Luta dos povos

OLP: As razões para o repúdio ao acordo entre Emirados Árabes e Israel

A Organização para a Libertação da Palestina (OLP), através do seu Departamento para Assuntos das Negociações, publicou neste domingo (16) uma lista de respostas sobre a sua oposição ao acordo de normalização das relações diplomáticas entre Emirados Árabes Unidos (EAU) e Israel, mediado pelos Estados Unidos. O acordo provocou protestos dos palestinos. A OLP apresenta importante leitura da conjuntura diplomática e da situação na Palestina ocupada. Leia a tradução do documento, feita pelo Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).

O Acordo EAU-Israel para Normalizar Relações

16 de agosto de 2020

Sobre a Declaração Conjunta dos Estados Unidos, Israel e os Emirados Árabes Unidos anunciando o Acordo EAU-Israel para Normalizar Relações (1)

  1. Pode este acordo ser descrito como “histórico avanço diplomático (que) promoverá a paz na região do Oriente Médio”?

Este anúncio tripartite insinua que Israel encerrou sua ocupação da Palestina, o que não é o caso. Até a data desse anúncio, a posição histórica dos EAU sobre a Palestina continuava acompanhando a posição da Liga Árabe e seus estados membros. De acordo com a Iniciativa Árabe de Paz de 2002 (IAP), a promoção da paz no Oriente Médio e, assim, a normalização [das relações] com Israel só podem ocorrer quando Israel afirmar: (I) “A completa retirada israelense de todos os territórios ocupados desde 1967”, inclusive o Golã ocupado sírio e os territórios libaneses ainda ocupados. (II) “A conquista de uma solução justa ao problema dos refugiados palestinos a ser acordada segundo a Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU.” (III) “A aceitação do estabelecimento de um estado palestino soberano independente sobre os territórios palestinos ocupados desde 4 de junho de 1967 na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, com Jerusalém Leste como sua capital.” Por isso, com esse acordo, os EAU transgridem a IAP e todos os seus termos de referência.

A questão da Palestina segue não resolvida. A ocupação, colonização e a opressão, por Israel, do povo palestino, é contínua, com graves violações do direito internacional e dos seus direitos humanos perpetradas a cada dia. Para os palestinos, o dia desse anúncio, 13 de agosto de 2020, também será recordado como o dia em que aviões israelenses lançaram ataques aéreos contra vários locais na Faixa de Gaza, inclusive uma escola de ensino básico da UNRWA [Agência das Nações Unidas para Assistência e Trabalhos para os Refugiados da Palestina] no Campo de Refugiados Al-Shati. A escola foi fechada quando se encontrou o míssil logo desmantelado antes que explodisse, causando dano a várias salas de aula (2). Também foi neste dia que o primeiro-ministro israelense declarou que continua determinado a cumprir seus planos ilegais de anexação.

  1. Quais são as consequências da aceitação, pelos EAU, da normalização de relações com Israel? 

Esta é a primeira vez que um país árabe, que não está em direto estado de guerra com Israel, concorda em ter relações normais completas com Israel. Com esta medida, os EAU decidiram enfraquecer a posição árabe, islâmica, palestina e internacional que insta a um fim da ocupação por Israel e à conquista da autodeterminação e independência palestina, pilares essenciais de uma solução justa. Este acordo também abre as portas à normalização das relações entre Israel e outros países árabes. Recompensando Israel, a potência ocupante, com a normalização antes da solução da questão da Palestina em todos os seus aspectos, dentro de uma solução justa e abrangente, ou mesmo antes de qualquer esforço credível por este fim, é inaceitável, irresponsável e perigoso.

Este acordo não somente encoraja Israel a seguir rejeitando o princípio de “terra por paz” e a solução de dois estados baseada nas fronteiras pré-1967, mas também serve ao projeto colonial do “Grande Israel” [a ser estabelecido] entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo. Obviamente, após a divulgação da declaração conjunta, o primeiro-ministro [Benjamin] Netanyahu deliberadamente classificou este acordo como “paz pela paz“. Ele também disse: “Quem jamais sonharia que haveria um acordo de paz com um país árabe sem retornarmos às fronteiras de 1967”. Desta forma, Israel e o Governo Trump buscam construir uma aliança regional entre alguns países árabes, especialmente os estados do Golfo, e Israel, uma que efetivamente debilite e contorne os direitos nacionais palestinos, e não só para confrontar riscos como a ameaça de terrorismo ou a ilusória ameaça iraniana.

Como tal, esse acordo implica a cumplicidade dos EAU com a ocupação por Israel e a anexação de fato da Palestina, o empenho colonial de assentamento e a realidade de apartheid criada. Qualquer “acordo” que ignore esta realidade e permita sua continuidade, ao invés do fim da ocupação israelense iniciada em 1967, consolidará ainda mais os projetos coloniais e políticas opressivas de Israel contra o povo palestino. Isto continuará a prejudicar a segurança de toda a região e do mundo e debilitará esforços por se alcançar a paz genuína e a estabilidade no Oriente Médio. O consentimento dos EAU em “expandir a cooperação diplomática, comercial e securitária” com Israel é uma recompensa que será explorada pela potência ocupante como carta branca para continuar cometendo graves violações dos direitos humanos, do direito internacional e do direito internacional humanitário na Palestina ocupada, inclusive Jerusalém Oriental. Além disso, representa claramente um favor eleitoral para o primeiro-ministro Netanyahu e o presidente Trump, dando-lhes um salva-vidas em meio aos problemas que os cercam.

  1. Os EAU não são livres para fazer o que melhor servir seus interesses — que este acordo possa criar uma região melhor, como acreditam? 

Como um país árabe, os EAU são comprometidos com os fundamentos da solidariedade árabe, estando entre os mais proeminentes o consenso árabe e o respeito pelas decisões das cúpulas árabes. Por isso, os EAU não são completamente livres para violar essas decisões a menos que anunciem sua recusa ou se retirem do sistema árabe. O interesse nacional de todo país árabe, inclusive os EAU, é definido em linha com suas obrigações árabes e internacionais. Consequentemente, esse interesse não implica o que for contrário à IAP e às decisões das cúpulas árabes, a mais recente das quais sendo as Cúpulas de Dhahran e de Túnis.

Os EAU, como qualquer outro país, são livres para promover seus interesses, desde que não o faça às custas da Palestina. Os EAU não têm direito de negociar em nome do povo da Palestina ou de comprometer seus interesses.

  1. Este acordo está em correspondência com a Constituição dos EAU, as cúpulas árabes e islâmicas e a Iniciativa Árabe de Paz? 

O acordo é inconsistente com a Constituição dos EAU, que enfatiza que são parte da nação e do mundo árabe e, portanto, “vinculados por laços de religião, idioma, história e destino comum.” Também especifica que a política externa dos EAU deve se guiar pelo “apoio às causas árabes e islâmicas (…) na base dos princípios da carta das Nações Unidas e nos padrões internacionais ideais.”

O acordo viola a Carta da Liga Árabe de 1945, que declara que “A Liga tem como objetivo fortalecer as relações entre os estados membros, a coordenação das suas políticas para alcançar a cooperação entre eles e para assegurar sua independência e soberania; e uma preocupação geral pelos assuntos e interesses dos países árabes”. Desde então, a questão da Palestina tem estado ativamente presente na agenda da maioria das cúpulas árabes e islâmicas e sua centralidade é reiteradamente enfatizada. Mais ainda, elas ressaltam que fazer frente aos perigos do sionismo é uma responsabilidade nacional dos povos de todos os países árabes e islâmicos em prol da restauração dos direitos árabes na Palestina. Com relação à IAP, os Estados Árabes enfatizam e condicionam a normalização de relações com Israel no contexto de uma paz abrangente. [A IAP] demanda a “completa retirada israelense de todos os territórios árabes ocupados desde junho de 1967, na implementação das Resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança, reafirmadas pela Conferência de Madri de 1991 e o princípio de paz por terra, e a aceitação, por Israel, do estado palestino independente, com Jerusalém Leste como sua capital (…)”.

O acordo contradiz as resoluções de três cúpulas árabes, a de Amã em 1980, a de Bagdá em 1990, e a do Cairo em 2000, que instam à suspensão das relações com qualquer país que reconheça Jerusalém como capital de Israel ou transfira sua embaixada à Cidade. Também desconsidera as sucessivas cúpulas árabes, inclusive as realizadas em Dhahran em 2018 e na Tunísia em 2019, e as resoluções da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI), a mais recente das quais foi a reunião extraordinária de 10 de junho de 2020, especificamente abordando a ameaça de anexação israelense. Além de outras medidas de responsabilização, a OCI instou à imposição de sanções econômicas e políticas a Israel, boicotando sua empreitada colonial e banindo seus produtos provenientes das colônias.

  1. Quais são as consequências da denominação deste acordo tripartite como “Acordo de Abraão”?

Tal designação mostra o quanto o Governo Trump está mergulhado na mentalidade religiosa/ideológica que forma a fundação do Plano Trump. Enfatiza a dimensão religiosa em detrimento da solução política baseada no direito internacional e nos direitos humanos, apresentando assim uma solução desequilibrada, injusta e insustentável para encerrar o conflito.

Apresentando esta narrativa dentro de um quadro religioso, sem lidar com a essência do problema, o Governo Trump insiste em dar um caráter religioso ao conflito e atiçar ainda mais as tensões entre as três religiões monoteístas. Essa designação também reflete o papel de liderança do Governo Trump neste acordo vergonhoso, com os EAU acatando a vontade dos Estados Unidos.

  1. O que diz o acordo diz sobre Jerusalém? 

Enquanto as autoridades emiradenses apresentam o acordo como uma “vitória” para a causa palestina e a paz regional, na realidade, isso é contradito pelo fato de ter sido alcançado no quadro da iniciativa dos Estados Unidos-Israel visando perpetuar a ocupação e colonização israelense da Jerusalém ocupada, o coração da Palestina e de centenas de milhões de árabes e muçulmanos em todo o mundo. O acordo equivale ao reconhecimento de fato da anexação ilegal de Jerusalém por Israel, já que evita qualquer referência ao direito internacional e a resoluções relevantes da ONU, ou aos direitos inalienáveis do povo palestino em sua Cidade. Ao contrário, usa o Plano de Anexação estadunidense (Plano Trump) como referência, o que indica aceitação da anexação ilegal de Jerusalém Oriental ocupada por Israel e seu controle sobre o recinto da Mesquita Al-Aqsa e da Igreja do Santo Sepulcro, e de outros locais sagrados muçulmanos e cristãos na Cidade. Trata-se de posição que contradiz descaradamente as normas do direito internacional e várias resoluções da ONU. Além disso, a declaração faz referência à abertura do recinto da Mesquita Al-Aqsa a “devotos pacíficos” de “todas as crenças”, o que ameaça colocar em risco o status quo jurídico e histórico de Jerusalém e seus locais sagrados.

  1. Este acordo sequer deterá os planos ilegais de Israel de anexação?

A normalização de relações entre Israel e países árabes permitirá a Israel anexar de jure as terras palestinas sob sua ocupação em qualquer estágio posterior, implementando a promessa de Netanyahu. Neste sentido, não se pode ignorar que, após o anúncio do acordo, o primeiro-ministro Netanyahu disse, descaradamente: “Eu também disse que levaria soberania [israelense] sobre a Judeia e Samaria [Cisjordânia]. Não há mudanças no meu plano de fazer isso, em total coordenação com os Estados Unidos. Estou comprometido com isso. Nada mudou.”

Sem dúvida, a alegada “suspensão da anexação” é apenas um pretexto para justificar o desvio dos EAU do consenso árabe e islâmico e induz as comunidades árabes e internacional a enxergar tal acordo como benéfico aos interesses do povo da Palestina. A realidade é que tal acordo pode apenas facilitar a implementação continuada e gradual dos planos de Israel de anexação enquanto desvia e prejudica uma resposta da comunidade internacional. A anexação de fato das terras palestinas é contínua, desde o início da ocupação e tomada, à força, por Israel, da Cisjordânia, inclusive Jerusalém Leste, e da Faixa de Gaza, em 1967; ela segue, até hoje, inabalável (3). Estes são fatos que não podem ser ignorados; a comunidade internacional não pode ceder em sua pressão sobre Israel para que acabe com essas ações ilegais e destrutivas.

  1. Quais são a posição e demandas do Estado da Palestina?

Todos os componentes políticos e civis do povo palestino, na pátria, no exílio e na diáspora, expressaram sua rejeição e condenação unânimes à declaração tripartite, que foi descrita como uma traição da justa causa da Palestina e de Jerusalém e o complexo da Mesquita Al-Aqsa. Através de uma declaração oficial, a liderança palestina rejeitou este acordo descrevendo-o como um “golpe contra a Iniciativa Árabe de Paz e as decisões das cúpulas árabes e islâmicas, assim como uma agressão contra o povo palestino.” A liderança instou os EAU a se retirarem dessa declaração “vergonhosa” imediatamente. Enfatizou que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) continuará sendo a única e legítima representante do povo palestino e que não deveria haver correlação entre os planos ilegais de anexação israelenses e qualquer passo para a normalização com Israel por parte dos EAU ou qualquer outro Estado Árabe: “Nem os Emirados nem qualquer outra parte tem o direito de falar em nome do povo palestino. A liderança palestina não permitirá qualquer interferência nos assuntos palestinos ou que decidam em seu nome relativamente aos seus direitos legítimos em sua pátria.”

O Estado da Palestina convocou seu embaixador nos EAU e exigiu que os EAU voltem atrás em sua decisão. A liderança instou outros países árabes a possivelmente tomar medida similar e urge a Liga Árabe a respeitar a vontade do seu povo; a encerrar tão unilateral e irresponsável comportamento e cumprir sua carta, com base nas fundações da solidariedade árabe e na posição árabe conjunta e unificada. A liderança insta à realização de sessões de emergência imediatas da Liga Árabe e a Organização para a Cooperação Islâmica para abordar a questão. Reiterou ainda a importância da adesão ao direito internacional e às resoluções; e que a conquista da paz só é possível através do fim completo da ocupação da Palestina por Israel e à realização, pelo povo palestino, dos seus direitos inalienáveis, inclusive à autodeterminação e à independência.

Notas:

(1) Daqui em diante, “o acordo”.

(2) Entre outras violações israelenses cometidas naquele dia, e durante várias batidas realizadas em vilas e cidades palestinas na Cisjordânia, as forças de ocupação israelenses realizaram detenções de palestinos em Jerusalém Oriental e nos distritos de Belém, Hebron, Jenin e Salfit. Além disso, terras pertencentes à vila palestina de Kafr Al-Lubad, no distrito de Tulkarem, foram devastadas para a construção de uma estrada para colonos de 10 quilômetros, levando à colônia de “Avni Hefetz”, estabelecida nas terras da vila.

(3) Aproximadamente 52% da área total da Cisjordânia ocupada está sujeita ao controle e às medidas restritivas israelenses, inclusive, entre várias designações: terras palestinas declaradas como terras do estado de Israel, zonas militares fechadas, reservas naturais, áreas de assentamento e áreas palestinas isoladas pelo muro de anexação de Israel. Relativamente aos novos anúncios de colônias, mais recentemente, dois planos israelenses foram revelados para a construção de quase 3.500 unidades em colônias na área reservada para o projeto colonial E1, localizado na área leste de Jerusalém. De acordo com a organização israelense Peace Now, o período de objeção a esses planos terminaria em 18 de agosto de 2020. A Comissão de Resistência à Colonização e ao Muro relatou que, durante a primeira metade de 2020, 60 planos de colonização israelenses foram anunciados para a construção de mais de 10.500 unidades nas colônias israelenses em terras pertencentes ao Estado da Palestina. De acordo com o OCHA [Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários], neste ano, até o final de julho de 2020, Israel realizou quase 200 operações de demolição, o que levou à destruição completa e confisco de 388 lares e estruturas palestinas, deslocando ou afetando mais de 2.300 palestinos.

 

Fonte: NAD – PLO via Cebrapaz / Tradução: Moara Crivelente-Cebrapaz

 

Leia também: