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Rússia e China, dois anos da nova era de multipolaridade

Neste 4 de fevereiro completaram-se exatos dois anos da vinda a público do Comunicado Conjunto da Federação Russa e da China Popular. O documento longo e abrangente, de maturação cuidadosa e demorada, surgiu durante a visita do presidente Wladimir Putin a Pequim quando da realização dos Jogos de Inverno de 2022, em território chinês.

Dilermando Toni*

Não foi à toa que nomes respeitados na cena das relações internacionais elevaram tal documento à categoria histórica e estrutural. O embaixador Celso Amorim escreveu na revista Carta Capital: “A declaração conjunta de Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Xi Jinping, líder chinês, cristaliza um processo de imenso significado geopolítico e constitui, em si mesma, o fato singular mais importante desde os eventos que marcaram o fim da Guerra Fria, em particular, a derrubada do Muro de Berlim e, sobretudo, a dissolução da União Soviética. Mesmo sem a força jurídica de um tratado, a declaração expressa, com uma clareza nunca antes alcançada, uma realidade até aqui vista apenas como uma possibilidade: o fim da era da hegemonia quase absoluta dos Estados Unidos sobre os destinos do mundo.”[i]

No documento é reafirmada a aliança estratégica, granítica, sem limites entre as duas potências pela via do estreitamento da cooperação nos mais variados terrenos, econômico e financeiro, militar, cultural, científico e tecnológico. Isso não se constitui propriamente em uma novidade. Esta aparece quando os dois países se reconhecem como potências mundiais e avaliam a situação internacional e suas responsabilidades em outro patamar, da seguinte forma: “Hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Vê o desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial; há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados; surgiu uma tendência à redistribuição do poder no mundo; e a comunidade internacional mostra uma demanda crescente por lideranças visando um desenvolvimento pacífico e gradual.” (os grifos são meus, DT).[ii]

Dessa forma o documento consagra formalmente o advento de uma nova ordem mundial a ordem multipolar cujo pilar central é a aliança estratégica entre a Rússia contra hegemônica e a China socialista que passa a ser a principal característica da presente situação internacional.

Não demorou para que os ataques à Declaração por parte do chamado Ocidente coletivo aparecessem em grande volume e alto grau de virulência. Esse fato em si não é de se estranhar porque os EUA e aliados empenhados em recuperar o status de potência hegemônica colocaram como estratégia externa a contenção da China e da Rússia por todos os meios possíveis. Mais claramente, o objetivo imediato de isolar, enfraquecer, dividir e destruir a Rússia tem sido insistentemente declarado pelas mais altas autoridades do governo dos EUA. O que tomou forma concreta com a expansão da OTAN em direção à fronteira russa, com o golpe de estado e o estímulo ao nazismo na Ucrânia e com a guerra desencadeada por este regime contra o povo de etnia russa da região do Donbass, região Leste da Ucrânia, fronteiriça à Russia.

Entretanto, mesmo entre alguns setores da esquerda acadêmica brasileira esse documento não despertou avaliações simpáticas. Desde quando surgiu até o momento. Há quem divirja de seu conteúdo interpretando-o como uma mera aliança tática e que os conflitos, guerras e tensões ora presentes no “sistema internacional” poderiam ter como resultante um mundo unipolar com uma hegemonia dos EUA ainda mais fortalecida. Essa opinião embute insofismavelmente a possibilidade de uma vitória da estratégia de contenção da Rússia e da China por parte dos EUA.

Um outro viés, mais sofisticado insiste em que a multipolaridade ainda não é uma realidade e sim uma tendência do “sistema internacional”, que é marcado sim por uma transição longa, porque a substituição de uma hegemonia seria um processo demorado segundo se poderia depreender da lei do desenvolvimento desigual entre as potências capitalistas formulada por Lênin na segunda década do século XX. Em tal situação, dizem, a perspectiva socialista ficaria mais afastada.

Em qualquer dos seus formatos essas opiniões não interpretam Lênin de forma acertada e nem avaliam a atual correlação de forças com precisão. Distanciando-se, dessa forma, de grande parte da esquerda brasileira e mundial. Não ajudam às forças avançadas a traçar a estratégia, a tática e o programa apropriados para a luta do povo brasileiro. Sobretudo o programa, já que o advento da multipolaridade, a afirmação crescente do socialismo no mundo através das conquistas chinesas, as desigualdades gritantes na sociedade brasileira e o próprio advento de um governo progressista no Brasil, recolocam a necessidade da alternativa socialista. Em não vendo assim correm o risco de resvalar para o oportunismo reformista.

Com efeito, Lênin observando os diferentes ritmos de desenvolvimento dos principais países imperialistas formulou a lei da desigualdade do desenvolvimento econômico e político dos países capitalistas na época do imperialismo. Essa constatação está posta em uma série de passagens de sua obra O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo de 1916 e em várias outras obras deste período. Mas, aos olhos de Lênin e depois de Stálin essas mudanças na correlação de forças se davam de forma rápida, às vezes aos saltos, e não de forma lenta. Em época do imperialismo exacerba-se o dinamismo do desenvolvimento do capitalismo em que pese a tendência à estagnação. Falando sobre essa questão Stálin partia da síntese de Lênin de que “a desigualdade do desenvolvimento econômico e político é uma lei absoluta do capitalismo”[iii] para concluir que “é determinado pela possibilidade que têm alguns grupos imperialistas de incrementar de modo rapidíssimo seus equipamentos técnicos, de baratear mercadorias e de apoderar-se dos mercados, em detrimento de outros grupos imperialistas.”[iv]

Para chegarem a uma dupla conclusão. 1) que devido à concorrência monopolista era inevitável que ocorressem guerras inter-imperialistas e 2) que era possível a ruptura da cadeia imperialista no seu elo mais fraco e, portanto, que seria possível que o socialismo triunfasse em um grupo ou até mesmo em um único país.

Em 1953, analisando a experiência da II Guerra Mundial, Stálin escreveu: “Após a primeira guerra mundial, considerava-se também que a Alemanha havia sido definitivamente posta fora de combate, do mesmo modo como pensam atualmente alguns camaradas que o Japão e a Alemanha foram definitivamente postos fora de combate. Naquela época também se falava e se proclamava na imprensa que os Estados Unidos haviam posto a Europa no regime de tutela, que a Alemanha não poderia mais pôr-se de pé, que daí por diante não haveria mais guerra entre os países capitalistas. Apesar disso a Alemanha pôs-se de pé e elevou-se a grande potência passados 15-20 anos depois da sua derrota, libertou-se do cativeiro e tomou o caminho do desenvolvimento independente.”[v] Por óbvio, aqui Stálin não estava tratando das transições de uma época histórica à outra, mais prolongadas, e sim das modificações na correlação de forças entre potências dentro de uma mesma época histórica. No caso concreto, dentro da época histórica do imperialismo e das revoluções proletárias que ora vivemos.

Na presente situação embora tenha se reforçado muito a dominação dos EUA sobre a Europa é possível que, em perspectiva, devido ao encolhimento do mercado único mundial e o surgimento gradual de um outro mercado e outras formas de pagamento alternativas ao dólar norte-americano entre o chamado Sul Global, surjam maiores contradições entre os países do chamado Ocidente Coletivo. Não se pode deixar de levar essa perspectiva em consideração.

Lênin não chegou a ver o rápido desenvolvimento da URSS pré II Guerra Mundial, assim como Stálin não presenciou o atual fabuloso desenvolvimento chinês. E a história confirma, praticamente, que o socialismo por suas vantagens pode se desenvolver incomparavelmente mais rápido que o capitalismo e, portanto, é sempre uma alternativa a ser aplastada pelo imperialismo. Assim, amplia-se a lei do desenvolvimento desigual, também entre os grandes países imperialistas e os grandes países socialistas.

Mas também é desigual o ritmo de desenvolvimento entre o centro capitalista/imperialista e uma série de países da chamada periferia. Lênin, naquela ocasião escreveu que: “A exportação de capitais repercute-se no desenvolvimento do capitalismo dentro dos países em que são investidos, acelerando-o extraordinariamente. Se, em consequência disso, a referida exportação pode, até certo ponto, ocasionar uma estagnação do desenvolvimento nos países exportadores, isso só pode ter lugar em troca de um alargamento e de um aprofundamento maiores do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo”.[vi] E insistia em outro texto: “Umas das propriedades mais essenciais do imperialismo consiste, precisamente, em que acelera o desenvolvimento do capitalismo nos países mais atrasados …”[vii].

As estatísticas do FMI do último meio século mostram exatamente isso.[viii] Há várias décadas as taxas de crescimento anual do PIB dos chamados países em desenvolvimento se dão em ritmos muito maiores do que as dos países ricos, grupo que abriga os países imperialistas. O resultado disto é que, para esse ano de 2024, a expectativa do FMI é de que a soma dos PIB/PPP das Economias dos Mercados Emergentes e em Desenvolvimento alcançará 109,34 trilhões de dólares, aproximadamente 60% do PIB mundial/PPP enquanto a soma das Economias Avançadas atingirá 74,61 trilhões de dólares, aproximadamente 40% do PIB mundial/PPP, segundo a terminologia do FMI. Em parte, isso é explicado pelo aparecimento da nova onda da globalização e da correspondente orientação neoliberal, a partir dos anos 1980, quando a exportação de capitais se intensificou muito já que uma de suas orientações centrais é a quebra de barreiras e fronteiras para que o capital pudesse circular o mais livremente possível.

Se a esse fenômeno econômico se acrescenta a postura soberana e a orientação desenvolvimentista de vários governos deste tipo de países então se cria um quadro novo. Aí estão Irã, Índia, Brasil e vários outros países que vão se constituindo em potências médias, regionais, base do surgimento e desenvolvimento da articulação BRICS.

A resultante geral desses três níveis de contradições geradas pelos ritmos diferentes de desenvolvimento é o isolamento do Ocidente Coletivo, particularmente dos EUA, seu núcleo imperialista, atolado no rentismo parasitário, elevado às alturas nos tempos de globalização neoliberal, e o consequente crescimento de sua agressividade. Em contrapartida temos o advento do mundo multipolar.

A retrospectiva pontual dessa nova era pode, resumidamente, ser assim descrita. Após o término da II Guerra Mundial, durante a Guerra Fria, entre 1947 e 1991, os EUA e a URSS conformaram a bipolaridade. O dólar passa a ser a moeda de troca e de reserva de todo o Ocidente a partir dos acordos de Bretton Woods que estabeleceram as regras de funcionamento do sistema financeiro ocidental em 1944. Nesse período, com correlação de forças da bipolaridade, foi que se deu a revolução chinesa em 1949, foi quando apareceram a Coreia Popular, o Vietnã, Cuba e que se deram grandes passos na superação do colonialismo na África. Foi ainda quando vários países conseguiram forjar seus parques industriais.

Com a debacle soviética em 1991, a situação sofre profunda viragem. Sobreveio o mundo unipolar sob a hegemonia dos EUA. Foi um tempo em que os EUA traçaram como linha central de sua política externa a guerra total ao terror, particularmente após o ataque às torres gêmeas em 2001. Tempo de invasão do Iraque e da Líbia, de destruição da Iugoslávia. Período de pujança do neoliberalismo, de expansão capitalista sobre a Europa do Leste e de reunificação de um só o mercado mundial. As forças avançadas, comunistas entre elas, algumas resistiram nas novas condições de difícil defensiva estratégica, outras capitularam vergonhosamente diante das pressões e retrocessos civilizacionais. O socialismo, porém, continuou a viver na China, em Cuba, no Vietnã, na Coreia e noutros países como o Brasil, através do PCdoB.[ix]

Entretanto a lei do desenvolvimento desigual continuou a fazer seus efeitos e já por volta de 2007/2008 com a grande crise sistêmica do capitalismo com epicentro nos EUA, mas que também atinge profundamente a Europa, com o já grande ascenso da China, e com o avanço da reconstrução russa que se iniciara em 2001, abre-se um período de transição[x] da unipolaridade para a multipolaridade. [xi]

Em torno de 2015 esse quadro continua a se modificar rapidamente com dois eventos que expressavam a ascensão da força russa, quase simultâneos: 1) o envolvimento militar da Rússia no conflito sírio impedindo a derrota do governo de Bashar al Assad e 2) a adesão da Crimeia à Federação russa após o golpe de Estado pró-ocidental na Ucrânia e a respectiva intervenção da Rússia. Ao lado desses eventos, a vertiginosa e continuada ascensão econômica, científica e tecnológica da China socialista colocava-a com destaque como potência mundial de primeira grandeza.

Na contraparte, sentindo a hegemonia esvair-se os EUA deram consequência prática à sua nova estratégia externa de contenção das grandes ameaças, ou seja, da China e da Rússia, pelos meios que fossem necessários. Já por volta de 2018 os EUA desencadearam uma verdadeira guerra comercial com a China que depois se ampliou para o campo da ciência e tecnologia. Assim como continuaram firmes na política de expansão da OTAN, em sucessivas ondas, em direção à Rússia. E, não menos importante, retiraram-se do acordo nuclear com o Irã, o que marca de uma nova etapa das tensões no Oriente Médio.[xii] Situação esta que evoluiu para um novo quadro no Oriente Médio onde o Irã se destaca e retoma relações com a Arábia Saudita.

De forma que, por volta de 2020/2021, o quadro geopolítico no mundo já era outro. A transição de um mundo unipolar hegemonizado pelo imperialismo dos EUA para um mundo multipolar já havia se cumprido. O centro de gravidade da história do mundo moderno deixava de ser exclusivamente o Ocidente para inserir em pé de igualdade, parte da Eurásia, em ascensão. A China socialista e a Federação Russa passaram a ser também protagonistas de praticamente tudo o que acontece no mundo. Consolida-se e amplia-se o BRICS, um forte polo de atração de outros países, cujo PIB já supera o do G-7.

China e Rússia procuram moldar, através da Declaração Conjunta de 04 de fevereiro de 2022, as principais características da multipolaridade, já posta como fenômeno objetivo de um futuro compartilhado para a Humanidade, segundo os chineses. O proletariado mundial alcança assim uma vitória estratégica reunindo melhores condições para lutar pelos seus interesses.

Algumas palavras sobre a Rússia e sobre Putin são necessárias porque existem muitas restrições a eles, em parte da esquerda europeia e de outros lugares que se tremem diante da enorme onda russofóbica desencadeada pelo Ocidente em uníssono. A Rússia é um país capitalista que adota na cena internacional uma postura contra hegemônica de oposição frontal aos EUA e de aliada fundamental do país socialista mais desenvolvido e mais forte. Tem também relações estreitas com a Coreia do Norte. Mantem uma estrutura econômica onde os setores principais da economia estão nas mãos do Estado, depois de vários choques com a oligarquia russa, o que possibilita ousadia construtiva, pois o país tem os maiores recursos naturais do mundo. Entre esses projetos destaca-se a reconstrução de seu poderosíssimo complexo industrial-militar.  Putin desfruta de um grande prestígio interno e desperta crescente interesse externo, como se pode ver pelas repercussões da entrevista recente a Tucker Carlson. Tem boas relações com o Partido Comunista da Federação Russa que lhe empresta apoio no front externo. Além disso, faz referências muito elogiosas e preserva símbolos da época da URSS, critica severamente a destruição gorbachoviana, comemora respeitosamente o grande feito da vitória da guerra patriótica sobre os nazistas. Empenha-se em livrar a Ucrânia de sua versão moderna. Por tudo isso, Putin é odiado e demonizado pela elite do Ocidente que tudo faz para isolá-lo e derrubá-lo. Ao falar da Rússia não se deveria menosprezá-la, mas levar em conta esses fatos e argumentos.

Para onde quer se olhe aparecem sinais do declínio dos EUA, da ascensão chinesa e russa, bem como de uma série de outros países de porte médio, cujo todo compõe um sistema multipolar. No terreno econômico o PIB chinês, pela Paridade do Poder de Compra, segundo o FMI se igualou ao dos EUA em 2016 e, a partir de então, começou a se distanciar esperando-se que ao final de 2024 chegue a US$ 35,04 trilhões contra US$ 27,97 trilhões. A Rússia mesmo sofrendo milhares e milhares de sanções por parte do Ocidente, voltou a crescer. Seu PIB/PPP para 2024 deverá atingir US$ 5,23 trilhões, o segundo de toda a Europa. O déficit dos EUA na Conta Corrente do Balanço de Pagamentos chegou em 2023 a US$ 795,15 bilhões, já a China teve um superávit de US$ 271,439 bilhões, de acordo com o FMI. Segundo o Tesouro dos EUA o total da dívida nacional do país atualizada atinge US$ 34,23 trilhões.[xiii] A seu favor os EUA contam com a recuperação de sua condição como grande produtor de petróleo e gás.

A China está muito à frente dos EUA em termos de tecnologia e inovação. O Relatório do think tank australiano, Australian Strategic Policy Institute-ASPI, publicado pelo Wall Street Journal em 2023, põe os pesquisadores chineses à frente dos americanos em 37 de 44 tecnologias examinadas nos setores de defesa, espacial, robótica, energia, meio-ambiente, biotecnologia, inteligência artificial, materiais avançados e tecnologia quântica. Daí ter concluído que “a China estabeleceu uma liderança impressionante em pesquisa de alto impacto, sob programas governamentais”.

Além desse declínio relativo em vários terrenos há também elementos muito sérios de decadência absoluta como o triste número de mais de cem mil mortes de jovens por ano ocasionadas por overdose de Fentanyl. O mesmo se poderia dizer da polarização política fratricida que está a desgastar e consumir a elite dirigente dos EUA, fracionando o país.

Mas a principal argumentação dos acadêmicos que não aceitam o advento da multipolaridade é de que a força militar dos EUA é muito superior à dos seus principais oponentes. Aqui a desinformação, a partir do cerco feito pela mídia Ocidental, se faz sentir forte. Utiliza-se como argumento básico o alto número de bases militares no exterior, cerca de 750 dos mais variados tamanhos e especificações, as sete frotas navais estadunidenses a zanzar pelos mares do planeta, prontas para intervir em qualquer situação onde julguem estar em perigo a “segurança dos Estados Unidos” e ainda, o fato do orçamento militar dos EUA ser muito maior do que a soma dos orçamentos militares de todos os outros países. Acontece que esse enorme orçamento, que pesquisas sérias dizem ser na realidade pelo menos o dobro que o divulgado oficialmente, se transforma em um fardo extremamente pesado que tem que ser sucessivamente financiado, o que só se consegue às custas do brutal endividamento público.

Os EUA têm mais porta-aviões, mas no ranking das maiores marinhas de guerra do mundo eles aparecem em quarto lugar, antecedidos pela China, pela Rússia e pela Coreia do Norte. O número de ogivas nucleares dos EUA e da Rússia se equivalem com vantagem para os russos. Até pouco tempo o exército dos EUA era considerado o mais forte do mundo. Entretanto, após o conflito ucraniano, o exército russo passou a ser considerado o mais poderoso e numeroso pelo grande número de combatentes que a ele se incorporou recentemente.[xiv] A Rússia tem demonstrado uma capacidade de produzir armamento, bem maior que o Ocidente que parece ter dificuldades para repor armas para a Ucrânia. Sergey Shoigu, ministro da Defesa russo assim avaliou a presente situação, “hoje, o exército russo é o mais treinado e capaz de combater no mundo, com armamentos avançados que foram testados em condições de combate”[xv].

O site Global Firepower produz um levantamento anual chamado Global Military Ranking System que com base na análise de mais de 60 diferentes fatores disponíveis, com variados aspectos do poder militar de uma nação, gerando uma pontuação numérica, chamada PowerIndex, capaz de compará-la à de outra nação. Os resultados de 2023 colocam praticamente no mesmo patamar EUA (0,0712), Rússia (0,0714) e China (0,0722), por essa ordem porque considera-se que o número menor representa mais poderio.

Levando em conta as opiniões expostas e ainda outras o que parece haver é um certo equilíbrio de forças em muitos aspectos tradicionais. No entanto, tudo leva a crer que o grande diferencial da capacidade combativa moderna está nos extremamente avançados mísseis hipersônicos, com velocidades de até 27 Mach, ou seja 27 vezes a velocidade do som ou 32.200 km/h, manipuláveis, de longo alcance, que podem ser lançados pelo ar, por terra ou por mar, desenvolvidos pela Rússia, anunciados por Putin há alguns anos, que tornam porta-aviões e bases militares vulneráveis e que vem se mostrando extremamente eficazes quando usados ofensiva ou defensivamente, pois, ainda não se desenvolveram armas capazes de interceptá-los. Junto a eles os sistemas de localização via satélite, os diversos tipos de sensores ultrassofisticados, os mecanismos de guerra eletrônica capazes de interferir na trajetória e desviar a rota de objetos voadores não tripulados dos mais variados tipos … e tropas, em abundância e altamente preparadas do ponto de vista tecnológico, marcam os combates atuais.

Poucos dias após a divulgação da Declaração Conjunta, a Rússia desencadeou uma operação militar na Ucrânia afim de barrar a guerra que o regime ucraniano levava a cabo contra a população do Donbass, visando proteger seus habitantes, desnazificar o país e impedi-lo de aderir a OTAN, pretensões e acontecimentos práticos que aconteciam com a supervisão e total apoio do Ocidente coletivo.

Começado o conflito os EUA, os países da União Europeia e alguns outros lá já enterraram cerca de US$250 bilhões, em ajuda militar e financeira, patrocinaram uma fracassada contraofensiva com a pretensão de derrotar a Rússia no campo de batalha. Além disso, estabeleceram cerca de 15 mil sanções contra a Rússia visando sufocá-la econômica e financeiramente para com isso criar um clima de descontentamento interno contra o governo. Não conseguiram nada, além de levar à morte e à mutilação centenas de milhares de ucranianos. Poderão prolongar o conflito negando a possibilidade que qualquer acordo de paz, como têm feito, mas já estão inexoravelmente derrotados. Esse fato é a comprovação de que os EUA não mais podem decidir o destino de outras nações a seu bel prazer, reflexo da realidade multipolar. Tal qual acontece na Síria.

De outra parte, estalou mais uma onda de conflitos no Oriente Médio. Embora infligindo sofrimentos inauditos ao povo palestino, massacrando em especial crianças e mulheres, o sionista e terrorista Estado de Israel, preposto do imperialismo estadunidense, enfrenta, dessa vez, uma resistência muito maior, que se espalha por diversas frentes, em um conflito que tende a se prolongar e a ser decidido em prazo médio. Uma nova situação do mundo, como têm dito representantes de forças políticas da resistência, formam um ambiente propício para a resistência se desenvolver e conquistar a vitória. O mesmo raciocínio pode ser feito em relação à nova onda de descolonização surgida na África através de levantes militar-populares.

Parte importante dessa nova configuração mundial é a construção de uma nova arquitetura financeira alternativa ao dólar e colocada como necessidade a partir do uso e abuso do expediente de pressão imperialista das sanções econômicas. Mas, como é sabido a força de qualquer moeda depende da saúde da economia do país que a emite. Acontece que a China tem hoje a maior produção e comércio de mercadorias do mundo. Assim, também outros países não têm mais os EUA como entreposto comercial. Os fluxos de comércio entre os países do Sul global e deles com a Europa, momentaneamente abalados, são crescentes e volumosos.  Em uma situação de equilíbrio estratégico de poder militar os EUA não têm mais como impor a ditadura do dólar a qualquer preço. Daí, particularmente no âmbito dos BRICS, se passa a adotar novas formas de pagamentos e de compensações financeiras seja para mercadorias, seja para investimentos ou empréstimos. Um processo ainda inicial, mas que avança, inclusive com a compra de ouro e o abandono gradual das reservas em dólares pelos países do Sul Global.[xvi]

A construção revolucionária do mundo multipolar emergente segue tomando forma. Para os comunistas consequentes ela é a maneira pela qual se expressa hoje a luta pela superação do capitalismo imperialista, ou a luta pelo socialismo. Toda a razão teve Xi Jinping, líder do Partido Comunista da China e presidente da China Socialista, ao se despedir calorosamente de Vladmir Putin em Moscou, quando de sua última viagem, em 2023 ao dizer: “Neste momento há mudanças como não víamos há 100 anos – e somos nós que juntos conduzimos essas mudanças”.

*Dilermando Toni é jornalista, foi editor do jornal A Classe Operária, integrou do CC do PCdoB e é atualmente membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz

Bibliografia e notas

[i] Celso Amorim, Declaração conjunta de Putin e Xi projeta uma liderança mundial alternativa, Carta Capital, 11/02/2022.

[ii] Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais na Nova Era e o Desenvolvimento Sustentável, 04 fevereiro de 2022.

[iii] VI Lênin, A Consigna dos Estados Unidos da Europa, 1915.

[iv] JV Stálin cita Lênin no artigo Resumo da Discussão em torno do Informe sobre o Desvio Social-Democrata no nosso Partido, cap. 3 A Propósito do Desenvolvimento Desigual dos Países Capitalistas, 1926.

[v] JV Stálin, Problemas Econômicos do Socialismo na URSS, 1953, capítulo 6, A inevitabilidade da guerra entre os países capitalistas.

[vi] VI Lênin, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, 1916, Cap IV A Exportação de Capital, OE I.

[vii] VI Lênin, O Programa Militar da Revolução Proletária, 1916, OC tomo 30.

[viii] Ver no site imf.org o DataMapper, World Economic Outlook, tanto o Purchasing Power Parity, Trend 1980-2028, como o Real GDP Growth, Trend 1980-2028, ou ainda o GDP based on PPP, share of world.

[ix] A esse respeito ver o Informe de João Amazonas ao 8º Congresso do PCdoB em 1992 que se reuniu sob o lema “O Socialismo Vive”.

[x] Dilermando Toni, Um Mundo em Transição: Lento Declínio dos EUA e Rápida Ascensão da China, 2007. Texto apresentado no seminário Capitalismo Contemporâneo e a Nova Luta pelo Socialismo.

[xi] O Manual de Economia Política do Instituto de Economia da Academia de Ciências da então URSS, no  capítulo O Lugar Histórico do Imperialismo, descreve essas mutações na passagem do séc. XIX ao XX da seguinte forma: “Em 1860, a Inglaterra ocupava o primeiro lugar na produção industrial do mundo, seguida pela França, pela Alemanha e pelos EUA que acabavam de aparecer na cena mundial. Dez anos depois, o país do jovem capitalismo – os EUA – se adiantou em rápido desenvolvimento à França e passou a ocupar o seu posto. Ao fim de outros dez anos, os EUA haviam suplantado a Inglaterra e se afirmavam fortemente no primeiro lugar na produção industrial do mundo, enquanto a Alemanha ultrapassava a França e passava a ocupar o terceiro lugar, depois dos EUA e da Inglaterra. Ao começar o séc. XX, a Alemanha havia deixado para trás a Inglaterra, colocando-se em segundo lugar, depois dos EUA. Como resultado das mudanças operadas na correlação de forças entre os países capitalistas se produziu a divisão do mundo capitalista em dois campos imperialistas hostis e iniciam-se as guerras mundiais.

[xii] Os fatos deste processo turbulento estão descritos de maneira interessante no livro de Helen Thompson, Disorder Hard Times in the 21st Century, part I Geopolitics, 2022.

[xiii] Ver a FiscalData no site do Tesouro do Governo dos EUA.

[xiv] Essa foi a conclusão a que chegou a publicação recente da revista americana US News and World Report em levantamento que considerou 73 atributos.

[xv] Sergey Shoigu em reunião ampliada do conselho do Ministério da Defesa da Rússia, 19/12/2023.

[xvi] A trajetória forçada do dólar como moeda dominante no mundo é descrita de forma bem-humorada e rica em detalhes por Michael Hudson no seu The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism, cap. 10 Dollar Hegemony; The Privilege of Creating ‘Paper Gold’, 2022. Atenção especial merece a explicação de como os EUA, mesmo deixando a condição de nação credora para se tornar a maior devedora do planeta, conseguiu manter e ampliar, a dominância do dólar.

 
Os artigos e ensaios publicados na editoria TODO MUNDO (Opiniões e Debates) não refletem necessariamente a opinião do PCdoB sobre o tema abordado.

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