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Debate: Política Externa, Defesa e Inteligência na projeção Internacional do Brasil

Realizou-se, no âmbito da Câmara dos Deputados, no dia 21/11/2018, o Seminário “Política Externa, Defesa e Inteligência na projeção Internacional do Brasil”. O evento contou com uma aula magna, proferida pelo ex-secretário-geral do Ministério da Relações Exteriores e da Organização dos Estados Americanos, embaixador João Clemente Baena Soares e mais 4 painéis: o primeiro sobre “Diplomacia, cooperação e integração”, o segundo sobre a “Imagem do Brasil no Exterior”, o terceiro sobre “Inteligência aplicada à política e à defesa” e o quarto sobre a “Articulação Política entre Diplomacia e Defesa”.

Por Pedro de Oliveira

O presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN), Deputado Federal Nilson Pinto, inaugurou os trabalhos compondo a mesa e chamando o embaixador Baena Soares para sua palestra, intitulada “O Brasil em busca do seu lugar no mundo: nossos deveres e nossas responsabilidades como ator regional e global”.

Durante sua fala, o embaixador procurou situar a conjuntura internacional atual, já que ele considerou que a Guerra Fria havia sido um mundo “mais arrumado, mais previsível, e a guerra só era fria para os dois grandes polos do conflito ideológico, mas não para os que morriam sob guerras regionais”. Para ele, vivemos conflitos de vários tipos entre Estados e entre Estados e agentes não-estatais. Acentua-se a diferença entre poder e riqueza, entre os Estados e entre as regiões. A paz está ausente e, de acordo com o Embaixador, Kant deveria estar revoltado pela não concretização de sua Paz Universal.

Uma política externa define interesses e comportamentos, disse Baena Soares, e a diplomacia é um instrumento da política externa. O embaixador leu, então, o artigo 4º da Constituição Federal: “A política externa da República Federativa do Brasil rege-se, nas relações internacionais, pelos seguintes princípios, a saber: 1) Independência Nacional; 2) Prevalência dos Direitos Humanos; 3) Autodeterminação dos Povos; 4) Não intervenção; 5) Igualdade entre os Estados; 6) Defesa da Paz; 7) Solução pacífica dos conflitos; 8) Repúdio ao terrorismo e ao racismo; 9) Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; 10) Concessão de Asilo Político. Peço atenção ao Parágrafo Único”, enfatizou ele: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica e política, social e cultural com os povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade Latino Americana de Nações. Estes são mais que princípios, são metas, são objetivos a serem buscados pela ação diplomática”.

Depois fez uma série de remissões históricas da ação diplomática, quando lembrou dois exemplos emblemáticos: o período do Governo Getúlio Vargas, quando foi possível ao Brasil negociar através da diplomacia com parceiros internacionais como os EUA para a obtenção de um importante investimento na área de siderurgia. Fundou-se, assim, a Siderúrgica de Volta Redonda, que colocou o país em um novo patamar, passando de uma nação essencialmente agrícola para um país que buscava sua industrialização. Baena Soares disse também que a diplomacia foi eficaz mais recentemente na contenda que se estabeleceu com o Japão, quando os japoneses tentaram registrar a propriedade do Açaí, e perderam.

O embaixador lembrou que o processo de formação de nossos embaixadores é muito respeitado no mundo desde 1946, quando se fundou o Instituto Rio Branco.

Por fim, ressaltou a tradição pacifista do Brasil, afirmando que não temos conflitos com nossos vizinhos. Superadas as divergências com a Argentina, fizemos um acordo nuclear assinado pelos então presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, que é único no mundo. Fez elogios aos nossos batalhões de fronteira,  mas considerou que elas são porosas e exigem ação firme das Forças Armadas. Acha que a Venezuela está enferma e esse é um problema que está nas mãos da população venezuelana resolvê-lo. Por fim, o embaixador fez uma análise sobre a questão da água no Brasil, que segundo ele terá no futuro a mesma importância que o petróleo tem hoje. O Brasil possui 12% da água disponível do Planeta e 50% da água da América do Sul. Esse é um tema de cooperação e não de conflito na América Latina. Por fim, encerrou sua palestra falando sobre o bilateralismo e multilateralismo, defendendo a tese de que nas relações internacionais devemos ter respeito aos outros países, incentivar a cooperação em igualdade de condições, buscando benefícios mútuos.

Diplomacia, cooperação e integração: Política Externa e Defesa na projeção do Brasil

O moderador da primeira mesa foi o Professor Creomar de Souza, da Universidade Católica de Brasília, e os painelistas foram o embaixador Rubens Barbosa, diretor-presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Carlos Abijaodi, diretor de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e o general Paul Cruz, ex-diretor de Parcerias Estratégicas do Departamento de Operações de Manutenção da Paz da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em sua intervenção, o embaixador Rubens Barbosa afirmou que o novo governo brasileiro irá enfrentar o período mais turbulento e imprevisível da situação internacional desde 1945. Segundo ele, há um processo de grandes transformações no cenário internacional e vivemos uma crise do multilateralismo. A globalização está sob ataque, estamos às vésperas de uma guerra comercial e de uma disputa de poder mais ampla entre a China e os Estados Unidos. Nesse contexto, teríamos que ter feito uma revisão de conceitos, pois nos últimos anos não houve uma renovação do pensamento estratégico, sendo que o Brasil é a 10ª economia no mundo, mas está isolado e perdeu espaço nas negociações comerciais globais e na produção de manufaturas. O país está com uma agenda pesada na área econômica, comercial e de política externa, na área da inovação e da tecnologia.

O embaixador Barbosa considerou que as prioridades do futuro governo deveriam ser: definir o que o Brasil quer das relações com os EUA, com a Europa, com a China e com os países vizinhos; o futuro governo deverá reinserir o Brasil nos fluxos de comércio mundial; fortalecer a voz do Brasil na cena internacional; e cuidar do nosso entorno geográfico. O governo deverá enfrentar a campanha de descrédito internacional sobre o Brasil, deverá enfrentar a questão da integração regional, a volta ao Mercosul em suas origens, pois vamos ter uma área de livre comércio na região com a implantação dos acordos da ALADI, a renegociação do gás com a Bolívia e do tratado de Itaipu com o Paraguai.

Seria necessário o novo governo decidir como o Brasil poderia se beneficiar da guerra comercial entre os EUA e a China, a reforma da OMC e a questão dos BRICS. No ano que vem, teremos a reunião de cúpula dos BRICS no Brasil e o nosso país será presidente do Banco de Desenvolvimento dessa articulação. Ouve-se nas discussões do futuro governo a possibilidade de perda de capacidades do Ministério de Relações Exteriores para um superministério da Economia e será preciso ver como isso poderá afetar a política externa.

Temas complexos exigem atenção: a adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, por exemplo. O embaixador se reservou o direito de não comentar declarações feitas pelo novo governo durante a campanha e logo depois da vitória. Defendeu, por fim, a continuidade das relações entre o Ministério da Defesa e o MRE.

O diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI, Carlos Abijaodi, destacou a necessidade de coerência e coordenação nas relações entre a política externa e a política comercial no Brasil. A política externa, segundo ele, deve ser uma política de Estado, mais permanente. O país hoje é um “global player”, exportador não somente de matérias primas, mas de mercadorias diversificadas. A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil. Há um certo equilíbrio na atual balança de exportação brasileira, em que temos 52% de produtos industrializados e 48% de produtos primários. Além disso o representante da CNI discorreu sobre como a política comercial é influenciada pela agenda internacional da indústria, como os acordos comerciais, os investimentos brasileiros no exterior, as barreiras em terceiros mercados, a tributação no comércio exterior, o financiamento e garantias às exportações, a logística e infraestrutura no comércio exterior, o plano de internacionalização da indústria e vários outros itens de promoção e atração de investimentos.

Já o general Paul Cruz, ex-diretor de Parcerias estratégicas do Departamento de Operações de Manutenção da Paz da Organização das Nações Unidas (ONU), abordou a questão de defesa e manutenção da paz no mundo. Referenciou-se nos documentos de defesa nacional como a Estratégia Nacional de Defesa, a Política Nacional de Defesa e o Livro Branco. Aproveitou a ocasião para defender a valorização dos salários e garantias previdenciárias dos integrantes das Forças Armadas. Fez questão de lembrar que, para cumprir sua missão constitucional, é preciso haver recursos orçamentários para os equipamentos modernos necessários para fazer a defesa de um continente como é o nosso país e os recursos humanos, que precisam ser formados e atualizados nas novas tecnologias.

O Ministério da Defesa é fundamental para harmonizar o trabalho das 3 Forças. Segundo o general, é preciso ter equilíbrio na constituição de nossas Forças Armadas e estabelecer uma estreita cooperação com o Ministério de Relações Exteriores. Devemos apoiar e incentivar os projetos da Base Industrial de Defesa. A cooperação de nossas Forças Armadas com a de todos os nossos vizinhos e do Entorno Estratégico é muito importante, assim como o Conselho de Defesa Sul Americano, a Junta Interamericana de Defesa, entre vários outros fóruns, e a participação do Brasil em manobras conjuntas multinacionais, sendo que os programas estratégicos de defesa exigem profissionais altamente adestrados e capacitados, além de equipamentos modernos de última geração.

A Imagem do Brasil no Exterior: os prós e contras de um “global player”

O relator do painel foi o professor da Universidade Católica de Goiás, Giovanni Okado, que também contribuiu para este breve relato das exposições feitas. O moderador foi o jornalista Marcelo Rech, que atua na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.

Lourival Sant’Anna falou primeiramente sobre o “soft power” (poder brando) que foi exercido pelo Brasil com a MINUSTAH, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti. Essa experiência de 13 anos foi muito exitosa, uma atuação muito elogiada por vários membros da ONU. Os soldados brasileiros, talvez por sua origem, a maioria advinda das classes populares, e por sua formação, estabeleceram com a população haitiana uma relação de solidariedade e de carinho que não eram vistas em outros corpos de exército, como os norte-americanos que lá estiveram no período imediatamente anterior aos brasileiros.

A preocupação que o jornalista Lourival expressou foi quanto ao protagonismo do Brasil na esfera ambiental, na área climática, especialmente depois da Conferência Mundial do Clima em 1992, no Rio de Janeiro, e da reunião Rio + 20, em 2012. Acredita-se que essa preocupação se deu em função de declarações do presidente eleito durante a campanha eleitoral deste ano, quando se referiu a uma eventual saída do Brasil do Acordo sobre o Clima assinado em Paris, em 2015. Foram mencionados ainda o posicionamento do candidato vitorioso sobre uma possível mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, afirmando que comprar esta briga com os árabes não será uma boa ideia para o Brasil.

O jornalista Fábio Zanini concentrou sua intervenção na relação do Brasil com a África, que nos últimos 15 anos acabou por simbolizar muito mais para o Brasil do que propriamente suas trocas comerciais com o continente africano. Transformou-se numa plataforma da política externa ativa e altiva, protagonizada pelo ex-chanceler Celso Amorim. A África é parte importante da nossa fronteira marítima e tende a ser um continente bastante dinâmico nos próximos anos.

O Brasil, segundo o jornalista, no atual cenário tem um problema de imagem. O país, que sempre foi marcado por um apelo ligado ao futebol e ao turismo, agora teve de enfrentar problemas ligados a denúncias de corrupção de grandes empreiteiras que atuaram pelo mundo. A África, disse ele, é o continente com mais países híbridos, segundo entidades internacionais de defesa dos direitos humanos no mundo, com forte presença autoritária. Na área de defesa, o Brasil tem várias experiências de cooperação com países africanos, como é o caso da cooperação da Marinha brasileira com a Marinha da Namíbia. A sugestão do jornalista é que a futura relação do Brasil com a África fortaleça suas relações comerciais e de cooperação técnica.

A jornalista Denise Chrispim Marin também relatou neste painel a sua opinião sobre o estereótipo gestado no exterior sobre o que é o Brasil, um tanto quanto exótico, com sua natureza, flora e fauna exuberantes. O jornalismo cumpre uma importante tarefa nessa dimensão ao desvendar para o mundo o que é o Brasil atualmente. Ela comentou que hoje os correspondentes estrangeiros vêm fazendo um trabalho de alto nível ao retratar o que se passa em nosso país. Sem dúvida, disse ela, é uma surpreendente a mudança em relação ao que vinha ocorrendo no país nos últimos 15 anos. A jornalista lembrou que a política externa deve ser conduzida por interesses de Estado, mas também a política externa é expressão de interesses relacionados com a política interna, como o fortalecimento da indústria nacional.

Ao lado da defesa dos direitos humanos, da redução de vulnerabilidades sociais, o futuro governo não deve abandonar o respeito aos princípios constitucionais do que deve ser a política externa do país, como disse o embaixador Baena Soares. As declarações feitas durante a campanha do presidente eleito e de seu chanceler nomeado de que a primeira visita do presidente eleito será feita ao Chile, e não à Argentina, como é nossa tradição, assim como a referência à possibilidade de mudança da embaixada brasileira em Israel, não foram bem colocadas e tiveram repercussão negativa no exterior.

A Inteligência aplicada à política externa e à defesa: desafios, ameaças e necessidades

A moderadora dessa mesa foi a professora da ESG, Selma Gonzalez, e os expositores foram o Analista de Assuntos Estratégicos do MPF, André Luis Woloszyn, o sub-corregedor da PM do ES, Eduardo de Oliveira Fernandes, e Fernando Montenegro, Pesquisador do Observatório de Relações Internacionais da Universidade Autônoma de Lisboa.

O analista André Luís colocou a questão da inteligência como um braço fundamental da política externa, especialmente nos países desenvolvidos. É certo que existe a tendência de potencializar as ameaças, disse o representante do MPF. Citou, então, John Kennan, um especialista em guerras muito conceituado, que dizia: a inteligência não pode ganhar uma guerra sozinha. Mas de forma sinérgica, com outros órgãos correlatos, pode se tornar uma ferramenta muito importante. A inteligência de Estado, como assessoramento à direção do Governo, pode ser útil para enfrentar os desafios de ameaças potenciais. Vivemos um período de polarização fortíssima, o crescimento dos índices de criminalidade e no campo internacional vemos um desequilíbrio de poder em relação à ciência digital, encarada como segredo de Estado por alguns países.

Temos um Plano Nacional de Inteligência que está em curso no Brasil para que se possa cumprir as tarefas determinadas em seu planejamento estratégico. São desafios permanentes não somente para o próximo governo, mas para os que se seguirão a ele.

O Sub-Corregedor da PM do Estado de São Paulo, Eduardo de Oliveira Fernandez, se colocou como um operador de segurança pública, dizendo que Inteligência é um dos setores mais rentáveis para o Estado no sentido do bem-estar social. Comemoramos recentemente os 20 anos da ABIN, Agência Brasileira de Inteligência, lembrou. A instituição, segundo ele, precisa ser valorizada para participar das grandes decisões estratégicas sobre segurança e desenvolvimento. São necessários marcos legais que já estão consolidados e devemos nos referenciar nos documentos de Defesa Nacional, como a END e a PND, além do Livro Branco de Defesa, para estabelecer os planos estratégicos.

A Política Nacional de Inteligência deve enfrentar os problemas colocados pela necessidade de se combater a criminalidade. Segundo o oficial, são prioridades nessa área debelar as organizações criminosas que atuam a partir dos presídios espalhados pelo território nacional, enfrentar o crime transnacional, a narco-guerrilha que pode atingir a ordem interna e a defesa do ciberespaço, que é conjunturalmente muito relevante no momento.

O pesquisador do OBSERVARE, da Universidade Autônoma de Lisboa, Fernando Montenegro, propôs-se a complementar as apresentações anteriores, citando Clausewitz sobre a necessidade de uma correta apreciação da realidade para vencer uma guerra. Lembrou também o acrônimo VUCA, explicado pelos professores Nathan Bennett e James Lemoine, da Universidade de Harvard, para caracterizar a realidade atual como sendo marcada por: Volatilidade (Volatility), Incerteza (Uncertainty), Complexidade (Complexity) e Ambiguidade (Ambiguity). Após a explicação detalhada de cada um desses aspectos, o pesquisador lembrou que 96% dos conflitos que assistimos são do tipo assimétrico.

Em seguida, o especialista tratou dos riscos globais de maior preocupação para fazer negócios no Brasil, dizendo que o Brasil está numa posição delicada, em um nível intermediário em relação a outros países, com grande índice de desemprego e subemprego, falhas na infraestrutura crítica, crises fiscais e instabilidade social profunda. Terminou falando sobre os três níveis da esfera de segurança pública no país, o governo federal, o governo estadual e o municipal, entre os quais, segundo o pesquisador, deveria haver uma grande sinergia e articulação. Sua frase de encerramento foi: A sexta lei da guerra na selva é “Combata sempre com inteligência e seja o mais ardiloso”.

A Articulação Política entre Diplomacia e Defesa e seus dilemas

O moderador dessa mesa foi o prof. Juliano da Silva Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, e os expositores foram o diretor-Executivo da Escola Sul-Americana de Defesa, professor Antônio Jorge Ramalho, e o professor Alcides Costa Vaz, Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

O professor Antônio Jorge concentrou-se em dois pontos principais em sua intervenção: numa primeira parte tratou do grande desafio da articulação entre diplomacia e defesa, que já existe mas precisa ser aprofundada. Em uma segunda parte, o professor relatou essa aproximação concreta no âmbito latino-americano. Na verdade, lembrou o professor Antônio Jorge, a primeira semente orgânica da Unasul foi plantada aqui no Brasil, no ano 2000, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, na Conferência de Brasília, que reuniu os 12 países sul-americanos (menos a França, que mesmo assim, foi convidada) para discutir uma visão de mundo de forma conjunta e também suas eventuais discordâncias.

Aquela foi uma importante iniciativa para desenvolver o diálogo entre essas nações, incluída aí a preocupação com a defesa. De lá para cá, ainda é preciso estabelecer um arranjo de cooperação institucionalizado para enfrentar os desafios que estão postos na atualidade na área de segurança e de defesa. Em alguma medida, o continente estava dividido entre setores que se autodenominavam bolivarianos e, no outro polo, aqueles que desejavam uma aproximação com a OTAN. Esses caminhos não foram considerados como linha política do Brasil, tanto pela Casa de Rio Branco quanto pelo Ministério da Defesa. Já a participação brasileira na missão no Haiti (MINUSTAH) foi funcional para estreitar a relação entre a diplomacia (MRE) e o Ministério da Defesa. O MD e o Itamaraty passaram a atuar conjuntamente para o sucesso da operação, mas, em termos gerais, é preciso avançar no estreitamento de contatos entre as duas organizações.

O professor Alcides Costa Vaz, logo no início de sua exposição, evocou o filósofo francês Raymond Aron e sua concepção clássica de diplomacia e estratégia como instrumentos da política externa. Tanto uma como a outra são instâncias que estão niveladas sob o comando unificado do Estado, sendo que deveriam ter uma preocupação de interação entre si. Entretanto, esse mundo ideal, segundo o professor Alcides, não se traduz na realidade, mas está mais próximo do quadro aqui desenhado pelo professor Antônio Jorge.

Estamos num mundo em que as burocracias coexistem, interagem, mas podem também competir e eventualmente conflitar. Em nosso país, a cultura das organizações sempre primou pela ideia de autonomia, não no sentido do isolamento ou do fechamento em si mesmo, mas uma autonomia que admite a necessidade da interação, muitas vezes definida pelo comando político, a partir de necessidades que a conjuntura política demande, ou mesmo pelo auto interesse das próprias organizações.

Dentro desse panorama, desenvolvemos, segundo o professor, uma cultura pouco aberta, que oferece dificuldades na interação inter agências. É preciso reconhecer que no próprio Estado brasileiro existem pouquíssimos espaços de coordenação. Pelo peso institucional do Itamaraty e pela percepção que foi naturalizada ao longo do tempo, há uma noção quase automática de que o Itamaraty é igual à diplomacia e política externa. A sociedade e até o governo muitas vezes delegam ao Itamaraty a função de formulação e implementação de uma determinada política externa. Quando se trata da defesa, a institucionalidade no Brasil é bem mais recente que no caso da diplomacia.

O professor Alcides concluiu que a evolução da concepção de defesa está ligada a dois fatores. Primeiramente, à emergência das questões de segurança e do “retorno da geopolítica” como componentes essenciais da dinâmica das relações internacionais no mundo contemporâneo. Contraditando as expectativas imediatas no pós-Guerra Fria, de que as questões de segurança sairiam da agenda, as questões de segurança permaneceram no topo das preocupações mundiais. O segundo fator são os desenvolvimentos internos do Brasil. Nessa trajetória, primeiramente surge o esboço inicial da Política Nacional de Defesa, depois a própria criação do Ministério da Defesa. Em seguida, vem a segunda versão da Política Nacional de Defesa, em 2005, e finalmente consolida-se a formulação da Estratégia Nacional de Defesa. Permeando tudo isso, em paralelo, o Ministério da Defesa foi se expandindo e adensando a sua agenda internacional, que passou a extrapolar a dimensão da cooperação militar bilateral para o nível superior de cooperação em defesa. Este fenômeno traz consigo demandas de articulação política e projeta uma agenda internacional muito mais complexa do que até então existia, porque ela era carente de um substrato institucional e ela encontra no MD esse substrato institucional sendo construído.

A agenda internacional sobre os problemas da Defesa se aprofundou. Aqui houve uma reação positiva do Ministério de Relações Exteriores, que criou espaços para pensar a questão. Será que estamos diante de respostas e desenhos institucionais que são consentâneos com as necessidades que a dimensão externa nos coloca? – perguntou o expositor. Além disso, inquiriu em que medida a orientação que está sendo imprimida à esfera de segurança e às Forças Armadas no Brasil está conectada com as necessidades impostas pela nova realidade. Aqui nós temos um fator de desvio poderoso. De um lado, uma realidade internacional que convoca a uma reflexão de formulação de pensamentos estratégicos e de políticas que sejam consentâneos com as preocupações que a dimensão externa nos coloca. De outro lado, uma percepção que a sociedade e o próprio governo têm sobre o papel das Forças Armadas em relação à segurança pública na atual conjuntura social brasileira. O fato é que as preocupações dos comandos militares e do Governo se voltam para as necessidades da segurança pública, deixando as grandes preocupações com a estratégia nacional de defesa relativizadas.

Toda essa nova configuração das interações entre a diplomacia e a questão da defesa pode dar conta dos problemas de gestão de uma agenda cotidiana, mas não parece ser suficiente para enfrentar os desafios de maior alcance da defesa e da segurança nacionais e, mais ainda, é insuficiente para convocar outras instâncias do Estado e da própria sociedade para enfrentar estes desafios. É natural que estes mecanismos atuais de interação não extrapolem os limites dos ministérios envolvidos. Mas, segundo o professor, não é natural que essas instâncias de interação não tenham uma ambiência institucional que reflita a importância estratégica dessas relações. Assim como não é natural que essas interações não permeiem o Legislativo e que também não estejam presentes na agenda da sociedade civil. Há um vácuo político e um déficit de coordenação do próprio Estado brasileiro para enfrentar esses problemas. A formação de uma cultura de defesa tem a ver com a visibilidade e a valoração das questões de segurança e de defesa na agenda nacional, concluiu o professor Alcides.

Mediando o debate, o professor Juliano Cortinhas destacou o fato de que as duas importantes intervenções tocaram em pontos semelhantes diante de um ambiente internacional com o retorno da geopolítica, como foi apontado pelos dois palestrantes. A volta de tensões que se considerava arrefecidas desde o início da década de 1990 é ampliada pela transnacionalidade dos desafios que estão diante de nós. Não há como conter estes desafios e ameaças sem levar em conta o aspecto da transnacionalidade na resposta.

Internamente, o ambiente vem sendo afetado por uma maior demanda das Forças Armadas e do Ministério da Defesa para uma atuação endógena. Isso cria um ambiente tanto internacional quanto internamente de grande complexidade e de dificuldade institucional para o Ministério da Defesa, trazendo também efeitos para o Ministérios de Relações Exteriores. O debatedor ainda destacou que foi mencionado pelos dois colegas a necessidade de criação de arranjos institucionais, pois estamos em processo de consolidação da democracia brasileira, e é natural que haja nesse processo períodos de maior prevalência das instituições.

O professor, por fim, levantou uma “provocação” para os dois palestrantes, em suas considerações finais, no sentido de analisar a especificidade do MD, que não possui uma estrutura burocrática própria e tem de mediar conflitos entre três das mais antigas e bem consolidas instituições do Estado brasileiro. Além disso, questionou quais seriam as medidas mais urgentes para acelerar o processo de articulação entre a diplomacia e o Ministério da Defesa.

Em relação ao que poderia ser o mais urgente nesse sentido, finalizou o professor Antônio Jorge, a primeira questão deveria ser o estabelecimento de um arranjo interministerial que reunisse não apenas as duas burocracias em tela, mas que agregasse as burocracias da Economia, do Planejamento, Ciência & Tecnologia e Inovação, e o Comércio Internacional. É necessário que se crie uma sinergia no seio de um arranjo interministerial, e isso requer um funcionamento regular, no qual os ministros se reúnam como acontece nos grandes países do mundo. Dessa maneira, será possível conferir continuidade aos processos de planejamento, distribuindo tarefas e registrando a história e os principais marcadores para as ações de Estado.

Quanto à provocação levantada, é necessário trabalhar com foco em objetivos claros, estabelecendo metas para 10, 20 ou 30 anos, insistiu o professor Antônio Jorge, utilizando assim a engenharia reversa para marcar os prazos para se atingir os objetivos fixados. O envolvimento do Congresso Nacional (já mencionado pelo professor Alcides em sua fala anterior) é essencial, razão pela qual se colocou na lei a necessidade de se renovar e atualizar a cada 4 anos os documentos de Defesa Nacional, com a apreciação e votação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Por fim, para consolidar o Ministério da Defesa como uma instituição do Estado será necessário estabelecer a carreira de Estado própria na esfera da Defesa, como existe a carreira na área da diplomacia, para garantir que haja uma permanência, eliminando superposições e retrabalho. A presença de civis concursados em uma carreira própria é essencial para a consolidação de uma política de defesa consistente, destacou o professor.

Em sua intervenção final, o professor Antônio Jorge destacou ainda a necessidade de aprimoramento do funcionamento do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, que deveria ter um comandante com mandato fixo, de 3 anos, para não coincidir com a eleição presidencial. Além disso, o comandante do EMCFA deveria ser sempre mais antigo que os comandantes das Forças Armadas, de modo a haver prevalência entre eles, e deveriam estar concentradas no Estado Maior Conjunto as funções de operacionalização, deixando para as Forças o preparo. Somente com essas medidas poderá ocorrer a consolidação do Ministério da Defesa, como harmonizador das Forças Armadas.

Ao encerrar sua participação no debate do seminário, o professor Alcides corroborou as opiniões apresentadas pelo professor Antônio Jorge, especialmente no que tange à estruturação de uma carreira de Estado da Defesa, e acrescentou a necessidade de definir uma instância institucionalizada de reflexão, de discussão e de proposição de alcance estratégico sobre as questões atinentes aos interesses da agenda internacional do Brasil.

 

 
Os artigos e ensaios publicados na editoria TODO MUNDO (Opiniões e Debates) não refletem necessariamente a opinião do PCdoB sobre o tema abordado.

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