Luta dos povos

Nepal: passos cautelosos

Há mais de cinquenta anos, Madhav Nepal participa do movimento comunista de seu país. Ele entrou no movimento em 1966 quando estudante e desde então foi líder de vários partidos comunistas, Primeiro-Ministro do Nepal, e é agora uma das principais lideranças do Partido Comunista do Nepal (PCN). Foram a “exploração na sociedade do Nepal, a pobreza”, ele me contou recentemente, que o levaram ao movimento comunista; só mais tarde ele leu livros de marxismo e literatura soviética. “Só o partido comunista,” ele disse, “pode ter a esperança de resolver os problemas do Nepal.” Esse é uma atitude que ele preserva, ainda que esteja distante de seus dias do levante camponês de 1969, chamado de movimento Jhapa, e de sua ligação com os naxalitas indianos. Madhav Nepal é hoje facilmente a figura mais reverenciada no comunismo nepalês.

Em maio de 2018, Madhav Nepal, junto de seus antigos camaradas K.P. Oli e Prachanda, juntou a maior parte dos grupos comunistas para formar o PCN. Os dois maiores grupos no partido conquistaram uma maioria de dois terços nas eleições do Parlamento e de sete Assembleias de Província; eles disputaram as eleições numa plataforma única após anos de rancor. Foi depois dessas eleições que os vários grupos no Nepal decidiram que o povo queria que se unificassem a despeito de suas diferenças de sensibilidade política. Entre eles, Oli, Madhav Nepal e Prachanda compartilham décadas de lutas em comum e de rixas pessoais. Eles vêm todos do mesmo movimento, ainda que Prachanda tenha levado os Maoístas para a luta armada por uma década a partir de 1996. “Tentei meu melhor para convencer os líderes deles a parar a luta armada e vir para o sistema político”, Madhav Nepal disse, mas eles se inspiravam no Sendero Luminoso no Peru e em outros movimentos similares, que, depois de muito sangue derramado, entraram em colapso. Eventualmente, com um grande esforço de persuasão, a luta armada se encerrou e um processo de uma década desembocou no novo partido unificado.

Em um encontro da liderança do partido no final dos anos 80, não se antecipava que a monarquia cairia ou mesmo que uma monarquia constitucional seria possível. Depois do Jana Andolan, ou Movimento Popular, de 1990, os partidos políticos retiraram poderes do rei Birendra e criaram uma monarquia constitucional; mesmo assim, em uma reunião pouco depois disso, Madhav Nepal relembra, nenhum de seus camaradas conseguia imaginar uma derrubada fácil do rei. Madhav Nepal também não conseguia imaginar que se tornaria Primeiro-Ministro ou que seu partido iria ter maioria absoluta em todos os órgãos eleitos, mas foi o que aconteceu após o massacre real de 2001 perpetrado pelo príncipe Dipendra e o curto reinado do autocrático rei Gyanendra. A monarquia afundou e os principais partidos políticos, o Congresso Nepalês e os comunistas, tomaram conta. Com o passar dos anos, o Congresso Nepalês se tornou cada vez menos um partido poderoso como já tinha sido, muito por que foi incapaz de combater a condição que levou Madhav Nepal à política nos anos 60: a grande pobreza do Nepal.

Estatísticas de longa data afirmam que um a cada quatro nepaleses vivem na extrema pobreza e que o país é um dos mais pobres do mundo. A alta mortalidade infantil decorrente do sistema de saúde precário e a terrível fome causada pelos altos preços dos alimentos e pelos salários baixos mantêm o povo em um profundo estado de pobreza. Há disposição de retirar o Nepal da condição de país subdesenvolvido até 2022. Os comunistas desejam elevar a renda per capita de US$862,00/ano para US$5,000/ano. Isso exigirá investimentos em educação e saúde e uma melhora dramática na situação dos empregos no país. Essa visão é o que une todos os comunistas.

O programa de governo comunista tem sido bem objetivo, até mesmo modesto. É difícil para um partido moderno discordar de um programa que inclui o fim da corrupção, o uso mais eficiente do dinheiro dos impostos, federalismo fiscal (passando 50% dos recursos para as províncias e os municípios), e mais ênfase na agricultura orgânica e em produção de energia de combustíveis não-fósseis (principalmente via hidrelétricas). Depender do sistema de transporte da Índia para realizar comércio força o Nepal a uma relação de conflitos com seu principal vizinho; a Índia vem utilizando sua vantagem de forma vergonhosa, fechando a fronteira quando quer pressionar o Nepal. O governo nepalês procurou maneiras de reduzir sua dependência econômica da Índia, incluindo encorajar a China a construir uma ferrovia e uma rodovia do Tibete ao Nepal. Isso é menos uma virada para a China, que é como muitos têm visto, do que uma tentativa de equilibrar a posição do Nepal entre os dois grandes países.

A controvérsia da MCC

A questão da energia hidrelétrica está hoje no centro de uma controvérsia no Nepal. O governo dos Estados Unidos ofereceu ao Nepal — por meio da Millennium Challenge Corporation (MCC) [agência de ajuda econômica do governo americano] — 500 milhões de dólares direcionados à construção de torres de transmissão e rodovias. Essa é uma quantia considerável de dinheiro a qual o Nepal não teria acesso de outra forma. Se essas torres e rodovias forem construídas, melhorarão a infraestrutura do país e estimularão sua economia.

Nada é tão simples quanto parece. A MCC não é uma forma inocente de financiamento. Madhav Nepal me diz que está muito preocupado com esse dinheiro e suas implicações. Em uma reunião recente do Comitê Central do PCN, as lideranças se dividiram sobre os fundos. Alguns sentiram que o dinheiro é meramente para desenvolvimento e deve ser aceito sem maiores preocupações. O que querem é ratificar o Pacto Nepal-MCC no parlamento mesmo que haja suspeitas de que o pacto viola a soberania do Nepal. Acham que o dinheiro vale a pena.

Madhav Nepal aponta para o Indo-Pacific Strategy Report [em tradução livre, “Relatório da Estratégia no Indo-Pacífico”], que o governo dos Estados Unidos divulgou em junho de 2019. Nele, fala abertamente em se aproximar de países asiáticos para minar o projeto chinês da Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota e a China em geral. O relatório descreve a China como uma “potência revisionista” e declara com franqueza que a nova estratégia no Indo-Pacífico é pensada para pressionar a China. O PCN, que tem fortes ligações com Pequim, tem sido claro de que não vai aderir à Estratégia no Indo-Pacífico. Não há dissenso quanto a isso.

Os que querem assinar com a MCC e pegar os US$500 milhões dizem que isso não se conecta com a Estratégia. Porém, em novembro de 2019, o governo dos Estados Unidos divulgou um segundo relatório, “A Free and Open Indo-Pacific: Advancing a Shared Vision” [em tradução livre, “Um Indo-Pacífico Livre e Aberto: Avançando uma Visão Compartilhada”], que fala da MCC como parte de seu objetivo geral na Ásia. A MCC, o relatório diz, é um de vários “novos e inovadores mecanismos para aprimorar o acesso aos mercados e equilibrar a disputa para as empresas americanas” na Ásia; também é um meio de atrair países como o Nepal para a orientação da política externa estadunidense. Esse relatório, que liga a MCC diretamente à Estratégia no Indo-Pacífico, aprofundou a controvérsia no Nepal.

“A Estratégia no Indo-Pacífico não pode ser apoiada”, Madhav Nepal me diz. “Temos clareza nisso. Se algo desse teor é ligado à MCC, não podemos aceitar a MCC.” Os Estados Unidos, ele conta, afirmaram para ele diretamente que não havia relação entre a MCC e a Estratégia no Indo-Pacífico e que nenhuma aliança militar estava sendo proposta. O embaixador dos Estados Unidos, Madhav Nepal fala, “veio me deixar isso claro”. Madhav Nepal pediu para ele prometer por escrito; isso não aconteceu.

Perguntei a Madhav Nepal como seu país faria para construir as torres de transmissão e rodovias se não fosse aceitar os US$500 milhões dos Estados Unidos. “Iremos ao Asian Development Bank”, ele diz. Claro, o Japão e os Estados Unidos dominam esse banco, que pode ser pressionado a não emprestar ao Nepal o dinheiro.

Urânio

Em 2014, o Departamento de Minas e Geologia do Nepal encontrou um grande depósito de urânio na região do Alto Mustang, uma remota área que fazia parte do antigo reino Lo e que fica logo na fronteira do norte do Nepal com a China. Um relatório de 2017 do Ministério da Indústria do Nepal nota que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) descobriu que o urânio é “de alta qualidade”. Giriraj Mani Pokharel, o ministro de Ciência, Educação e Tecnologia, disse em uma conferência da AIEA em dezembro de 2018 que “a prosperidade do país não pode ser alcançada sem seu desenvolvimento”. O material nuclear agora é estratégico para o Nepal. Mas o urânio se encontra perto dos glaciares onde nasce o rio Kali Gandaki. Qualquer mineração no local certamente poluirá o rio. Isso preocupa os ambientalistas.

Emendas feitas à Lei de Uso Seguro e Pacífico de Materiais Nucleares e Radioativos pelo parlamento nepalês levantam algumas dessas questões.

Madhav Nepal sorri quando pergunto se o depósito nuclear dará ao Nepal mais margem de negociação com os Estados Unidos, a Índia e a China. Não há nada que ele possa dizer aqui. É óbvio que cada um desses países gostaria de ter acesso aos depósitos de Mustang e que nisso estão os recursos que poderiam financiar o desenvolvimento do Nepal (a que custo ambiental ainda veremos). A disputa acerca de Mustang vai exacerbar a rivalidade que põe os Estados Unidos e a Índia de um lado e a China no outro. Será necessária muita habilidade por parte dos comunistas nepaleses para lidar com essa situação.

“O Nepal é um país pequeno”, diz Madhav Nepal. “Não gostaríamos de ser empurrados a nenhuma controvérsia”. É uma declaração sensata de um homem que passou toda sua vida lutando para melhorar as condições de seu povo. No distante 1989, quando Madhav Nepal se reuniu com o líder do Congresso Nepalês G.P. Koirala para definir se os comunistas e o Congresso poderiam lutar juntos contra a monarquia, Koirala lhe deu um aviso. Sim, ele disse, podemos conduzir ações conjuntas, mas “mantenha em segredo, senão os americanos vão descobrir”.

Fonte: Frontline

Tradução: Guilherme Arruda

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