Elias Jabbour: Reflexões sobre um centenário especial
Existem momentos da história em que clichês e palavras laudatórias pouco ajudam compreender o momento ou a tirar as lições de datas marcantes e especiais. Recentemente, o centenário da Revolução Russa (2017) e o bicentenário do nascimento de Karl Marx (2018) foram momentos interessantes não somente à reafirmação de princípios, mas também à discussão de alternativas ao capitalismo ainda preso em suas próprias contradições e armadilhas. A pandemia do Covid-19 demonstra claramente os limites do capitalismo financeirizado e o cenário de Walking Dead já é de possível percepção das periferias de grandes cidades do mundo.
Por Elias Jabbour*
O antigo moribundo insiste em sobreviver conforme viu-se no recente encontro do G-7 na praia de Cornualha (Inglaterra). Ali firmou-se um pacto contra o novo em uma repetição piorada das reuniões das monarquias absolutas contra Napoleão seguida do Congresso de Viena. O inimigo é outro hoje e muito mais forte que Napoleão. A República Popular da China está prestes a comemorar os cem anos de seu partido governante. Este partido foi capaz de nos últimos cem anos de se reinventar ciclicamente a depender da época histórica e seus desafios.
Transformou-se em depositário fiel de uma civilização autorreferenciada e com seu sistema de valores elaborado ao longo da construção de uma civilização milenar. Ao completar seu centenário o Partido Comunista da China (PCCh) está diante de mais um desses desafios que fazem lembrar a epopeia da Longa Marcha (1934-1935) e a batalha contra a ocupação japonesa (1937-1945). Mas os tempos são outros e o Partido Comunista da China hoje é senhor de uma potência nuclear com 1,4 bilhões de habitantes e a segunda maior economia do mundo em critérios absolutos. Possui sob seu controle 96 grandes conglomerados empresariais estatais, um imenso e capilarizado sistema financeiro estatal e reservas cambiais da ordem de US$ 3,2 trilhões.
No começo de 2021, a China pousou o seu robô na superfície do planeta Marte; iniciou a montagem e colocou em funcionamento sua própria estação espacial ao redor da Terra – Tiangong; enviou com sucesso a nave Shezhou 12, com três taikonautas; anunciou para 2024 a colocação em órbita de um telescópio 300 vezes mais potente do que o Hubble, dos norte-americanos. Travou e venceu a “guerra popular” contra a pandemia, vacinou mais de 1,1 bilhão de chineses e já exportou ou doou cerca de 600 milhões de vacinas aos 39 países mais pobres do mundo. Nos últimos 20 anos colocou em circulação cerca de 40.000 quilômetros de trens de alta velocidade e já testa seu primeiro trem-bala que poderá atingir 800 km/h. O país possui três vezes mais trens desta natureza do que o mundo inteiro reunido.
Mas este olhar em estática poderia esconder uma grande história. Vejamos. Em 1949, ano em que o PCCh alcança o poder no país, oito em cada dez chineses viviam desnutridos, o analfabetismo atingia mais de 90% e a dignidade nacional estava destroçada após mais de um século de pilhagem a humilhação impostas por um consórcio imperialista que fatiou o país. Lênin estava correto ao perceber que o centro de gravidade da revolução internacional havia se deslocado das lutas entre burguesia e proletariado no centro do sistema capitalista à periferia onde o imperialismo exportava sua capacidade máxima de barbárie.
E em nenhum lugar do mundo essa radicalização das relações centro x periferia foi tão violenta quanto na Ásia. A proclamação da República em 1911 e a sequência de tentativas de importar modelos liberais de governança aliada à humilhação sofrida pelo país em Versalhes colocou os destinos do país em um beco sem saída. Foi da Revolução Russa que veio a inspiração à formação de uma força política capaz de fazer renascer a chama viva da nação chinesa. O marxismo definitivamente havia se transformado em um grande corpo teórico de libertação nacional: em 1919 o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels fora traduzido ao mandarim. Em 1921, com cerca de 50 militantes foi fundado o PCCh. Em 1949, ou seja, 28 anos depois de sua fundação, esta força havia alcançado o poder no país mais populoso do mundo.
Esse sucesso do PCCh deve ser observado sob vários ângulos, principalmente os ainda pouco explorados e relacionados à própria visão do conhecimento em sua sabedoria milenar. Se observarmos a formação cultural de um líder da estatura de Mao Tsetung perceberemos tanto um forte espírito de disciplina confuciana com a rebeldia e irreverência taoísta. Isso indica um agudo traço do pensamento social chinês não simpático às ideias prontas e dogmas em geral. Temas favoráveis ao exercício do livre pensamento e que despertam o uso da inteligência são preferíveis. Assim o marxismo torna-se uma poderosa arma política ao se perceber em livre combinação com a sabedoria clássica chinesa, confuciana e taoísta.
O uso da inteligência reflete-se na política. Por exemplo, o marxismo de Mao, adotando o leninismo, caracterizou-se por uma obsessiva e profunda preocupação com a necessidade de retirar a China do domínio externo. Para isso deveria levar o país a combinar a recuperação de seu orgulho nacional retomando o papel crucial dos camponeses na vida política do pais. As lições da derrota e o massacre de Xangai de 1928 deixou claro a Mao Tsetung que o futuro do marxismo na China dependia da própria capacidade de afirmação da independência do PCCh ante qualquer externalidade.
A preocupação com o destino da China e a busca incessante de liberdade de capacidade de manobra do PCC permitiu uma série de movimentos estratégicos. A revolução chinesa não seria possível sem 1) aliança com o Kuomintang para combater a invasão japonesa (1937-45); 2) a ofensiva militar na guerra civil de 1946-49 contra o Kuomintang, 3) a participação decisiva na Guerra da Coreia (1950-53), 4) a ruptura da China em relação aos soviéticos (1960) 5) a aproximação dos EUA (1971), que garantiu a reinserção da China na economia mundial, empreendida sob a liderança de Deng Xiaoping nos anos de 1980 e promovendo a fusão entre o Estado Revolucionário fundado em 1949 com o Estado Desenvolvimentista de tipo asiático internalizado com as reformas econômicas de 1978.
Com independência e flexibilidade necessárias os comunistas chineses foram capazes de perceber suas limitações e potencialidades. Observaram a decadência do fordismo, seu impacto às experiências socialistas e aproveitaram as oportunidades abertas com a financeirização e a alocação de capacidade produtiva e tecnológica estrangeira em seu território. Erraram a aprenderam com os próprios erros dos primeiros anos das reformas econômicas. Combateram o bom combate, a contrarrevolução de junho de 1989 e desbravaram questões delicadas como a difícil reforma das empresas estatais na década de 1990. A cada passo das reformas econômicas, novos aportes teóricos foram sendo criados. A noção de socialismo de mercado adotada desde a década de 1990 pode muito bem servir tanto para designar um sistema com múltiplas formas de propriedade hegemonizadas pela propriedade pública quanto a ideia de emergência de uma nova formação econômico-social não capitalista, apesar de participar ativamente da ordem capitalista internacional.
Nos últimos 40 anos a China vem comandando uma epopeia de desenvolvimento econômico cujo movimento deveria nos obrigar a uma reconceituação do é e o que significa o socialismo. O desafio teórico é imenso diante das possibilidades ao domínio humano sobre a natureza abertas pelo espraiamento à economia real de novas tecnologias disruptivas que surgiram no seio das empresas estatais desde o lançamento de políticas industriais inauguradas em 2006 com vistas à soberania tecnológica. No centenário do PCCh a fronteira das ciências humanas está sendo arrastada para frente diante do surgimento do que chamamos de “Nova Economia do Projetamento” onde a elaboração e a execução de grandes projetos não encerram em si uma simples operação contábil. É fruto da ação consciente de milhões de engenheiros, economistas e outros profissionais de alto nível voltados à construção consciente do futuro.
Assim o centenário do PCCh coincide com o surgimento, sob seu comendo, do socialismo não como encarnação de uma utopia, algo que existe em nossas mentes e na zona de conforto de definições que colocam para frente a necessidade de enfrentar o presente. O socialismo gestado na China tem na transformação da razão em instrumento de governo sua forma histórica mais acabada. É essa sociedade que nasce de uma civilização estranha às religiões que comandaram e comandam os Estados nacionais no ocidente que o mundo deverá observar com mais generosidade. Que o conteúdo político desta experiência não seja dissolvido nas análises intelectuais daquele processo histórico. Fez-se a história. Mao Tsetung tinha razão. “Só o socialismo poderá salvar a China”. Façamos coro a Xi Jinping, “tudo o que temos devemos ao marxismo”.
* Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Comitê Central do PCdoB.