A China e o meio ambiente: preconceitos e fatos
População chinesa está longe de assimilar o padrão de consumo e poluição reinante nas sociedades norte-atlânticas.
Por Diego Pautasso*
Contemporaneamente, o debate sobre as questões ambientais, acordos multilaterais e políticas públicas nacionais é marcado por uma série de incongruências, fruto da desinformação e ativismo voluntarista de grupos engajados nessas causas supostamente universais. No mais das vezes incorrem, conscientemente ou não, no viés da confirmação, ou seja, na busca seletiva de informações para corroborar premissas previamente selecionadas. As confusões são muitas, passando por incompreensões acerca da relação entre desenvolvimento e sustentabilidade e, sobretudo, dos interesses geopolíticos e geoeconômicos que atravessam a agenda ambiental.
Particularmente, os modelos de desenvolvimento adotados por países periféricos são alvos preferenciais da escalada de críticas e imposições derivadas de parte dessas assertivas. Com a China não é diferente, sobretudo diante do sucesso de seu desenvolvimento. Seu PIB em poder de paridade de compra era de US$ 304,3 bilhões em 1980, e chegou a nada menos do que US$ 27,3 trilhões em 2019, enquanto seu PIB per capita (PPP) saiu de US$ 310 para US$ 19,5 mil, no mesmo período. Detalhe: nas últimas décadas a China urbanizou cerca de 652 milhões de pessoas, e desde as reformas iniciadas na década de 1970 mais de 750 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza no país. Há, pois, um incremento de renda e da urbanização que produz um irrefreável aumento na demanda por bens e serviços, ampliando, por consequência, a necessidade de recursos naturais e energéticos.
Como resultado, o consumo de energia na China passou de 881 toneladas de petróleo equivalente (mtoe), em 1990, para cerca de 2.449 milhões mtoe, em 2017, um crescimento de quase 178%. Da mesma forma, o consumo de energia elétrica saltou de 580 para 6.302 TWh no mesmo período, um incremento de quase 1.000%. A China se tornou o maior importador mundial de petróleo em 2017, superando os EUA, com uma demanda que cresceu, de 2,8 milhões de barris por dia (mb/d), em 1990, para 14,5 mb/d, em 2019, sendo 69,6% destes fruto de importações.
É sabido que a matriz energética chinesa é assentada em hidrocarbonetos, sobretudo em carvão. Em relatório de 2017 da Eco Experts sobre os níveis globais de poluição do ar, luz e ruído, três cidades chinesas entraram no ranking das dez mais afetadas por esse fenômeno no mundo (Pequim – 3°, Guangzhou – 5° e Xangai – 6°) – que inclui Paris e Los Angeles na nona e décima posição, respectivamente. Apesar disso, a China vem melhorando progressivamente essa situação em função de um conjunto de ações, tais como a arborização das cidades, a modernização das termelétricas a carvão e a ampliação das fontes renováveis, entre outras. Aliás, as fontes renováveis passaram de 5,1% em 1990, para 14,3% da matriz energética nacional, em 2018, enquanto fontes vinculadas ao carvão diminuíram sua participação, passando de 76,6% para 59% no mesmo período.
Aqui cabe uma reflexão. Por um lado, a ênfase em recursos fósseis não difere muito nem da média mundial, tampouco da dos países membros da OCDE, cujos meios tecnológicos e financeiros são superiores para garantir mudanças na matriz energética. Em 2017, 77% da oferta mundial de energia ainda era fóssil – ante 79% em 1990. O restante era composto por biocombustíveis (9,1%) e energias hidráulica (6,5%), nuclear (4,1%), eólica (1,7%) e solar (0,7%). De toda a energia elétrica, em 2018, 73,8% era proveniente de combustíveis fósseis e 26,2% de fontes renováveis (distribuída em 15,8% do setor hidroelétrico, 5.5% do eólico, 2,4% do solar, 2,2% de biocombustíveis e 0,4% do setor geotérmico). Já nos países da OCDE, os hidrocarbonetos representaram 80% do consumo de energia em 2019, estando apenas 12,4% entre fontes renováveis e hidrelétricas.
Ainda que a matriz energética da China esteja concentrada também em recursos fósseis e com aumento acelerado de demanda, as acusações acerca da responsabilidade chinesa pelas mudanças climáticas não fazem sentido. Primeiro, enquanto China emitiu cerca de 7 toneladas de CO2 per capita em 2018, os EUA atingiram o índice de 16,5. Segundo, na condição de “fábrica do mundo”, a utilização massiva de insumos não está desconectada das redes de consumo global, especialmente daquelas vinculadas ao próprio usufruto dos mercados das potências norte-atlânticas. Terceiro, o padrão de consumo de bens e serviços na China e nos países periféricos é apenas uma fração daqueles dos países ricos – estes sim pressionam de maneira demasiada os recursos naturais do Planeta. Para exemplificar, com dados de 2017: embora a China tenha atingido na totalidade um consumo de 6,6 mil TWh de eletricidade e os EUA de 4,3 mil TWh, em termos per capita o índice chinês foi de 4,6 MGh, e o estadunidense de 12,6 – ou seja, quase três vezes maior que o da China.
Além do mais, diferentemente da visão corrente, é na China que se realiza um dos maiores esforços para prover soluções para a questão energético-ambiental. O país asiático tem sido de longe o maior investidor em capacidade instalada de energia renovável ao longo desta década, comprometendo nada menos do que US$ 758 bilhões nesse setor entre 2010 e o primeiro semestre de 2019, de acordo com o relatório Global Trends in Renewable Energy Investment 2019, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Em 2019, a capacidade fotovoltaica solar instalada da China alcançou 204.700 MW (32,6% do total mundial), enquanto a dos EUA atingiu a marca de 75.900 MW (12,1% da produção global). Em 2018, considerando o conjunto das energias renováveis (solar, hidráulica, eólica, geotérmica e de biocombustíveis) a China gerou 1,8 milhões de GWh, enquanto o segundo do ranking mundial, os EUA, geraram 764 mil GWh – uma diferença que cresce ano a ano.
No caso dos automóveis elétricos, a China detinha quase 50% do estoque global até o final de 2018, seguida pelos EUA, com 22%. Os números pertinentes ao estoque de ônibus elétricos são ainda mais assimétricos, já que a China detinha, em 2018, cerca de 421.000 unidades, enquanto os países europeus, o Japão e os EUA detinham pouco mais de 2.100 em uso. Shenzhen, uma grande megalópole chinesa, já substituiu toda sua frota de ônibus e táxis por versões elétricas, por exemplo.
A rápida modernização ensejada desde a implementação da política de Reforma e Abertura foi suscitando a tomada de medidas para lidar com as contradições ambientais. O termo civilização ecológica foi introduzido nas discussões do Partido Comunista Chinês a partir de 2007; o documento intitulado “Pareceres do Comitê Central do Partido Comunista da China e do Conselho de Estado sobre a Promoção do Desenvolvimento da Civilização Ecológica” foi divulgado em 2015; e depois incluído na Constituição do país em 2018. No 12º Plano Quinquenal da China (de 2011 a 2015), as diretrizes se voltaram para os novos ramos industriais como energias renováveis e veículos elétricos, enquanto o 13º Plano Quinquenal (2016-2020) passou a abordar mais amplamente a questão ambiental, dando particular ênfase à eficiência energética. Em poucas palavras, a China está transformando uma possível vulnerabilidade, passível de ser explorada por seus antagonistas no sistema internacional, num importante avanço na fronteira tecnológica, instrumentalizado em prol dos objetivos mais amplos do seu projeto de desenvolvimento nacional.
Voltemos a algumas considerações mais gerais de modo a superar certas ilusões. Ou seja, as contradições, privações e conflitos não são anomalias, mas condições necessárias às transformações ligadas às experiências de desenvolvimento em geral, que de forma alguma se assemelham à utópica imagem de um paraíso de estabilidade, bem-estar e paz. Por óbvio, o sucesso do desenvolvimento chinês está repleto de desequilíbrios e problemas, cujas superações apenas serão encontradas na própria rota de aprofundamento do desenvolvimento. Assim, a solução não passa pela adesão às teses reacionárias de malthusianos estagnacionistas – como as do crescimento zero ou do decrescimento – ou às agendas militantes de organizações não-governamentais financiadas diretamente pelos instrumentos de política externa das potências norte-atlânticas. As respostas para tais dilemas estão, portanto, diretamente ligadas à capacidade de combinação de novos paradigmas tecnológicos com novos padrões civilizacionais, superiores àqueles erigidos pelas anteriores revoluções industriais.
Como resta evidente na trajetória chinesa, o desenvolvimento econômico-social e a preservação ambiental não são variáveis excludentes; na verdade o aperfeiçoamento do primeiro é uma pré-condição para a execução do segundo. No país asiático, essas transformações entrelaçam o aumento da renda relativa e absoluta, a alteração da estrutura ocupacional da população, o expressivo processo de urbanização, a transição demográfica e a maior integração à economia mundial, combinados com o aumento das demandas por alimentos, saneamento, energia, coleta de lixo, bens e serviços. Isto é, um inexorável enlace entre desenvolvimento, demanda por recursos naturais-energéticos e questões ambientais, num país cujas condições territoriais e demográficas são especialmente complexas.
Podemos, portanto, tecer algumas conclusões: 1. A população chinesa está longe de assimilar o padrão de consumo e poluição reinante nas sociedades norte-atlânticas; 2. O desenvolvimento é, dialeticamente, causa e solução de determinados problemas ambientais, ou seja, uma pré-condição para suas superações; 3. A mudança da matriz energética é tarefa intergeracional e complexa, que ultrapassa os limites do voluntarismo estagnacionista que impera nas agendas dos setores adeptos às teses ambientalistas; 4. Mesmo com o crescimento de novas matrizes energéticas, o petróleo continuará a ter enorme relevância mundial, já que é uma matéria-prima de extrema polivalência. Em suma, é preciso superar certas narrativas que nada têm de altruístas, afinal se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária.
* Geógrafo, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor de Geografia do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e professor convidado da UFRGS
Fonte: Site Bonifácio