A China Comunista é inimiga do “Mundo Livre” e do Brasil?
No dia 24 de julho, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez um discurso na Biblioteca Presidencial Richard Nixon, Califórnia, determinando a China Comunista como “Inimiga do Mundo Livre”. “O Partido Comunista da China (PCCh) não só atua de forma cada vez mais autoritária na China, mas também mais hostil à liberdade das outras partes do mundo”. Ele seguiu citando o presidente Trump, “Basta, o mundo livre tem que acabar com a nova tirania!”
Por Jia Chen*
As palavras dos senhores Pompeo e Trump soam familiares para mim, que nasci em 1973 em Pequim, e para muitos chineses da minha geração e da geração dos meus pais.
Sim, isso lembra a Grande Revolução Cultural da China, em que o meu país estava fechado e explorando com muita dificuldade um rumo de desenvolvimento certo. Na memória da gente, ouviam-se sempre palavras de ordem na rádio: “O Imperialismo nunca desiste de nos matar! Unam-se, classe proletária de todo o mundo”, “Os inimigos do nosso inimigo serão nossos amigos!”, entre outras, em tom tipicamente energético e beligerante, igual ao do Sr. Pompeo.
Não obstante as pioras recentes das relações entre a China e os EUA sob a administração de Trump, fiquei surpreso ao assistir à retórica do Sr. Pompeo.
Para a nova geração crescida após a queda do Muro de Berlim, essa narrativa é parecida até mesmo com uma renascença de certos episódios que hoje só existem nos livros de história. Tendo vivido à Reforma e Abertura da China e à evolução das relações sino americanas de confrontamento total a maiores parceiros comerciais do mundo, estou realmente confuso. O PCCh que conduziu a China do fechamento à abertura, do isolamento absoluto a um grande país responsável e sempre defensor da paz mundial, de repente se tornou “Inimigo do Mundo Livre”?
Para entender melhor, primeiro a gente tem que saber como se define o “Mundo Livre” do Sr. Pompeo.
Baseado na informação do discurso, o chamado “Mundo Livre” deve se referir ao mundo ocidental encabeçado pelos EUA, ou seja, os países ocidentais “democráticos” que gozam de posições predominantes nas áreas política, econômica e cultural do mundo de hoje. Muito embora a liberdade e a democracia tenham sido também valores buscados pelo PCCh ao longo dos anos, devido às suas interpretações e formas de demonstração diferentes, a China nunca foi aceita como um membro do “clube Mundo Livre”.
Todavia, algo inegável é que a interação entre a China e o mundo de fora está se intensificando constantemente, com um processo de integração que jamais parou.
Remontando aos finais da década 1970, a China era o único país do mundo que confrontava ao mesmo tempo os EUA e a ex-União Soviética, praticamente isolado do exterior. A partir daí, se iniciou a sua reintegração gradual à comunidade internacional.
O meu país era comparável a um jovem estagiário proveniente de uma região montanhosa muito pobre, que recém chegou a uma grande cidade moderna pela primeira vez na sua vida. Ao longo de mais de 40 anos, o rapaz tem se dedicado ao trabalho incansável, enquanto aprende e leva, silenciosa e humildemente, as lições das regras de sobrevivência.
Na China dessa era, um dos temas mais falados era “como se coloca a gente nas órbitas internacionais”. A entrada na Organização Mundial de Comércio, desempenho ativo nas ações das Nações Unidas, a mudança radical da postura chinesa em frente à globalização: de nervoso e angustiado a um promotor entusiástico, e hoje uma força importante na defesa da paz e do desenvolvimento mundial. Tem sido contraste irônico que, no tempo presente em que a única superpotência e o líder do “Mundo Livre” está se retirando de várias organizações internacionais, despertando guerras comerciais com outros países, se radicalizando em unilateralismo e utilizando maneiras indiscriminadas de perseguição contra empresas de alta tecnologia de outros países, a China Comunista continua apostando firmemente no rumo de abertura e benefício mútuo, confiando na globalização econômica e acreditando que o próprio unilateralismo é que é o verdadeiro inimigo do “Mundo Livre”.
Comecei o meu mandato na embaixada da China no Brasil em outubro de 2019. Dez meses depois, já tenho sido completamente conquistado pelo clima agradável, os pratos deliciosos e particularmente a abertura, a simpatia, a simplicidade e o otimismo do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, com meu conhecimento primário da política brasileira, já abandonei a mínima dúvida de que o Brasil faça parte do ocidente, ou seja, do “Mundo Livre”, o que é amplamente aceito pelo povo.
Apesar disso, durante quase meio século desde o estabelecimento da relação diplomática entre os dois países, a diferença ideológica nunca causou problemas significativos para o crescimento das relações de cooperação e amizade entre os dois países. Tal como outros países membros do “Mundo Livre”, o Brasil abriu os braços à China aberta, o que tem beneficiado efetivamente ambos povos, graças à expansão impressionante da cooperação bilateral.
Vale a pena mencionar que, em paralelo à consolidação das relações entre os dois países, o PCCh vem cultivando relações amistosas e troca de visitas com diversos partidos políticos brasileiros tanto de esquerda quanto de centro e de direita.
Igualdade completa, respeito mútuo e não intervenção nos assuntos internos são princípios fundamentais na manutenção de relações internacionais do PCCh. O objetivo dessas relações é simples e inequívoco – aprofundar o conhecimento mútuo e catalisar o reforço das relações entre os países.
Porém, recentemente, à medida da campanha insana de supressão dos EUA contra a China na dimensão internacional, alguns brasileiros dançam no ritmo dos americanos.
Eles quase coordenadamente inferem perante o rápido desenvolvimento da relação sino-brasileira, “os chineses estão materializando o esquema de dominar o Brasil”, e não se cansam em alarmar o povo brasileiro. Nas falas deles, o PCCh, o povo chinês e os produtos da China se transformaram em uma ameaça ao Brasil da noite para o dia.
Todos têm o direito de gostar ou não de um país ou partido estrangeiro, a liberdade de expressão merece respeito. Mas as propagandas extremamente absurdas como “o PCCh produziu o vírus com vista a dominar o mundo”, “a vacina produzida pela China Comunista leva um chip invisível no corpo das pessoas para as vigiar”, “o fio metálico nas máscaras de fabricação chinesa é na verdade uma antena de 5G para controlar as pessoas”, meramente servem para provocar a confrontação entre as nações, e infelizmente constituem calúnia e mágoa para uma nação amiga.
De fato, o Sr. Secretário de Estado ampliou deliberadamente ainda mais a definição do “Mundo Livre”. Além dos países, isso abrangeria também os dissidentes da China, especialmente Taiwan, Hong Kong e Xinjiang. Independentemente de seus feitos separatistas, de violência contra a polícia ou terroristas, que causaram milhares de mortes, basta se manifestar contra a direção do PCCh e, parabéns, sejam bem vindos ao “Mundo Livre”! Nem seria necessário contar os contextos das questões, basta destacar que todas essas regiões são partes da China, as questões fazem parte da soberania chinesa, o que é confirmado na lei internacional e reconhecido pela maioria absoluta dos países do mundo, inclusive os EUA. Então a questão de quem é que está arranjando problema e violando a ordem internacional já se torna bem clara.
Naturalmente, se o “Mundo Livre” tem que ser abrangente dessa maneira, já não resta alternativa alguma para o PCCh senão aceitar a etiqueta do “Inimigo”.
O PCCh é da opinião de que o interesse coletivo da nação é acima do individual. As grandes turbulências, a miséria e as humilhações na história recente, assim como o progresso e ordem nas últimas décadas, fazem com que cada vez mais chineses acreditem que somente com a unidade nacional e a estabilidade social é que podemos fazer o bolo maior e portanto cada um terá acesso a uma fatia maior. O PCCh nunca aceita as noções de “os direitos humanos superam a soberania”, “a desculpa de resolver problemas internos de um país justifica a intervenção”. A unidade básica das relações internacionais são os países soberanos. De acordo com esse princípio, a China nunca diz boatos sobre as questões da Amazônia e dos direitos dos indígenas do Brasil. Ainda por cima, não faltam exemplos bem recentes no mundo de que, por mais nobres as desculpas que buscam as interferências, eventualmente acabam trazendo ao país muita desgraça, confusão e ódio sem fim.
Tenho toda a consciência de que estas posições defendidas pelo PCCh não têm muito mercado no “Mundo Livre” de hoje. Do ponto de vista de muitos, elas não acompanham a evolução da “grande causa de democracia da humanidade”. Obviamente, a governança do PCCh tem algo diferente do “Mundo Livre”. Mas a pergunta é: a diferença necessariamente implica inimizade?
Em períodos da história antiga, a China já foi o país mais poderoso do mundo. Mesmo assim ela nunca agrediu outros países. No século XV, as frotas enviadas pelos imperadores chineses já atingiram ao sul da Ásia e à África, dezenas de anos antes dos Descobrimentos europeus, mas nunca criaram nenhuma colônia ultramar. Hoje, apesar da participação ativa na governança global, a China segue a tradição de não impor as próprias ideologias aos outros países. A nação chinesa inatamente não é dotada dos genes daqueles que prosperaram como piratas, colonialistas e traficantes de escravos, nem consente a sua filosofia de que “um país emergente certamente procurará hegemonia”.
Em 24 de outubro 2019, o presidente Jair Bolsonaro inicia a sua primeira visita à China.
Na chegada a Pequim, questionado por um jornalista brasileiro sobre o seu comentário de visitar ao país liderado pelo maior partido comunista do mundo, o Sr. Presidente respondeu, “Estou em um país capitalista”. Francamente admiro a resposta. Não é que concorde com o Sr. Presidente, o PCCh está ciente de qual modelo político ele está construindo na China independentemente da opinião alheia. Foram a sua flexibilidade e pragmatismo é que me deixaram uma forte impressão. Na verdade, 42 anos depois da introdução de Abertura e Reforma na China, mesmo os chineses já vêm perdendo o entusiasmo de debater e falar sobre os “ismos”. No lugar destes, está a filosofia protagonista de que “só o desenvolvimento é que conta”, que todos os chineses aprenderam com as próprias experiências pessoais.
Entretanto, o Sr. Pompeo não tem parado as viagens pelo mundo todo vendendo o seu pensamento da Nova Guerra Fria, com o objetivo de salvaguardar a hegemonia global americana e criar uma aliança para conter a emergência da China, nada mais. No âmbito internacional, espero que os países “acenados” por ele julguem com razão e soberania. Enquanto na China, segundo os levantamentos de diversos institutos de pesquisa independentes do ocidente, o PCCh tem assegurado taxas de popularidade consistentemente acima de 85%. Portanto não vejo hipótese alguma de sucesso da sua estratégia de incitar confrontação entre o PCCh e o povo chinês.
Desde a minha chegada ao Brasil, sempre que conheço mais uma espécie de frutas exóticas, que são muitas, e vejo o pôr-do-sol esplêndido de Brasília, ao mesmo tempo que fico encantado, faço votos de que a aproximação e cooperação entre os nossos dois povos sejam pouco atrapalhadas pelas perturbações do radicalismo e da geopolítica.
Porque, apenas como tal, é que mais parentes, amigos e compatriotas poderão saborear as delícias brasileiras, vir comtemplar as paisagens daqui, e dar a conhecer também aos brasileiros as coisas interessantes ilimitadas de lá.
Apesar dos desafios, estou otimista com o futuro.
* Conselheiro Político da Embaixada da China no Brasil
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