A centralidade das relações entre Brasil e China
Ainda que o estabelecimento das relações entre Brasil e China remonte ao século XIX, quando foi concluído um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre os países, em 1881, e aberto o consulado brasileiro em Xangai, em 1883, o maior estreitamento dos laços apenas ocorreu de fato no último quarto do século XX.
Por Diego Pautasso*
Afinal, após a revolução de 1949 as relações entre a nascente República Popular da China e o Brasil foram rompidas, no contexto da Guerra Fria. Logo, a diplomacia brasileira priorizou os contatos com Taiwan, estabelecendo embaixada em Taipei, em 1952, e os dirigentes chineses ensejaram maiores esforços nas relações com os partidos comunistas e agrupamentos a eles alinhados ideologicamente, em detrimento da centralidade das relações com os próprios Estados nacionais.
Somente em 1974, durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), foram restabelecidas as relações com a China. Do lado brasileiro, a política externa universalista, de extrema perspicácia na defesa dos interesses nacionais, conduzida por Azeredo da Silveira e carregando a alcunha do “Pragmatismo Ecumênico e Responsável”, não apenas reatou com Pequim, como também reconheceu o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e se aproximou comercialmente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e dos países do Leste Europeu.
Do lado chinês, a política de Reformas e Abertura visava superar o isolamento tomando por manobra tática a aproximação com os Estados Unidos da América, a partir da chamada “Diplomacia Ping-Pong”. Nesse panorama, o autodeclarado anticomunista Geisel restabeleceu relações com a China em favor de agendas comuns, como as defesas da ampliação do mar territorial para 200 milhas, da não-interferência em assuntos internos das nações, da cooperação entre países terceiro-mundistas e da oposição ao protecionismo das economias mais desenvolvidas.
A aproximação foi ganhando densidade, com acontecimentos como as visitas dos presidentes João Baptista de Oliveira Figueiredo e José Sarney à China, em 1984 e 1988, respectivamente. Além do mais, a década de 1990 foi marcada por maior sinergia econômica entre as duas nações, frente a um panorama de abertura da economia brasileira e de aceleramento do processo de desenvolvimento chinês. Nesse contexto, o primeiro-ministro Zhu Rongji cunhou a expressão “parceria estratégica” para definir a relação da China com o Brasil, em 1993, a primeira parceria internacional chinesa com essa alcunha.
Após a China adentrar a Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2002, os vínculos econômico-comerciais com o Brasil foram potencializados, e em 2009 os chineses se tornaram os principais parceiros comerciais brasileiros. Longe de constituir uma questão trivial, esse dado diz muito sobre o Brasil e as próprias transformações correntes no conjunto da ordem global, afinal rompeu com um contínuo predomínio estadunidense na condição de principal parceiro comercial brasileiro, que perdurava desde 1929. E, evidentemente, deve servir de referência para iluminar as decisões do Brasil não apenas sobre o relacionamento bilateral, mas também sobre oportunidades e desafios globais no século XXI.
Dito isto, analisemos os dados da dimensão comercial bilateral: em 1974, ano do reatamento das relações, o fluxo comercial sino-brasileiro partiu de 19,4 milhões de dólares para 1,2 bilhão, duas décadas depois, em 1994, chegando a 36,1 bilhões em 2009, e em US$ 63,357 bilhões, em 2019.
No contexto da pandemia do coronavírus, entre os meses de janeiro e junho de 2020, a China foi destino final de 33,8% de todas as exportações brasileiras (ante 28,5% no mesmo período de 2019), totalizando US$ 34,3 bilhões – enquanto as importações corresponderam a 12%, somando US$ 16,6 bilhões, resultando num superávit de US$ 17,6 bilhões. A título de comparação, os EUA, segundo principal destino das exportações brasileiras no período, absorveram apenas 8,5% das exportações brasileiras.
No âmbito da cooperação científico-tecnológica, em 1988 foi assinado o acordo de cooperação científico-tecnológica para implementação do Programa de Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (China-Brazil Earth Resources Satellite – CBERS) – que desde então já procedeu o lançamento de seis satélites (1999, 2003, 2007, 2013 e 2019). Outra cooperação sinérgica tem sido as intermediações entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a Academia Chinesa de Ciência da Agricultura (Chinese Academy of Agriculture Science – CAAS).
No âmbito diplomático, destacam-se a criação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) e do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), em 2004, a assinatura dos Planos de Ação Conjunta (PAC) para os períodos de 2010-2014 e 2015-2021, a elevação da Parceria Estratégica, ensejada em 1993, para Parceria Estratégica Global, em 2012, e a instituição do Plano Decenal de Cooperação (2012-2021). Ademais, ao longo da primeira década do século XXI, o Brasil fomentou atuação conjunta com a China no processo de revisão das quotas-parte do Fundo Monetário Internacional (FMI), na institucionalização do G20 comercial e do G20 financeiro, no estabelecimento do BASIC e na criação do BRIC (posteriormente BRICS). Aliás, esse último tendo como seus principais desdobramentos a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR), formalizados na Cúpula de Fortaleza, em 2014.
Os investimentos externos diretos (IED) chineses no Brasil também tem se intensificado, principalmente desde 2010. Atualmente, o estoque de IED chinês no Brasil gira em torno de US$ 80 bilhões, claramente orientados para atividades produtivas e com tendência a assumir cada vez maior convergência nas demandas brasileiras de robustecimento da infraestrutura do país.
Um dado e uma reflexão: na lista das 500 maiores da Fortune (2019), há 119 empresas chinesas, e das suas 25 maiores, nada menos do que 24 são estatal/públicas, evidenciando o entrelaçamento de interesses diplomáticos e corporativos no país asiático. Portanto, cabe observar que se por um lado a China não tem empregado a força para lograr seus interesses, tampouco cabe a ela forjar os interesses nacionais do Brasil na relação bilateral. Ou seja, compete ao Brasil conduzir o interesse chinês de inserir o conjunto da América Latina nos projetos da Nova Rota da Seda (ou Belt and Road Initiative – BRI) em prol de seus objetivos na região. Trata-se, pois, de uma oportunidade para o Brasil impulsionar iniciativas de integração regional e superar gargalos no setor de infraestrutura, que há mais de 40 anos tem menos de 2% do PIB em investimentos, e agora se vê ainda mais fragilizado pelo desmonte de parte das grandes empreiteiras nacionais por ‘obra’ da Operação Lava-Jato.
O relacionamento sino-brasileiro segue se incrementando, apesar de o Brasil ter adentrado um ciclo de contínua instabilidade político-institucional desde as manifestações de junho de 2013, passando pela derrubada de Dilma, o interregno da gestão de Michel Temer e a ascensão de Jair Bolsonaro. Desde então, flagrantes incertezas quanto aos rumos da atuação internacional do Brasil têm se erigido, sobretudo diante errática condução da diplomacia brasileira pelo chanceler Ernesto Araújo, responsável por romper com padrões históricos de conduta do Ministério das Relações Exteriores.
Vale recordar que, ao longo de sua gestão à frente do Itamaraty, o Barão de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, se deparou com uma conjuntura na qual gradualmente os EUA vinham ocupando a centralidade que outrora a Grã-Bretanha tivera para o Brasil. Conservador confesso, e filho do monarquista Visconde do Rio Branco, o Barão não estabeleceu a chamada aliança não-escrita com os estadunidenses por admirar suas ideologias ou sistema de governo, mas por ter consciência da relevância das relações com aquele país para garantir a estabilidade e desenvolvimento ao Brasil naquele momento histórico. Da mesma forma, Getúlio Vargas não se furtou de, em meio à Segunda Guerra Mundial, estabelecer a equidistância pragmática entre a Alemanha nazista e os EUA para garantir as melhores condições ao reequipamento das Forças Armadas e a instalação de uma planta siderúrgica avançada no Brasil, que veio a ser a de Volta Redonda.
Em contraste, a atual gestão diplomática brasileira sequer preserva de equívocos o relacionamento com o seu principal parceiro comercial, a China. Ao longo de sua campanha eleitoral, Bolsonaro fez inúmeras referências à China como país que estaria “comprando o Brasil”. Aliás, visitou Taiwan em 2016, quando era deputado federal, violando o princípio de uma só China. O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a afirmar que a China havia escondido informações sobre o coronavírus do resto do mundo para lucrar com a venda de equipamentos médicos, e o chanceler Ernesto Araújo nomeou o coronavírus de “comunavírus”. Também nesse sentido, militantes de extrema-direita têm realizado atos políticos nos quais denunciam suposta intervenção da China em assuntos internos do país, ainda que não existam quaisquer evidências disso. Além do mais, a política externa de Araújo opta por um alinhamento subserviente à Washington sem qualquer contrapartida palpável, enquanto se retira de importantes iniciativas de integração e diálogo regionais, como a UNASUL e a CELAC, e acumula conflitos desnecessários com importantes parceiros comerciais e estratégicos, como os países árabes, europeus e sul-americanos.
Apesar dos desvios de conduta da diplomacia brasileira, a complexidade e relevância da relação bilateral com a China dificulta alterações bruscas em sua condução. Afinal importantes ministros, grupos de pressão (agronegócio, industriais, etc.) e formadores de opinião (intelectuais, segmentos da mídia, organizações sociais) sabem da importância da China para o Brasil e para a nova ordem global em conformação. Por essa razão, apesar dos atritos, o governo tratou de apaziguar a relação com a China, como demonstraram, por exemplo, as gestões do vice-presidente Hamilton Mourão junto da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN), quando chegou a dizer que não se oporia à parceria com a Huawei para implementação do 5G no Brasil. Ademais, a China conduz sua diplomacia com pragmatismo, não permitindo que questões passageiras e setoriais interfiram naquilo que é crucial para o relacionamento bilateral de uma parceria estratégica.
A partir dos dados e balanço histórico das relações entre China e Brasil, cabe tecer algumas considerações sobre oportunidades e desafios. Primeiro, a pauta das exportações brasileiras para a China é de fato composta majoritariamente por produtos primários, dado que em 2018 cerca de 82% foi constituída por soja (42,5%), petróleo (22,3%) e minério de ferro (17%). Deve-se considerar, porém, que: 1) o setor primário brasileiro tem considerável efeito encadeador na indústria e na inovação e 2) a primarização das exportações e os processos de desindustrialização ou perda de competitividade nacional têm raízes mais profundas, e se configura desde meados da década de 1980 (de lá para cá, a participação da indústria no PIB caiu de 27% para cerca de 10%). Segundo, em 2019 a China representou 80% do nosso superávit, e ao longo de uma década como principal parceira comercial do país proporcionou, entre 2009 e 2018, um saldo de 109,5 bilhões de dólares. Sem estes saldos, a balança comercial e a própria importação de manufaturados sofreriam com forte estrangulamento.
A questão de fundo é, portanto, outra. Diz respeito à interrogante de como poderemos forjar uma inserção internacional capaz de promover a soberania e o desenvolvimento nacionais através de políticas de Estado, e não apenas transitórias, de governo. Em outras palavras, os ganhos nas relações com a China, que já são consideráveis, tendem a ser potencializados a depender da estratégia nacional de desenvolvimento adotada. Ou seja, com uma política de ICT (industrial, comercial e tecnológica) coerente, podemos catapultar a cooperação científico-tecnológica, a atração de investimentos produtivos e a implementação de obras de infraestrutura, bem como conectá-las às articulações políticas de âmbito multilateral. Na atual conjuntura, é perspicaz extrair o melhor da competição entre EUA e China, seja nas disputas pelo 5G ou no processo de espraiamento da Nova Rota da Seda, tal como fizeram Rio Branco e Getúlio outrora, optando pelo alinhamento ou pela equidistância a depender de nossos ganhos objetivos, e não de questões ideológicas.
O momento, contudo, é de confusão, pois parte das elites dirigentes do Brasil segue com a cabeça em Miami, ainda que o bolso dependa cada vez mais de Xangai, turvando a condução da inserção internacional brasileira e obstruindo os avanços necessários para a concretização dos interesses nacionais de longo alcance.
* Doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor de Geografia do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e professor convidado da Especialização em Relações Internacionais – Geopolítica e Defesa, da UFRGS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria.
Fonte: Portal Bonifácio