Inquérito do TPI sobre crimes de guerra abrirá nova fase da luta na Palestina ocupada
Após quase cinco anos de espera, a decisão da promotora-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Fatou Bensouda, pela procedência das acusações por crimes de guerra perpetrados na Palestina é alvissareira, mas demanda cauto seguimento. Em declaração desta sexta-feira (20), a promotora afirma que crimes de guerra foram e são cometidos nos territórios palestinos ocupados e pede aos juízes definição da jurisdição da Corte para então iniciar o inquérito.
Por Moara Crivelente*
O incansável trabalho dos palestinos por um julgamento de práticas da ocupação militar israelense é debatido desde antes de o Estado da Palestina ter acedido ao Estatuto de Roma do TPI, em janeiro de 2015. Outra tentativa de levar o TPI a abrir um processo havia sido feita em 2009, mas o então promotor Luis Moreno Ocampo respondeu negativamente três anos depois. A Palestina não tinha ainda status claro, segundo o promotor, para efeitos do Estatuto. Ocampo disse ainda que a decisão poderia levar o Conselho de Segurança da ONU a se posicionar pedindo a abertura do processo, o que não parecia uma expectativa realista. O Conselho Palestino de Organizações de Direitos Humanos (PCHR, na sigla em inglês) considerou a decisão politizada.
Embora recorrer a ou integrar organizações internacionais já constituísse a estratégia palestina há décadas, a adesão ao TPI foi impulsionada pelo fracasso diplomático sob a gestão estadunidense – com o aumento da construção das colônias em território palestino e a evidência da indisposição da liderança de Israel para uma solução justa – e mais uma ofensiva em 2014, com cerca de duas mil mortes e a devastação de lares e infraestrutura civil inédita em Gaza.
Ambas as situações e a brutalidade da repressão israelense, como a vista contra a Grande Marcha de Retorno, com protestos junto à barreira que circunda Gaza, movem o processo. Naquela faixa de território estreitado, sob cerco completo há mais de uma década e densamente habitada por dois milhões de pessoas, cerca de 70% da população é refugiada de outros massacres, enfrentando condições que podem tornar a vida insustentável tão logo quanto no próximo ano.
A construção de colônias, detenções arbitrárias, demolição de lares, expropriação de terras, espólio de recursos, o brutal cerceamento da liberdade de movimentação e expressão, a reunião familiar, a punição coletiva e a anexação de território são algumas das práticas que sustentam a ocupação da Palestina por Israel, graves violações do direito internacional humanitário, que regula as responsabilidades de uma potência ocupante. Porém, apesar das evidências, o processo deve ser complexo e necessita de atenção redobrada.
Em foco estão os procedimentos do TPI, sua jurisdição – sendo a Palestina parte do estatuto e Israel, não – e sua politização. No início de dezembro, no diário Times of Israel um colunista ironizava a demora do exame preliminar iniciado em 2015 e a possibilidade de o TPI investigar práticas do próprio governo palestino em Gaza e na Cisjordânia, como indicara um informe da promotora.
Dias depois, ela divulgou a decisão pela abertura do inquérito e diz entender que crimes de guerra foram cometidos e estão sendo cometidos na Cisjordânia, inclusive Jerusalém Oriental, e na Faixa de Gaza; que potenciais casos enquadrados nessa situação seriam admissíveis; e que não há razões substanciais para crer que um inquérito não serviria aos interesses da justiça.
O processo retoma ainda a questão da centralidade do direito internacional na estratégia de luta com o alerta para a possibilidade de a ferramenta ser usada na manutenção do estado de coisas. Afinal, foi também através dela que a situação se desenvolveu, por exemplo, no estabelecimento do Mandato Britânico pela Liga das Nações, em 1922, e na resolução 181 de 1947 da Assembleia das Nações Unidas, que propunha a desigual e racista partilha da Palestina em dois estados para sanar um conflito estimulado pelo imperialismo britânico, em respaldo ao projeto sionista de colonização.
Além disso, há também o prolongado debate sobre o viés político do TPI, cujo banco dos réus ainda não acomodou as engrenagens da maquinaria imperialista para responder por incontáveis crimes, nesta perspectiva de punição individualizada. Daí a necessária cautela com o percurso a seguir.
O rumo do processo penal e da luta política
Após quase cinco anos de exame preliminar, como o Estado da Palestina, parte da Corte, fez o pedido, não é preciso esperar por aprovação para a abertura do inquérito, mas fica pendente a decisão dos juízes sobre a jurisdição do TPI. Aí está uma das barreiras a ultrapassar e que não pode ser, por lapso ou intenção, confundida com uma mera questão procedimental.
A promotora refere-se aos territórios palestinos como descritos acima, mas definir as coordenadas da investigação será outro desafio. Embora o Estado da Palestina e os atores e movimentos solidários que respaldam a fórmula conquistada e adotada pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) defendam a definição das fronteiras anteriores à ocupação militar israelense em junho 1967, Israel e seu principal patrocinador, os Estados Unidos, alegam que a demarcação está em disputa, pendente de negociação. O ainda premiê de Israel Benjamin Netanyahu já é citado na mídia alegando que o TPI não tem jurisdição para investigar.
O processo ainda pode ser arrastado, dar em um beco sem saída, ou eventualmente responsabilizar indivíduos, e não o regime de ocupação colonialista e segregador israelense, sustentado em práticas, leis e procedimentos entranhados em sua estrutura. Mesmo assim, a decisão da promotora é relevante e pode fornecer elementos para a continuidade da luta dos palestinos, que sempre foi e continua sendo não jurídica, mas política.
Mas o avanço de um inquérito no TPI deve ser acompanhado de perto para oferecer mais uma entre outras oportunidades conquistadas e a se construir, evidenciando a sistematicidade perversa dos crimes cometidos por Israel no cotidiano, dos quais são cúmplices as principais potências imperialistas, como os EUA. São crimes normalizados em leis ou práticas racionalizadas num regime de apartheid e colonização entranhado nas fundações do próprio Estado e sua colonização da Palestina, e isto deve-se garantir a exposição, para impulsionar a batalha no campo político.
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)
Fonte: Cebrapaz