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A crise equatoriana em 12 pontos

Foto: Reuters

1° – No último dia 01/10, o presidente do Equador, Lenín Moreno, anunciou a adoção de um pacote de medidas de austeridade, em consonância com as prerrogativas para a obtenção de um robusto empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Por Tiago Soares Nogara *

Este pacote promoveu a eliminação dos subsídios ao consumo de combustíveis, ferramenta que perdurava há mais de 40 anos no país. Como consequência, o preço do diesel subiu em cerca de 120% e o da gasolina regular em 30%. Respondendo às medidas, que afetaram abruptamente o poder de compra da população, foram convocadas inúmeras paralisações no dia 03/10, ensejando uma greve nacional que mobilizou caminhoneiros, motoristas de ônibus, de táxis e vans escolares. O governo reagiu com pronta repressão, decretando Estado de exceção e detendo mais de 379 pessoas nos primeiros dias de manifestações.

2° – No dia 8, Moreno comunicou a transferência da sede do governo de Quito, centro das agitações, para Guayaquil, numa aparição televisiva ao lado do vice-presidente, Otto Sonnenholzner, e do comando militar do país. Nesta mesma data, começaram a chegar à capital contingentes militantes da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), para encorpar os protestos. Não tardou para que a Assembleia Nacional do Equador fosse invadida, com instalação de uma “Assembleia Popular” pelos movimentos sociais, que passaram a exigir imediata derrogação do Decreto Executivo 883, responsável por eliminar os subsídios à compra de combustíveis. O governo logo tratou de acusar Nicolás Maduro, presidente venezuelano, e Rafael Correa, ex-presidente do Equador, de estarem por trás dos protestos, denunciando que agentes estrangeiros estariam recebendo entre 40 e 50 dólares diários para promover atividades terroristas no país.

3° – Ainda que tenham ensejado o estopim das manifestações, as recentes medidas de austeridade adotadas pelo governo morenista são parte de um processo mais amplo, de reversão do conjunto dos avanços sociais conquistados pelo Equador durante a chamada Revolução Cidadã. A Revolução Cidadã foi o nome atribuído ao processo de transformações políticas e sociais dirigidas pelo ex-presidente Rafael Correa e seu partido, o Alianza Patria Altiva y Soberana (Alianza PAÍS), a partir de 2007. À época, o Equador enfrentava um período de intensa instabilidade, dirigido por nada menos do que sete presidentes entre 1996 e 2007, dos quais três foram derrocados, um foi destituído pela Assembleia Nacional, outro assumiu o cargo como interino e outros três apenas finalizaram mandatos que não haviam encabeçado na origem. Correa foi eleito com uma plataforma de repúdio às instituições políticas então vigentes do país, e seu partido não lançou candidatos ao Legislativo, ambicionando realizar uma Assembleia Constituinte em prol da refundação do Estado sob novas bases.

4° – Vitorioso, Correa conseguiu aprovar a realização de uma ampla Assembleia Constituinte, obter a maioria entre os delegados constituintes e reorganizar o país a partir de uma perspectiva alinhada com o aprofundamento de mecanismo de consulta à sociedade civil, desenvolvidos paralelamente à perspectiva de retomada da capacidade de intervenção do Estado. Reeleito em 2009 e 2013, Correa foi o presidente com mandatos consecutivos mais longevos da história do Equador, e não o conseguiu por acaso: entre 2007 e 2015, logrou reduzir a porcentagem de pessoas pobres no país de 36,7% para 23,3%; registrou, entre 2007 e 2015, uma taxa média de crescimento econômico de 3,9% ao ano; a taxa de desemprego despencou para 4,3%, também estabelecendo um recorde; o salário mínimo teve um aumento de mais de 100% no período, passando de 160 para 366 dólares; os investimentos na educação pública subiram, entre 2006 e 2011, de 90 para 763 milhões de dólares, e os investimentos em saúde duplicaram de 118 para 223 dólares por habitante. (TELESUR, 2015; KLACHKO; ARKONADA, 2017)

5° – Apesar dos números expressivos, o governo de Correa também sofreu com forte oposição de setores tanto da direita quanto da esquerda equatoriana. Os primeiros, representados pelas elites tradicionais do país, alinharam-se à grande mídia e aos setores ascendentes da nova classe média para impetrar uma cruzada contra o que caracterizavam como populismo, autoritarismo  e corrupção, valendo-se de métodos de enfrentamento não muito distintos dos utilizados contra os demais governos de esquerda e centro-esquerda no restante da América do Sul. Por outro lado, as organizações indigenistas, como a CONAIE e o Pachakutik, também estabeleceram oposição ao governo do Alianza PAÍS, questionando principalmente os métodos extrativistas do desenvolvimentismo em voga no país. Um dos focos das divergências entre Correa e as organizações indígenas, a exploração de imensas reservas petrolíferas no parque nacional Yasuní, na Amazônia equatoriana, constituiu persistente entrave para eventuais aproximações. O governo sempre alegou a necessidade de avançar nestas atividades para fortalecer a economia e o Estado equatoriano, pavimentando a manutenção dos programas que vinham elevando ininterruptamente os padrões de vida da população. Não por acaso, Correa fez questão de intitular a dita oposição de esquerda enquanto “esquerdismo, ecologismo e indianismo infantis”.

6° – Se nos primeiros sete anos da Revolução Cidadã esta foi favorecida por um contexto internacional de alta nos valores das commodities, principalmente do petróleo, a partir de 2014 a valorização do dólar (cabe lembrar que a economia equatoriana é dolarizada) e a drástica redução dos valores de exportação do petróleo equatoriano afetaram consistentemente a capacidade de o país manter seus níveis de crescimento. Assim, o final do último mandato de Correa foi marcado pela adoção de algumas medidas econômicas ortodoxas, de austeridade fiscal, e de retomada de diálogos com o FMI. Nas eleições de 2017, seu sucessor, Lenín Moreno, vice-presidente nos primeiros dois mandatos, garantiu a persistência do Alianza PAÍS no governo por uma margem apertada. No entanto, logo após as eleições tratou de se afastar de Correa e buscar concertações políticas com os grupos oposicionistas tanto da esquerda quanto da direita, o que ensejou acusações de traição pela ala correísta  do Alianza PAÍS.

Foto: Rodrigo Buendia-AFP

7° – No contexto internacional, Moreno deu um giro de 180 graus na postura equatoriana, retirando o país da Unasul e da ALBA-TCP, aproximando-se da Aliança do Pacífico e elevando o tom crítico ao governo chavista de Nicolás Maduro. Internamente, o foco do presidente foi em liderar uma ampla frente anticorreísta, centrando seu programa no desmantelamento de ferramentas de controle estatal construídas pela Revolução Cidadã e numa incessante cruzada contra a corrupção. Assim, reatou pleno diálogo do governo com a CONAIE, desbaratou os instrumentos de controle do governo sobre os grandes aparatos midiáticos do país e contou com o apoio das elites e partidos tradicionais para convocar um plebiscito em prol da inabilitação eleitoral de políticos envolvidos com esquemas de corrupção, além de proibição de reeleição, mesmo que em mandatos intermitentes. Consequentemente, logrou retirar Correa do cenário imediato das próximas eleições presidenciais, tomou o Alianza PAÍS de suas mãos e ainda garantiu a governabilidade por meio de amplos acordos. De quebra, aproveitou instrumentos típicos de lawfare para perseguir quadros políticos da confiança de Correa, dentre eles o vice-presidente Jorge Glas, preso em agosto de 2017 por suporta participação em negociatas ilegais junto à Odebrecht.

8° – Logo, as atuais medidas de austeridade adotadas por Moreno não são uma questão isolada, mas parte intrínseca de um amplo e sistemático processo de reversão das conquistas políticas e sociais logrados pela Revolução Cidadã correísta. Cabe destacar que nos primeiros sete anos de Correa foram priorizadas medidas econômicas heterodoxas, tendo a ortodoxia prevalecido num pequeno hiato final do governo, marcado pelo contexto de crise gerada pela queda dos preços das commodities e pela valorização do dólar. No caso de Moreno, resta evidente que as políticas de austeridade fiscal, desregulamentação e atrofia do Estado constituem uma política de governo, e não uma manobra conjuntural. Este caráter se expressa precisamente na chamada Ley de Fomento Productivo, que consagrou o pleno realinhamento do governo às diretrizes neoliberais, praticamente aniquilando toda e qualquer capacidade do investimento público ressurgir enquanto política de Estado, ao vetar o aumento do orçamento do setor público para além de 3% anuais.

9° – Longe de uma exceção, o padrão das manifestações de massa por ora esboçadas no Equador mais parecem constituir uma regra de sua dinâmica política. Eventos semelhantes estiveram por detrás das quedas presidenciais de 1997, 2000 e 2005, e as mesmas cenas de populares enfrentando policiais e indígenas atacando prédios do poder público já preencheram as ruas de Quito nestas outras ocasiões, não necessariamente gerando desfechos em prol do fortalecimento do Estado e da construção de uma alternativa capaz de elevar o padrão de vida da população. Pelo contrário: não raras vezes as organizações políticas que hoje reivindicam o protagonismo dos atos respaldaram a ascensão de governos com uma agenda muito semelhante à de Moreno.

10° – Assim, ainda que o radicalismo das ações orquestradas pela CONAIE ganhe destaque diante da multidão de populares enfurecidos com as medidas de austeridade, quem manobra politicamente para valer-se do vácuo institucional por ora estabelecido são as mesmas forças conservadoras que chancelaram o revisionismo neoliberal em voga no Alianza PAÍS. E exatamente esta dinâmica de flerte, direto ou indireto, da CONAIE com as elites tradicionais equatorianas que reincidentemente acelerou derrubadas de presidentes no período pré-2007, e que durante a Revolução Cidadã também se articulou para tentar impor derrotas ao governo correísta. Portanto, não espanta que a CONAIE tenha composto e apoiado[1] o governo neoliberal de Lucio Gutiérrez[2], assim como até pouco tempo compunha a base social da frente que vinha sustentando politicamente Lenin Moreno.

Foto: Reuters

11° – Logo, longe de estabelecer um estereótipo negativo das manifestações populares em curso, o que cabe ser mensurado é o caráter geral que estas têm assumido, para muito além das organizações que reivindicam seu protagonismo. Eventos semelhantes marcaram o conjunto das jornadas populares contra as políticas neoliberais há algumas décadas, como o Caracazo[3], de 1989, ou o Argentinazo/Cacerolazo[4], de 2001. Contudo, há de se perceber que tanto o correísmo quanto os movimentos esquerdistas equatorianos estão longe de constituírem forças hegemônicas ou com amplo grau de aceite na sociedade. Se o primeiro foi desconstruído por um amplo processo de demonização de sua principal figura pela mídia, pelo atual governo, pelas elites tradicionais equatorianas e pelos próprios setores esquerdistas historicamente oposicionistas à Revolução Cidadã, os segundos parecem esboçar a repetição de sua histórica tendência aos lampejos de protagonismo. Assim, num primeiro momento são manobrados em prol da derrubada de governos, para, posteriormente, terem suas demandas setoriais incorporadas ao programa do novo governo, desde que não conflitando com a agenda central do mesmo, numa simbiose facilmente resultante na conformação de um multiculturalismo neoliberal[5].

12° – Assim, na ausência de uma força social consequente capaz de esboçar um projeto nacional de rearticulação da capacidade operacional do Estado, a fragmentação e dispersão das forças populares e a ascensão direta, ainda que momentânea, dos setores conservadores às esferas governamentais tendem a ser a tônica do próximo período. No entanto, são das adversidades que nascem condicionantes capazes de rearticular cenários relativamente estáticos, e se restam dúvidas sobre a assertiva de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, uma certeza podemos ter: o projeto neoliberal que avança sobre o Equador e o conjunto da América do Sul não tem nada de sólido, e invariavelmente se desmanchará, resta saber pelas mãos de quem.

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB).

Referências:

HALE, Charles R. “Neoliberal multiculturalism: the remaking of cultural rights and racial dominance in Central America”. PoLaR – Political & Legal Anthropology Review, v.28, n.1, 10-28, 2005.

KLACHKO, Paula; ARKONADA, Katu. As lutas populares na América Latina e os governos progressistas: crises e desafios da atualidade. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

LATINOAMERICANA, Equipe. “Lucio Edwin Gutiérrez Borbúa”. Em: SADER, Emir; JINKINGS, Ivana (ORG.). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo, 2006.

TELESUR. “Cuanto ha cambiado Ecuador con la Revolución Ciudadana?”. 15 jan. 2015. Disponível em: <https://www.telesurtv.net/news/Cuanto-ha-cambiado-Ecuador-con-la-Revolucion-Ciudadana–20150115-0097.html>. Acesso em: 12 out. 2019.

 Notas

[1] O Pachakutik compôs o governo de Gutiérrez em seus primeiros oito meses, indicando quatro ministros do governo, dentre eles seus dirigentes históricos, Nina Pacari e Luís Macas, respectivos ministros das Relações Exteriores e da Agricultura (KLACHKO; ARKONADA, 2017).

[2] Após ter integrado a Junta Militar que substituiu o presidente Janil Mahuad, em 2000, foi eleito em 2002, contando com apoio da CONAIE e do Pachakutik. À época, esperava-se que o coronel adotasse medidas com caráter semelhante ao do presidente venezuelano Hugo Chávez. No entanto, este acabou traindo as aspirações de suas bases eleitorais, viajando para os EUA antes mesmo de tomar posse e assinando um acordo de livre-comércio com o governo de George W. Bush. Após uma série de conflitos, Gutiérrez acabou por dissolver a Suprema Corte de Justiça, gerando inúmeras mobilizações populares em prol de sua renúncia. Frente ao constrangimento, renunciou ao cargo em abril de 2005, exilando-se no Brasil. Posteriormente, retornou ao Equador, onde ficou preço até março de 2006, quando o Tribunal Superior de Quito cancelou as acusações e determinou sua imediata libertação. (LATINOAMERICANA, 2006)

[3] O Caracazo, ou “Sacudón”, ocorreu em 27 de fevereiro de 1989, quando a alta nos preços do transporte coletivo, decorrente da subida nos preços da gasolina, e a promessa de novos ajustes neoliberais pelo presidente Pérez levaram as massas populares dos “cerros” de Caracas a saquearem supermercados e lojas, gerando uma repressão policial responsável por mais de 400 mortes

[4] O Cacerolazo consistiu em enormes manifestações populares ocorridas na Argentina em 2001, num contexto de profunda crise econômica, marcado pela palavra de ordem que se vayan todos e resultante na queda do presidente Fernando De la Rúa

[5] “É frequentemente assumido que o princípio central do liberalismo, enquanto cognato sem adornos do qual deriva, é o triunfo de uma ideologia agressivamente individualista do ‘homem econômico’. Em contraste, sugiro que os direitos coletivos, concedidos como medidas compensatórias aos grupos sociais ‘desfavorecidos’, são parte integrante da ideologia neoliberal. Essas políticas de distinções culturais (juntamente com suas contrapartes sociopolíticas), mais do que simples lapso temporal entre o clássico e sua encarnação nos últimos dias, são o que confere ao ‘neo’ seu significado real. Para enfatizar a relação integral entre esses novos direitos culturais e as reformas econômicas neoliberais, utilizo o termo ‘multiculturalismo neoliberal’.” (HALE, Charles, 2005, p. 12, traduzido por mim)

 

 
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