Nacionalismo progressista do Sinn Féin conquista resultado eleitoral histórico e pode governar a Irlanda
Com resultado inédito na eleição geral do sábado (8), o partido progressista Sinn Féin, nascido do movimento republicano e independentista face à colonização britânica, iniciou negociações para formar um governo. Em primeiro lugar no voto popular e em segundo no número de parlamentares eleitos, o Sinn Féin comemora seu avanço eleitoral com a chance de governar a Irlanda.
Por Moara Crivelente*
Entre as principais propostas do Sinn Féin estão a melhoria do acesso à saúde e à habitação, problemas gravíssimos no país acentuados pela crise de 2008-2009 e ainda persistentes, embora a Irlanda já registre uma das maiores taxas de crescimento da Europa. Para muitos, seu compromisso social é a razão central do avanço eleitoral do partido, que angariou 24,5% dos votos, enquanto os partidos à direita, Fine Gael —que lidera o governo atual— e Fianna Fáil ficaram com 21% e 22%, respectivamente.
A formação de um governo este ano requer o mínimo de 81 dos assentos disponíveis na Dáil Éireann, câmara baixa, a principal do sistema parlamentar bicameral (Oireachtas), que também inclui a câmara alta (Seanad) e a Presidência. Os membros da Dáil são eleitos a cada cinco anos num sistema de representação proporcional. O total de assentos, definido em relação à população, por emenda constitucional, deve ficar entre 153 e 160. Em 2020 é de 160, mas o presidente da Dáil foi reeleito automaticamente, restando 159 assentos.
No sábado, o Fiana Fáil elegeu 38 parlamentares; o Sinn Féin, com menos candidatos que seus concorrentes, 37; o Fine Gael, 35; Independentes, 19; Verdes, 12; e o Trabalhista e o Social-Democrata, 6 cada um, entre outros três grupos com ainda menos. Antes das eleições, tanto o Fine Gael quanto o Fianna Fáil descartaram a hipótese de uma coalizão com o Sinn Féin, posição que o líder do primeiro e atual chefe de governo (taoiseach) Leo Varadkar reforçou após a divulgação dos resultados, reconhecendo que também para ele será difícil formar um governo.
Mesmo assim, o periódico An Phoblacht, de larga trajetória na história do movimento republicano irlandês e do próprio Sinn Féin, cita a líder do partido, Mary Lou McDonald, em sua avaliação do que foi uma “revolução na urna eleitoral”, na segunda-feira (10). Pela primeira vez na história, nota a publicação, o partido tem parlamentares representando cada um dos distritos e 17 entre os 20 candidatos mais votados. Por isso, Mary Lou McDonald considerou os resultados “sísmicos” e afirmou o empenho do Sinn Féin por corresponder à expectativa popular e à vontade de superar a bipolarização entre partidos conservadores e de direita. Os partidos com os quais Sinn Féin está negociando são o People Before Profit (Pessoas antes de Lucros) e os Verdes.
Mas além dos principais temas sociais que levaram ao avanço do partido nas urnas, outro tem recebido justificada atenção.
O Sinn Féin nasceu da luta republicana e defende ardentemente a reunificação da Irlanda, dividida em 1921. Originário do movimento feniano nacionalista e independentista do século 19 e do partido fundado em 1905 por Arthur Griffith, a atual formação resulta da reorganização dos anos 1970. A luta por independência da prolongada colonização britânica teve grande repercussão na Europa e nos EUA no fim do século 19.
Em acirrados debates dentro da própria Internacional, Karl Marx liderou então aparentemente audazes propostas de respaldo aos independentistas através da solidariedade entre trabalhadores britânicos e irlandeses, enfatizando a relação entre as lutas por emancipação social e emancipação nacional.
Já a proposta de reunificação da Irlanda ganhou fôlego com o furacão do Brexit, a saída britânica da União Europeia (UE), arrastado pelos últimos anos. Nesse período discutiu-se o impacto da saída do Reino Unido, que inclui a Irlanda do Norte, nos acordos de paz de 1998 que encerraram o conflito armado de quase quatro décadas entre republicanos e unionistas —os defensores da permanência irlandesa no Reino. Hoje, o sistema de governo da Irlanda do Norte, chefiado por um Comitê Executivo, é baseado nos acordos.
Por isso, é notável também o anúncio do Sinn Féin, na segunda (10), de que pretende participar nas instituições de partilha de poder na Irlanda do Norte, o que evitava, mesmo sendo eleito. Em 2017, o partido retirou-se da coalizão de governo obrigatória com o Partido Unionista Democrático (DUP —sigla em inglês), mas desde 2018 tem havido avanços nas negociações por mudanças no sistema e conquistas como o reconhecimento oficial do idioma gaélico irlandês e reformas jurídicas que o partido considera justificarem sua nova posição, embora tenha denunciado concessões do DUP ao Reino Unido. A vice-presidenta do Sinn Féin Michelle O’Neil é a vice-primeira-ministra do Comitê Executivo a partir deste ano.
Comercialmente, o Brexit também colocou desafios à Irlanda por causa das suas exportações ao Reino Unido, seu segundo maior mercado, e à própria UE, já que é através do acesso britânico ao continente que a Irlanda exporta grande parte da sua mercadoria à Europa. Não é à tôa que um dos impasses no Brexit foi a solução para a fronteira aduaneira, já que a República segue na UE e a Irlanda do Norte sai com o restante do Reino Unido.
Logo após as eleições, a líder do Sinn Féin pediu o respaldo da UE na promoção da reunificação da Irlanda, fazendo alusão ao seu apoio à reunificação da Alemanha. No Parlamento Europeu, o partido integra o Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde (GUE/NGL).
Como o conflito ainda é tema sensível, a notícia do avanço eleitoral do Sinn Féin tem sido persistentemente coberta com associação direta ao Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), na pretensão de ligar o partido ao que foi encravado na memória europeia como “terrorismo”. A associação sequer é sutil, como se vê em reportagens da emissora britânica BBC, onde a menção ao Sinn Féin como “braço político do IRA” é acompanhada por antigas imagens de vítimas do conflito armado retiradas de escombros.
Mesmo assim, já nas eleições de 2016 o Sinn Féin havia aumentado sua presença parlamentar em nove assentos, mas também o Fiana Fáil, angariando mais 23, enquanto o Fine Gael, que até então governava em coalizão com o Trabalhista, perdeu considerável número de parlamentares, inviabilizando a coalizão. Mesmo assim, o Fiana Fáil teve dificuldades para formar um governo até que, dois meses após as eleições, alcançou um acordo com o Fine Gael para um frágil governo minoritário liderado pelo último e respaldado por nove independentes.
Por isso, embora difíceis, as negociações dos próximos dias podem abrir portas para uma saída popular e progressista de repercussões ainda mais abrangentes do que as importantes e necessárias reformas em políticas sociais e a defesa dos direitos básicos que os eleitores demandam, como mostram as urnas.
*Moara Crivelente é cientista política e membro da Comissão de Relações Internacionais da Secretaria de Política e Relações Internacionais do PCdoB.