Súmula Internacional 85 – Vladimir Zelensky: “Longe do seu melhor momento, perto da tragédia”
O processo de fritura em fogo lento do presidente Vladimir Zelensky continua, e a temperatura está cada vez mais alta. A Polônia já declarou que não enviará mais armas, e na Europa e nos EUA cresce a pressão contra os defensores do “apoio infinito” à Ucrânia. A mídia ligada à Rússia destacou, nesta quinta-feira (21), um artigo do veterano jornalista Seymour Hersh (86 anos), intitulado “O ‘mau momento’ de Zelensky”, onde Hersh afirma que “a guerra entre a Rússia e a Ucrânia (…) está em um ponto de virada“, que marcará a derrota definitiva da Ucrânia. Hersh menciona uma fonte anônima, que “passou os primeiros anos de sua carreira trabalhando contra a agressão e espionagem soviética“. O agente descarta a narrativa ucraniana sobre um progresso lento, mas constante, da contraofensiva, “‘É tudo mentira'”, disse a fonte, segundo Hersh. “‘A guerra acabou. A Rússia venceu. Não há mais ofensiva ucraniana, mas a Casa Branca e a mídia americana têm que manter a mentira.'” Hersh ganhou o prêmio Pulitzer de reportagem internacional em 1970, ao revelar a extensão dos crimes praticados pelas tropas dos EUA no episódio da aldeia de My Lai, no Vietnã, sendo famoso por suas muitas reportagens que constrangem o Departamento de Estado dos EUA. Mas não é só o “incômodo” Hersh que está a revelar verdades incômodas. Igualmente nesta quinta-feira, Michael C. Desch, professor de relações internacionais na Universidade de Notre Dame, publicou um longo artigo na revista Harper’s Magazine, intitulado: “A tragédia de Volodymyr Zelensky“, tendo como subtítulo: “Presidente ucraniano longe de seu melhor momento“. Nas próximas notas iremos fazer um extrato deste texto.
Zelensky, cúmplice da corrupção
A Harper’s Magazine é uma publicação das mais prestigiadas e longevas dos EUA (o primeiro número é de 1850), e o autor do artigo também é colaborador costumeiro da revista The American Conservative (O Conservador Americano). Michael C. Desch não esconde sua simpatia por Zelensky e sua reprovação à Rússia, mas o artigo é revelador do estágio em que se encontra a luta política nos EUA envolvendo o tema Ucrânia. O texto começa comparando Zelensky com Churchill (“também conhecido por defender seu país contra a agressão de um líder autoritário“, diz o autor), mas reconhece que o presidente ucraniano não cumpriu suas duas principais promessas de campanha: combater a corrupção e trazer a paz, o que, como consequência, teria levado à “trágica situação em que a Ucrânia se encontra hoje“. Mesmo afirmando que “a determinação de Zelensky em erradicar a corrupção ficou evidente no início de seu mandato“, o artigo revela que “Zelensky e seus associados foram vinculados por jornalistas a cerca de 40 milhões de dólares em contas offshore associadas ao notório PrivatBank de Kolomoisky“. Kolomoisky, que atualmente está preso, é um magnata midiático dono do canal de TV que transmitiu a série cômica “Servo do Povo”, com a qual Zelensky se projetou. A “determinação” de Zelensky em combater a corrupção não era tanta assim, como admite Michael C. Desch, ao mencionar que, além do suposto dinheiro no PrivatBank: “Outro sinal de que Zelensky não estava disposto a limpar os estábulos de Augias da Ucrânia veio em março de 2020, quando ele demitiu o primeiro-ministro, Oleksiy Honcharuk, cujos esforços anticorrupção estavam causando agitação“.
Zelensky trai as promessas de paz
O texto da Harper’s Magazine recorda que em novembro de 2019 uma pesquisa realizada pela Fundação Iniciativas Democráticas descobriu que 73% dos ucranianos apoiavam um acordo negociado com a Rússia. Zelensky havia sido eleito presidente ucraniano em abril de 2019 de forma esmagadora, conquistando mais de 70% dos votos no segundo turno e tendo como ponto de destaque de sua plataforma a paz com a Rússia, “estou pronto para perder minha popularidade, meus índices de aprovação, se necessário, ou até mesmo meu cargo, desde que alcancemos a paz“, prometia Zelensky. O trecho a seguir aponta que Putin não era o principal obstáculo para que o presidente ucraniano cumprisse sua promessa de campanha: “A Rússia também parecia disposta a negociar. Um porta-voz do presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que o interesse principal do país nas eleições ucranianas de 2019 era ver um candidato vencer que trabalhasse para resolver o conflito. Putin manteve até 2021 que ‘o Donbas é uma questão interna do Estado ucraniano’ e esperou até a véspera da ‘operação militar especial’ de fevereiro de 2022 para apoiar a independência das oblasts rebeldes de Lugansk e Donetsk. Isso sugere que a estratégia inicial de Putin era garantir que os ucranianos pró-russos retivessem o poder de veto para equilibrar a inclinação cada vez mais ocidental de Kiev. O New York Times citou a afirmação do ex-presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, de que a Rússia teria trocado o Donbass por ‘outras coisas’ – a promessa de que a Ucrânia não se juntaria à OTAN, por exemplo“. E Zelensky, sempre segundo Michael C. Desch, parecia inicialmente inclinado a alcançar um acordo, baseado nas negociações de Minsk, que começaram em 2014 quando o conflito no Donbass assumiu feições favoráveis aos rebeldes pró-russos.
O acordo de Minsk
C. Desch descreve o que era o acordo de Minsk: “Os acordos de Minsk, assinados em setembro de 2014 e fevereiro de 2015, previam um cessar-fogo, retirada de armas pesadas, implantação de observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), desmobilização de milícias, partida de combatentes estrangeiros e eventual controle ucraniano da fronteira internacional, após as eleições“. Os acordos previam ainda “uma descentralização do poder, um status especial para Lugansk e Donetsk, a realização de eleições locais dentro das autoproclamadas repúblicas e anistia geral para combatentes de ambos os lados. Economicamente, os acordos se concentraram na retomada de laços comerciais entre as províncias controladas por Kiev e as repúblicas rebeldes. Por fim, enumeraram disposições para ajuda humanitária e troca de prisioneiros civis e militares.” O professor e articulista argumenta que Zelensky inicialmente tomou medidas para cumprir os acordos “e estava se preparando para mover as forças ucranianas de volta da linha de contato no Donbass – uma demanda chave de Putin (…) Mas em breve ele (Zelensky) se depararia com uma das forças que também haviam ajudado a frustrar seus esforços anticorrupção: a extrema-direita nacionalista“.
“Zelensky rende-se à extrema-direita”
Michael C. Desch afirma que as alegações da Rússia de que o regime de Kiev é neofascista carecem de credibilidade. Porém, em seguida, relata os diversos grupos de extrema-direita que atuam na política ucraniana e admite que eles são “super-representados” nas forças armadas. C. Desch alega que, no início do mandato, Zelensky deu “hesitantes” passos iniciais para cumprir os acordos de Minsk, entre eles o início de um cessar-fogo. O autor diz que existe um vídeo do presidente ucraniano sendo intimidado, quando visitava as tropas, por um líder neofascista, Denys Yantar, que exigia a continuação dos combates. A partir de outubro de 2019, a extrema-direita organizou vários protestos, um deles na própria praça Maidan, com discursos repletos de ameaças a Zelensky. Um site neofascista incluiu a esposa de Zelensky, Olena Zelensky, na lista das personalidades anti-ucranianas. C. Desch não cita isso, mas é do conhecimento público que um dos líderes neofascistas declarou que Zelensky seria enforcado “em uma árvore de Kiev” se fizesse a paz com os russos. Descreve então, o autor: “No início de 2021, Zelensky moveu um grande número de tropas de volta em direção à linha de contato, fechou veículos de mídia pró-russos e acusou os líderes das repúblicas separatistas de traição. Pouco depois dessas medidas, a Rússia começou a aumentar suas forças militares do outro lado da fronteira“. Mas a culpa, segundo diz o texto, não é só do ex-comediante: “o Ocidente, e os Estados Unidos em particular, também têm sua parcela de responsabilidade pelos fracassos de Zelensky. Os Estados Unidos fizeram pouco desde 2013 para promover um acordo pacífico no conflito, e suas ações mais recentes só inflamaram as tensões (…) logo após assumir o cargo, Joe Biden começou a minar os acordos de Minsk“. O artigo descreve ainda as negociações no início do conflito (fevereiro de 2022), constatando ser um consenso que foi a intervenção do Ocidente que impediu um acordo de paz naquela ocasião.
A guerra hoje, interessa a Zelensky?
O texto termina com uma reflexão interessante: talvez, para Zelensky (não para a Ucrânia) seja interessante politicamente o prolongamento do conflito. C. Desch lembra que, em 1945, depois de vencer os alemães na guerra, Winston Churchill foi derrotado nas urnas. “Zelensky, por vezes, como Churchill, tornou-se um herói fora de seu país, enquanto sua popularidade está diminuindo em casa. Onde ele costumava apenas ceder à extrema-direita durante o processo de Minsk, agora parece estar abraçando algumas de suas principais figuras, como o comandante Azov, Denys Prokopenko“. E mais adiante: “O cenário de pesadelo é que Zelensky reconheça (…) a frustração de sua agenda doméstica (…) e o fato de que, quanto mais a guerra se arrasta, mais as eleições podem ser adiadas sob a lei marcial“. Deixo, neste ponto, de citar o artigo de Michael C. Desch para constatar o óbvio: Zelensky não tem autonomia para decidir sobre o fim ou o prolongamento da guerra. Aliás, ele é o primeiro a reconhecer que sem o apoio dos EUA o “jogo” acaba rápido. Muitos outros fatores determinarão o ritmo deste desfecho, entre eles a eleição americana em 2024. Caso o fracasso ucraniano no campo de batalha seja somado a um desempenho ruim da economia doméstica nos EUA, Biden não conseguirá sustentar sua política ucraniana até aqui implementada e terá que – sob pena de entregar a eleição de bandeja para Trump – encontrar uma saída honrosa para esta enrascada. Neste sentido, vai se formando, na intelligentsia conservadora/liberal estadunidense, o arcabouço de argumentos que sustentará, no plano das ideias, uma possível retirada do apoio total dos EUA ao conflito. Aos poucos, por aqui, em nossa domesticada mídia hegemônica, já chegam os ecos da nova tendência. A CNN, nesta quinta-feira, no site em português, estampou a chamada: “Ocidente começa a dar sinais de que pode abandonar a Ucrânia“. Alguém, por favor, faça a gentileza de avisar a Folha de S. Paulo.
Por Wevergton Brito Lima
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