Lula e a verdade fora do poço
O presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento de sua viagem oficial à África, em uma coletiva de imprensa na Etiópia, no domingo passado (18), fez um paralelo entre o drama dos palestinos e o holocausto judeu. A declaração repercutiu fortemente.
Alguns se surpreenderam com a veemência de Lula. O presidente brasileiro, fora do mundo delirante da extrema-direita e de suas fabulosas teorias de conspiração, é considerado um líder de esquerda moderado, o que de fato é.
Para entendermos a declaração de Lula é preciso tecer antes algumas considerações.
Lula é antissemita?
Primeiro: criticar o Estado de Israel não é ser antissemita. A crítica a Israel é válida, democrática e deve ser debatida no campo da luta de ideias. Tentar invalidá-la com a pecha de “antissemita” é usar um falso argumento para disfarçar argumentos falsos.
Muita gente esquece de que os palestinos também são semitas e, além disso, não são poucos os judeus que criticam Israel de forma até mais contundente.
É o caso do conhecido historiador judeu Illan Pappé que, muito antes de Lula, comparou o destino dos palestinos com o holocausto, “claro que não há câmaras de gás para exterminar os palestinos, mas a situação na qual se encontra o povo palestino é uma situação típica de um campo de concentração”, declarou.
Pappé considera um mito a chamada “democracia israelense”, opinião compartilhada por muitos judeus, entre eles o diretor executivo da organização de direitos humanos israelense B’Tselem, Hagai El-Ad, formado pela Universidade Hebraica de Jerusalém: “Israel não é uma democracia que tem uma ocupação temporária ligada a si: é um regime de apartheid”.
Seriam Pappé e Hagai El-Ad, ambos judeus, antissemitas, já que criticam Israel?
Como eles, existem milhares de pessoas de ascendência judaica críticas a Israel. No Brasil, o jornalista Breno Altman, que teve parte importante da família dizimada no holocausto nazista, é acusado de ser antissemita (!) pelo “crime” de criticar Israel.
Como argumentam muitas pessoas, inclusive judeus, como existir um Estado democrático que se define oficialmente como “Estado-nação do povo judeu”? Neste caso, um israelense não judeu (um árabe-israelense, por exemplo) será permanentemente um cidadão de segunda classe. Mais grave do que isso: como chamar de democrático um Estado que oprime outra nacionalidade? Como dizia Friedrich Engels: “Não pode ser livre um povo que oprime outros povos”.
O desafio de Netanyahu
Em segundo lugar: Israel conta com a proteção ostensiva do que ainda é a nação mais poderosa do mundo, os Estados Unidos da América. Juntos, EUA e Israel mobilizam um formidável poder financeiro, militar, político, diplomático, cultural e comunicacional. Mesmo assim, apesar de tudo isso, Israel está cada vez mais isolado internacionalmente.
Esse segundo aspecto é fundamental para entendermos a fala do presidente Lula.
O que levou Israel, apesar de sua imensa influência, a um nível tão grande de isolamento?
Um artigo não basta para desbastarmos os mais de 75 anos de ocupação israelense e suas consequências, por isso vamos nos concentrar no cenário mais recente que, indubitavelmente, acelerou de maneira inaudita este fenômeno.
Como se sabe, as Nações Unidas exigem, por inúmeras resoluções, a formação de um Estado Palestino independente, constituído com as fronteiras de antes de 1967, convivendo pacificamente ao lado do Estado de Israel.
Tais resoluções, no entanto, há décadas são letra morta, e Israel seguiu ocupando cada vez mais terras palestinas.
Para piorar a situação, Israel é governado por adeptos do sionismo, uma corrente ideológica surgida no final do século 19. Com fortes tintas racistas e xenófobas, o sionismo tem diversas tendências e justamente a mais extremista está no poder, capitaneada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em seu 6º mandato.
Netanyahu, em plena Assembleia Geral da ONU (foto acima), em setembro de 2023, apresentou um mapa do que chamou de “novo oriente médio” sem a Palestina. Onde foram parar os 5 milhões de palestinos? A apresentação de Netanyahu representou uma clara provocação que visava mostrar total desprezo de Israel pelo direito internacional. Isso, contudo, tem seu custo.
O Pós-7 de outubro
Antes deste famoso discurso na ONU, o plano sionista de promover uma limpeza étnica adquiria novo ritmo e o ano de 2023 foi todo marcado por ininterruptos ataques contra os palestinos, com mortes de civis e crianças em diversos territórios, incluindo a invasão à Mesquita de Al-Aqsa, considerada sagrada pelos mulçumanos.
No dia 07 de outubro a resistência palestina, tendo à frente o Hamas, lançou um contra-ataque em grande escala, na chamada operação “Dilúvio de Al-Aqsa”. Segundo dados do governo de Israel, morreram 1.200 cidadãos israelenses, incluindo civis.
Todas as mortes, especialmente de civis, sejam israelenses ou palestinas, devem ser igualmente pranteadas, mas a desproporção é evidente.
Muitos estudiosos consideram a ideologia das correntes sionistas uma vertente do fascismo, o que parece se confirmar a cada dia. Hitler em seu livro “Minha Luta” dizia, de modo repugnante, que o judeu “É e será sempre o parasita típico, um bicho”. Já o Ministro de Defesa de Israel, Yoav Gallant, depois do 7 de outubro, quando anunciou o cerco total a Gaza, deixando dois milhões de pessoas, segundo suas palavras, “sem água, comida e eletricidade”, justificou tal ato com a seguinte frase odiosa: “Nós estamos combatendo contra animais humanos e estamos agindo em conformidade com esse contexto”.
O vice-presidente do Knesset (o parlamento israelense), Nissim Vaturi, declarou que Israel deveria “deixar de ser humano” e “queimar Gaza agora”, acrescentando que “Não há inocentes lá (em Gaza).” E para deixar mais claro seu posicionamento, Nissim afirmou que “não tem piedade daqueles que ainda estão lá. Precisamos eliminá-los”.
Do que se trata aqui, caro leitor, é da defesa aberta, por parte de dirigentes israelenses, de assassinato em massa.
Segundo dados da Autoridade Nacional Palestina, divulgados nesta segunda-feira (19), 29.100 palestinos foram mortos desde o dia 7 de outubro, sendo que deste total, 43% são crianças (12.400) e 27% mulheres (7.850). Estimativas apontam, além disso, para cerca de quatro mil meninos e meninas desaparecidos, soterrados nos escombros de Gaza, alguns talvez vivos e agonizantes, com chances remotas de serem salvos já que Israel impede a chegada de socorro.
Fissuras na armadura protetora
Tais crimes, tão evidentes e fartos em comprovação têm causado fissuras inesperadas na “armadura protetora” de Israel.
Em novembro de 2023, o presidente da França, Emmanuel Macron disse que “Israel deve parar de matar bebês e mulheres em Gaza”. O francês afirmou que “não havia justificativa” para o bombardeio israelense de Gaza.
Como se sabe, ninguém chega ao cargo de Secretário-Geral da ONU sem o aval dos EUA e a benção de Israel. Não obstante, o moderadíssimo António Guterres tem subido o tom contra o governo sionista. Em reunião realizada em janeiro deste ano, do Conselho de Segurança da ONU sobre o Oriente Médio, Guterres disse com todas as letras que “a ocupação de Israel (dos territórios palestinos) deve acabar”, acrescentando que “toda a população de Gaza está sofrendo uma destruição em uma escala e velocidade sem precedentes na história recente”. Guterres qualificou tais fatos de “injustificáveis” e voltou a defender a solução dos dois Estados.
No último dia 26 de janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) debateu a denúncia da África do Sul acusando Israel de genocídio. Israel apresentou à Corte um requerimento para que a CIJ rejeitasse in limine a denúncia da África do Sul. Para espanto de muitos, a Corte aceitou a demanda e, na prática, Israel é agora réu acusado de genocídio, o que provocou histriônicos protestos por parte do governo israelense.
Não foi só isso, No dia 1º de fevereiro, a sempre subserviente (aos EUA e a Israel) União Europeia surpreendeu, e confirmou que vai manter os repasses financeiros à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (Unrwa), organismo da ONU acusado por Israel, EUA e Reino Unido de ligação com o Hamas.
Um dia antes, o ministro das Relações Exteriores da Noruega, Espen Barth Eide, pediu aos países que exportam armas para Israel que avaliem suas ações ou corram o risco de serem processados por participarem do genocídio contra os palestinos em Gaza. “Os Estados que exportam armas para Israel devem reavaliar se são parceiros efetivos no genocídio na Faixa de Gaza ou não”, disse ele. Lembrem-se que a Noruega é membro fundador da Otan, assim como a França de Macron.
Em dezembro de 2023, o presidente da Turquia, outro país membro da Otan, comparou Netanyahu com Adolf Hitler.
O que fez Lula no último domingo? A partir da constatação indisfarçável de que o povo palestino sofre um genocídio planejado conscientemente, traçou um paralelo entre o genocídio palestino e o holocausto promovido por Hitler, na segunda grande guerra mundial, quando o povo judeu foi vítima de um genocídio planejado conscientemente.
O que Lula disse é duro e incômodo? Sem dúvida. Mesmo assim é incapaz de refletir em todo seu horror o que vive o povo palestino. A essência das repetidas declarações de Lula sobre a Palestina é a seguinte: defesa do cessar-fogo permanente, negociações de paz e o estabelecimento do Estado Palestino independente.
Com esta postura Lula:
1 – Coloca-se ao lado da justiça e da verdade histórica;
2 – Mostra-se sintonizado com o sentimento da maior parte da comunidade internacional;
3 – Defende os princípios basilares da nossa política externa expressos no artigo 4º da Constituição brasileira: a defesa da paz e a solução negociada dos conflitos.
4 – Ajuda a aumentar a pressão para que Israel pare o genocídio.
Nesta segunda-feira, pela primeira vez desde o 7 de outubro, os EUA apresentaram ao Conselho de Segurança da ONU uma resolução falando em cessar-fogo (temporário) e condenando Israel pela ofensiva em Rafah, no sul de Gaza. Não se sabe quando o projeto será votado mas até então os EUA vinham usando seu poder de veto para barrar todas as propostas que falavam em cessar-fogo.
Outros efeitos secundários da entrevista de Lula, foram: Despertar a fúria da extrema-direita brasileira; provocar uma crise diplomática entre Brasil e Israel; revelar o quanto o Brasil voltou a ter peso no cenário internacional.
Ainda sobre a reação da extrema-direita brasileira, é preciso salientar que o antissemitismo existe e deve ser sempre repudiado e combatido, mas na boca dos representantes do neofascismo, que professam ideologias racistas, autoritárias, misóginas e xenófobas, não passa de uma manobra hipócrita e oportunista.
Aliás, foi justamente ao lado destes racistas e golpistas, alguns dos quais respondendo à justiça por tentativa de golpe de Estado, que o embaixador israelense se reuniu recentemente, mostrando total alinhamento entre o sionismo e o neofascismo tupiniquim.
Alguns tratam o que está acontecendo na Palestina como tragédia. Embora se entenda que muitas pessoas usem esta definição de boa-fé, a palavra “tragédia” parece remeter mais a fenômenos fortuitos, nos quais temos pouca ou nenhuma interferência: terremoto, furação etc. É preciso, como fez o chefe de Estado brasileiro, chamar as coisas pelo nome e não temer a verdade: o que está acontecendo na Palestina é um crime.
Por falar em “verdade”, todos conhecem a lenda medieval da Verdade personificada em uma mulher que não queria sair de um poço, pois estava nua, já que a Mentira (uma falsa amiga) tinha roubado suas roupas. Quando toma coragem e saí, a Verdade nua é apupada pela multidão, que a acusa de indecência.
O que Lula fez foi tirar a constrangida verdade do poço, fazendo-a desfilar diante de todos.
Que os apupos não a façam voltar ao poço, levando com ela a dignidade da consciência humana, a servir de mortalha para o corpo das crianças palestinas assassinadas.
* Jornalista, especializado em Geopolítica, vice-presidente do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)
Publicado originalmente no site Bahia Notícias