complexo industrial-militar, o negócio das prisões privatizadas e corporações multinacionais. Esses interesses têm poder extraordinário, e vão gastar quantias enormes de dinheiro para manter sua riqueza e o status quo.

O único método com que conseguiremos derrotar Trump e os interesses que o apoiam é com um movimento de bases – de um tipo nunca antes visto na história dos Estados Unidos. Precisamos nos unir – mulheres e homens, negros, brancos, latinos, nativos americanos, os de origem asiática, LGBTs e heterossexuais (6), jovens e velhos, nascidos em solo americano e imigrantes – para enfrentar os desafios que encaramos enquanto nação.

Em um momento em que nossa infraestrutura está caindo aos pedaços e temos uma crise de acesso à moradia, podemos criar milhões de empregos de boa remuneração na reconstrução de nosso País. Juntos, podemos aumentar o salário mínimo para um salário digno de 15 dólares a hora (7), prover igualdade salarial para as mulheres e garantir licença médica e familiar remunerada para todo trabalhador.

Não temos condições de esperar mais tempo para lidar com a ameaça existencial das mudanças climáticas (8). Precisamos transformar nosso sistema energético afastando-o dos combustíveis fósseis em direção à energia eficiente e sustentável, criando milhões de empregos nesse processo.

Enquanto gastamos quase o dobro per capita em saúde em comparação com outros países, nossos resultados são piores e a expectativa de vida está em queda. Chegou a hora de nos somarmos a quase todos os principais países do mundo e garantir saúde para todos como um direito, e não como um privilégio, por meio de um programa de Cuidado Médico Para Todos (9).

Inacreditavelmente, os americanos estão sobrecarregados com um trilhão e meio de dólares em dívidas de financiamento de faculdade e muitos jovens não conseguem pagar o custo do ensino superior. Precisamos abaixar o nível grave de dívidas estudantis e tornar gratuitas as faculdades e universidades públicas.

Os Estados Unidos têm a taxa de encarceramento mais alta do mundo e negros(10) são presos em taxas cinco vezes mais altas que brancos. Nossa tarefa é acabar com a destrutiva “guerra às drogas”, eliminar as prisões privatizadas e a fiança em dinheiro e fazer reformas substanciais nos departamentos de polícia.

Em vez de demonizar os imigrantes sem documentação como nosso atual presidente tem feito, devemos lutar por uma reforma abrangente na imigração, um caminho para a cidadania, status de legalidade imediata para os jovens aptos a participar do DACA (11) e uma diretriz humana para os que estão na fronteira pedindo asilo.

Em um momento em que os direitos das mulheres estão sob ataque a nível local, estadual e federal, devemos defender o direito da mulher de ter controle sobre seu próprio corpo.

Para confrontar a epidemia de violência com armas de fogo, devemos nos confrontar com a Associação Nacional de Rifles [NRA] (12), expandir a investigação de antecedentes, acabar com o furo na legislação dos gun shows e banir a venda e distribuição de armas de assalto (13).

Por fim, devemos acabar com o apoio de Trump a líderes autoritários. Precisamos de uma política externa focada [nos temas de] democracia, direitos humanos, paz mundial, desigualdade global de renda, mudanças climáticas e a gigantesca evasão e sonegação fiscal das corporações.

Em 2016, nossa campanha começou uma revolução política. As ideias pelas quais lutamos, que na época eram consideradas “radicais” ou “extremas”, agora são apoiadas pela maioria dos americanos. Agora é hora de derrotar Donald Trump, completar a revolução e implementar a visão pela qual lutamos.

Notas do Tradutor:

  1. Traduziu-se a expressão grassroots (literalmente, “raiz de grama”), que identifica os pequenos movimentos sociais dos EUA e suas iniciativas políticas por “pela base”, expressão que transmite a ideia que Bernie tenta passar de uma campanha construída por pessoas comuns.
  2. Por óbvio, “americano” aqui se refere a cidadão do país Estados Unidos da América, termo infelizmente excludente, mas que decidiu-se não traduzir pelo tradicional “estadunidense”.
  3. Divisão política básica dos Estados Unidos, cada um destes distritos congressuais elege um deputado para a Câmara dos Representantes, que é o equivalente à Câmara dos Deputados do Brasil.
  4. Social Security é o nome oficial do sistema de Previdência dos EUA.
  5. Works for the many: referência ao slogan de outro relevante líder de esquerda de projeção internacional, Jeremy Corbyn.
  6. Straight: gíria sem tradução direta, basicamente significa “héteros”. Também traduziu-se com alguma dose de interpretação as referências de etnia.
  7. Na cotação de março de 2019, isso é um salário mensal de 2400 dólares, algo como 9000 reais. Atualmente, o salário mínimo dos EUA é pouco menos que a metade desse valor.
  8. Climate change é o termo em inglês para o que costuma-se chamar no Brasil de aquecimento global.
  9. Do inglês, Medicare for All.
  10. A expressão original é African Americans que, numa simplificação um pouco grosseira, são os negros dos EUA.
  11. DACA é uma medida do governo americano que impede que jovens de até 16 anos que imigraram para os Estados Unidos sem documentação sejam deportados, e que também oferece vistos temporários de estudo e trabalho. Dados coletados no site da University of California at Berkeley.
  12. NRA é uma associação civil estadunidense que faz lobby pela liberação irrestrita de uso, compra e venda e porte de armas de fogo, aliada tradicional da direita americana.
  13. Assault weapons: conceito jurídico americano para armas de acionamento rápido e de rápidos tiros em sequência. Utilizado a partir do alastramento dos massacres em escolas.

 

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