Luta dos povos

Revolução Sandinista: 40 anos enfrentando o império

A Nicarágua festeja nesta sexta-feira (19) os 40 anos da Revolução Sandinista. Forças progressistas de todo o mundo acorrem a Manágua para prestar seu tributo a esta epopeia popular que “tocou o céu com as mãos”. Márcio Cabreira, membro da Comissão Executiva Nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Socorro Gomes, presidenta do Conselho Mundial da Paz (CMP), entre outros, participam da comemoração a convite da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

Abaixo, reproduzimos, somando-nos a esta justa celebração, importante artigo publicado originalmente no site La Voz del Sandinismo. Nele, a autora, a jornalista argentina Stella Calloni, testemunha ocular da Revolução Sandinista, desnuda o papel do imperialismo estadunidense na Nicarágua, desde a Revolução até os dias atuais.

“Desde a gesta pungente de Revolução Sandinista até o contexto atual do governo de Daniel Ortega, é permanente o papel dos Estados Unidos e de suas políticas de contra insurgência”

Por Stella Calloni

Em 19 de julho de 1979, apenas 48 horas após o voo para Miami do ditador Anastasio Somoza Debayle e seus colaboradores em aviões de sua empresa familiar, chegaram a Manágua as primeiras tropas – a maioria delas muito jovens, quase crianças – da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), criada nos anos 60, e o povo foi às ruas, desobedecendo ao toque de recolher de Manuel Urcuyo, o sucessor que o fugitivo nomeou, sem entender que a revolução havia triunfado.

Seria impossível descrever esses dias finais, no meio das batalhas mais difíceis, sob os bombardeios que Somoza havia ordenado, que produziram várias vítimas e destruíram cidades em vão porque os bastiões da Guarda Nacional já haviam caído um após o outro.

Ainda me lembro dos sinos da Igreja de Masaya, que começaram a soar quando a cidade castigada foi tomada pelos jovens revolucionários e as pessoas oprimidas transbordando pelas ruas com pedras, paus, espingardas velhas, pistolas enferrujadas, determinando o triunfo da FSLN sobre a dinastia Somoza, que chegou ao poder após o assassinato do herói nacional Augusto Sandino na década de 1930.

A ofensiva final cresceu rapidamente a partir de meados de 1978 e avançou como um rio transbordante. Em 16 de julho, a FSLN tomou Esteli (León já estava nas mãos dos revolucionários), que haviam declarado a capital provisória, e de lá eles revogaram a Constituição Somozista, dissolveram o Congresso e a Guarda Nacional.

Finalmente, em 20 de julho, a junta revolucionária chegou a Manágua. Isso foi indescritível. Ali estava o novo exército, com seus membros em roupas rasgadas, armas antigas, que mostravam a enorme diferença em comparação com as tropas de Somoza, armadas por Washington.

“Frijolitos de la libertad”

O país estava destruído, não só por causa da guerra, mas também porque Somoza manejava a nação como se fosse uma propriedade sua. Os dias que se seguiram foram como “ter tocado o céu com as mãos”. disse que o único sobrevivente fundador do FSLN, o comandante Tomás Borge Martínez, nomeou o ministro do Interior. Foram dias de intensas emoções, alegria, festas e lágrimas pelas quase 50 mil mortes pela ditadura e na guerra de libertação nacional.

O que poderia definir esse momento histórico é que estávamos vivendo a juventude do mundo. Um dos eventos mais emocionantes foi ver um grupo de pessoas idosas chegarem entre as ruas empoeiradas, com os pés calçados com cutarras (sapatos muito velhos feitos à mão) e roupas usadas e muito velhas. Eles eram sobreviventes do exército de Sandino que saíram do esconderijo, uma clandestinidade de anos, para conseguirem comer o que chamavam de “frijolitos de la libertad”.

Isso aconteceu há 40 anos. Logo vivemos o processo de alfabetização, pois em alguns lugares até 90% da população era analfabeta e, além disso, nunca tinham visto um médico. Saúde, educação, resgate de milhares de famílias da mais absoluta pobreza, distribuição de terras aos camponeses, recuperar a cultura, a memória, a identidade. Impor justiça para as milhares de vítimas. Pela primeira vez, a Nicarágua foi resgatada do esquecimento dos séculos.

As medidas tomadas pela Revolução foram reconhecidas pelo mundo, mas muito em breve começaria a guerra secreta dos EUA contra os sandinistas, instalada desde a década de 1980 com a criação do exército mercenário de “los contras”, recrutado entre os maiores assassinos da Guarda Nacional Somozista e outros, sob a direção da CIA.

Para isso, foi tomada Honduras, na fronteira com a Nicarágua, onde além de Palmerola instalaram outras bases para desencadear uma guerra terrorista contra os sandinistas. Como correspondente do jornal mexicano Uno Más Uno, colaboradora do El Periodista de Buenos Aires e outros meios de comunicação, também falei sobre essa guerra implacável. Lembro-me de ter vindo a aldeias invadidas pelos “contras” e ajudado a recolher corpos desmembrados de crianças, mulheres e idosos.

Essa era uma cena comum naquela guerra cruel, agravada pela chegada de Ronald Reagan ao governo dos Estados Unidos, que levou ao caso mais escandaloso de corrupção: militares dos EUA liderados pelo coronel Oliver North e outros oficiais que hoje retornaram no governo pela mão de Donald Trump, impuseram o chamado narco-gate e Irã-gate. No primeiro caso, ao enviar drogas para a Flórida, usando o Comando Sul no Canal do Panamá; no segundo, vendendo armas para o Irã, para pagar os “contras” em sua guerra terrorista.

Poucos se lembram hoje desta guerra encoberta que deixou mais 70 mil mortos e impediu os maiores avanços propostos pelo processo revolucionário.

Quatro décadas

Agora, sob uma rajada terrorista midiática, política e com violência mercenária, os EUA instalaram uma guerra de contra insurgência no século 21, quando o governo de Daniel Ortega fez avanços políticos, sociais e econômicos que as organizações internacionais destacaram, depois de ganhar, nas eleições de 2016, pela terceira vez consecutiva, com mais de 72% dos votos.

Usando o esquema de golpe com mercenários e terroristas escudados por uma marcha estudantil, em abril de 2018, incendiaram prédios, centros de saúde, universidades, escolas, casas de famílias sandinistas, atacaram com armas e queimaram as duas estações de rádio oficiais, em um país onde o poder econômico controla a maioria absoluta da mídia. Trump declarou abertamente que o “eixo” Venezuela-Nicarágua-Cuba, acrescentando a Bolívia de maneira encoberta, é “inimigo”.

As investigações do jornalista norte-americano Max Blumenthal expuseram o papel da USAID, da Freedom House e da National Endowment Foundation (NED) no financiamento de ONGs nicaraguenses, que pediram a derrubada de Ortega.

Segundo Blumenthal, a USAID alocou cerca de 5,2 milhões de dólares em 2017 para a suposta formação da sociedade civil e organizações de meios de comunicação. Ele destacou ainda que em junho, os líderes do M19, o grupo estudantil que deu início aos protestos contra o governo, viajaram a Washington para se encontrar com a ultradireita dos EUA, como os congressistas cubano-americanos Marcos Rubio, Ted Cruz e Ileana Ross Lehtinen. Eles também se encontraram com Mark Green, diretor da USAID, que manifestou seu apoio contra o governo sandinista. A viagem foi paga pela Freedom House.

O M19 não é o resultado do “descontentamento” contra Ortega. Um de seus organizadores, Felix Madariaga, responsável pelo Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas, é um dos principais porta-vozes contra o sandinismo e recebeu 260.000 dólares do NED. A fundação “Hagamos Democracia” de Luciano García recebeu 525 mil dólares do NED desde 2014 e tornou-se mais um instrumento de intervenção na Nicarágua, entregando em 2017 um milhão de dólares a várias organizações da chamada “sociedade civil” que exigem a renúncia de Ortega.

A Comissão de Direitos Humanos da Nicarágua (111 mil dólares), o Centro para Empresas Privadas (US$ 239 mil) e o Instituto Republicano Internacional (US$ 150 mil) tiveram sua participação (Fonte: NED Digital). O NED também destinou 305 mil dólares para grupos anônimos pelo que eles chamam de “promoção da democracia”.

O NED foi criado em 1983 pelo governo de Ronald Reagan e desde então colaborou ativamente na guerra encoberta contra a Nicarágua entre os anos de 1980 e 1990, apoiou e financiou a mídia antissandinista e a oposição naquele país e foi fundamental na invasão do Panamá em dezembro de 1989.

Um mês antes das reuniões do M19 com legisladores ultraconservadores em Washington, o NED “declarou abertamente que organizações apoiadas por eles passaram anos recebendo milhões de dólares preparando as bases para a insurreição” na Nicarágua, como assinalou o site Global Americans, escrito pelo professor americano Benjamin Waddell, diretor acadêmico da Escola Internacional de Formação na Nicarágua.

A verdade é que “a imprensa internacional descreveu a rápida escalada da agitação civil na Nicarágua como uma explosão espontânea de descontentamento coletivo”, escreveu Waddell, acrescentando que “a atual participação do NED na criação de grupos da sociedade civil na Nicarágua joga luz sobre o poder do financiamento transnacional para influenciar os resultados políticos no século 21”.

“Muito do que fazemos hoje foi feito secretamente há 25 anos pela CIA”, disse Allen Weinstein, fundador do NED.

“Os rostos mais visíveis do movimento anti-Ortega não foram aposentados afetados por reformas de seguridade social, mas por estudantes urbanos politicamente não afiliados”. Enquanto isso, mascarados portando morteiros e armas de fogo lideraram os bloqueios das vias, que causaram, em 2018, perdas de cerca de US$ 250 milhões em receita.

A ação dos Estados Unidos na Nicarágua é tão óbvia que espanta que figuras importantes que emergiram do sandinismo, cuja oposição a Ortega é baseada em diferenças internas, tenham silenciado e permitido a este país sangrar.

O 40º aniversário da Revolução Sandinista será lembrado neste contexto: numa época em que os EUA realizam um projeto geoestratégico para recolonizar toda a América Latina e colocar seus recursos sob controle.

Fonte: La Voz del Sandinismo, tradução da Redação do i21

 

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