A Coreia Popular e a questão securitária na Península coreana
A Península Coreana é, certamente, uma das regiões mais relevantes em termos securitários para as relações internacionais contemporâneas. Os picos intermitentes de tensão envolvem não apenas as duas Coreias – em um conflito que persiste, após atravessar praticamente toda a Guerra Fria, mas também importantes países fronteiriços (China e Rússia), outra grande potência regional (Japão) e a presença da superpotência global (Estados Unidos).
Por Diego Pautasso ([1]) e Tiago Soares Nogara ([2])
O objetivo deste artigo é de apresentar a lógica pragmática envolvida no imperativo de defesa da Coreia Popular, bem como suas implicações securitárias. Argumentamos que, distintamente das visões apresentadas pelos grandes veículos de comunicação, as movimentações de Pyongyang não são marcadas pela postura irracional, esquizofrênica e/ou beligerante de seus dirigentes, mas sim por cálculos estratégicos milimetricamente voltados à realização de objetivos nacionais de longo prazo, perante uma correlação de forças extremamente adversa.
A herança histórica
Para compreender o imperativo de defesa da Coreia Popular, é crucial recorrer à história da Península. Trata-se de um império milenar cuja sua última dinastia, Choson (1392-1910), caiu sob o jugo do imperialismo japonês, primeiro através de uma série de tratados desiguais, com a abertura de 5 portos em 1876, seguida da violenta ocupação e colonização, a partir de 1910, período no qual até o próprio idioma coreano foi proibido pelo governo títere. Seguiu-se um período de conflitos, divisão da Península e guerra civil (1945-50), culminando na Guerra da Coreia (1950-53), cuja política de extermínio e destruição foi notável. E é partindo destas questões que se entende o contexto e o significado da revolução e da libertação nacional para o regime de Pyongyang.
A reconstrução do Norte e sua inserção internacional ocorreram num quadro de sobreposição de conflitos: no primeiro nível, a permanência do estado legal de guerra com o Sul, onde foi mantida a presença de tropas estadunidenses e artefatos nucleares; no segundo, a polarização e cerco típicos do quadro da Guerra Fria; e, por fim, os desafios de preservação da independência após o cisma sino-soviético iniciado na virada dos 1950-60. Sem esse quadro, aliás, não é possível compreender a aclimatação do marxismo na Coreia sob a forma da Ideia Juche – com sua ênfase na independência e auto suficiência. Mais do que mero elemento ideológico e retórico, a autonomia política e econômica tem constantes do comportamento de Pyongyang frente aos desdobramentos internacionais, resultando, por exemplo, na recusa do país em aderir ao COMECON, aceitando sua implícita divisão internacional do trabalho no campo socialista sob liderança da URSS.
Ao histórico de pilhagem e sobreposição de conflitos, o Norte se viu sob cerco permanente, baseado em sanções e chantagens militares de toda sorte. É sob este prisma que se deve contextualizar o seu imperativo de defesa. Ressalte-se que os países elencados como Eixo do Mal (2002) – primeiramente Irã, Iraque e Coreia do Norte, depois Cuba, Líbia e Síria – foram totalmente ou parcialmente destruídos, ou vivem sob permanentes ameaças. Além das adversidades internacionais, os anos 1990 marcaram a assim chamada Marcha Penosa na Coreia: no contexto adverso de colapso do bloco socialista, ocorreu a morte de Kim Il Sung, em 1994, e o país enfrentou três graves crises climáticas – com as enchentes de 1995 e 1996, além da seca de 1997 -, cujos efeitos foram trágicos para a segurança alimentar (VISENTINI et al., 2015). Estimativas apontam que a fome, gerada pelo conjunto destas variáveis, custou a vida de cerca de 450 mil pessoas, aproximadamente 2% da população (LANKOV, 2013 apud VISENTINI et al., 2015).
Nesse estreito horizonte de possibilidades, Pyongyang adotou a política Songun, em meados da década de 1990, priorizando o fortalecimento das Forças Armadas, como forma de proporcionar a coesão social e a disciplina necessária para a reconstrução do país, em face do colapso de sua inserção internacional – principalmente na esfera comercial – e dos ainda correntes embargos, além de proporcionar defesa e dissuasão contra as crescentes ameaças externas. Somente no século XXI, após superados os momentos mais críticos, o país se retirou do TNP, em 2003, iniciando seus primeiros lançamentos de mísseis em 2006.
Ressalte-se que esta capacidade nuclear, tem permitido mais do que apenas dissuasão e produção de energia, mas também meios para amplificar a barganha da Coreia na arena internacional, garantindo poder de negociação em situação de menor assimetria com a superpotência ainda presente em território sul-coreano. E como a política está mais para a arte do possível do que para a dos desejos, tem sido essa política de desenvolvimento de capacidade nuclear e de mísseis que vem permitindo ao Norte transitar para a política Buying, de diminuição da ênfase no setor militar em favor da modernização econômica, visando a superar vulnerabilidades sociais.
Desafios securitários contemporâneos
Analisando o quadro histórico e geopolítico da Coreia Popular, não é difícil de compreender nem o imperativo de defesa e dissuasão, tampouco as sucessivas tentativas de superação do cerco. Em verdade, nenhum país periférico escolhe viver sob cerco de uma superpotência, pois os custos são altíssimos. Essa circunstância, contudo, impõe vulnerabilidades e restrições às possíveis reações. Tanto é verdade que Pyongyang vem negociando de maneira intermitente possibilidades para normalizar sua inserção internacional. Na virada dos 1980-90, a Nordpolicy proporcionou 34 conversações, seguida pela Sunshine Policy, a partir de 1998, e pelas SixPartTalks, iniciadas em 2003.
A divisão da Península tem implicações securitárias regionais e globais para além dos imperativos securitários de Pyongyang. A China, por exemplo, tem procurado equilibrar múltiplos interesses, incluindo as relações históricas com a Coreia do Norte, as preocupações com a proliferação nuclear, os riscos de uma escalada militar e a consequente desestabilização de seu entorno regional ([3]), a preservação das relações com os Estados Unidos, seu maior parceiro comercial, dentre outros. Em outras palavras, a diplomacia chinesa tem buscado trilhar um caminho espinhoso, envolvendo pressionar o aliado histórico e vizinho – a Coreia do Norte –, e assumir responsabilidades na condição de liderança regional e global, ao mesmo tempo que dissuade os Estados Unidos de recorrer ao uso da força – cujos efeitos seriam catastróficos não apenas para a Península, mas para o conjunto da estabilidade regional e mundial, dado que ocorreria na região mais dinâmica da economia mundial. Metade dos 50 maiores portos do mundo está na Ásia Oriental, segundo dados de 2016 do World Shipping Council.
Os Estados Unidos têm mantido seu histórico de sanções aos norte-coreanos, com destaque para o recrudescimento destas no período do governo democrata de Barack Obama, com recrudescimento das pressões diplomático-militares, incluindo o PACOM (Comando do Pacífico), o sistema antimísseis THAAD (Terminal High Altitude AreaDefense) e a manutenção de cerca de 30 mil soldados no Sul da Península. Ademais, Washington não esconde seus interesses: no National Military Strategy, de 2015, afirma claramente que suas principais ameaças securitárias são ‘países revisionistas’ da ordem mundial, nomeadamente China, Rússia, Irã e Coréia do Norte – não por acaso todos são objeto ou de embargos e sanções ou de contenção indireta via fomento de conflitos no entorno regional. Mas a diplomacia estadunidense foi surpreendida pela forma como Kim Jong-Un tem conduzido conversações com o líder sul-coreano, Moon, e com Moscou e Pequim. Isso fez com que Trump mudasse a postura estadunidense e abrisse negociações, culminando no Acordo de Singapura (2018), com amplas repercussões no contexto regional:
A instalação do Sistema THAAD criou uma situação nova, obrigando a uma reorientação estratégica totalmente diferenciada, da qual a movimentação de Pyongyang não é de todo estranha. Ou seja, um dos principais instrumentos de pressão que Pequim possuía sobre os Estados Unidos, a ameaça norte-coreana, tornou-se, de forma autônoma, incontrolável, após o imprevisto “Encontro de Singapura” entre Trump e Kim Jon-un. Não só resultou em um grave prejuízo estratégico com a instalação do Sistema THAAD na península, como também prejudicou, com isso, as relações Pequim-Seul e tirou da mesa as negociações sob o “Modelo 4+2” para a resolução da questão coreana (China, Estados Unidos, Rússia, Japão e as duas Coreias, que se realizavam em Pequim) sob o qual os chineses exerciam uma grande influência, e desta forma tornava-se um instrumento de pressão sobre Washington. (TEIXEIRA DA SILVA, 2019, p. 29)
No entanto, apesar do recente encontro dos líderes em Panmunjon – marcado pela primeira visita de um presidente estadunidense ao território norte-coreano –, os avanços seguem obstruídos. Hoje, as sanções afetam diversos setores da economia coreana, restringindo enormemente seu comércio exterior. Dentre as proibições, consta a da comercialização de equipamento militar, de exportação de produtos-chave da economia coreana – como o carvão, produtos agrícolas, minerais, têxteis – e de importação dos mais diversos bens, desde o gás natural até certos produtos de luxo. Logicamente, estas sanções impactam o conjunto da população, e contribuem, junto às dificuldades geográficas da produção agrícola nacional, para explicar as periódicas crises alimentares do país.
A divisão da Península e as demonstrações de força de Pyongyang contribuem não apenas para os Estados Unidos manterem o cerco à Coreia Popular, mas, sobretudo, à China e à Rússia. Além disso, para o Japão, estas demonstrações de capacidade militar nuclear do Norte legitimam a retomada de sua capacidade de projeção militar, restringida desde a derrota na Segunda Guerra Mundial. Assim, persiste a perspectiva acerca de a reunificação da Península não constituir interesse imediato de nenhum dos atores envolvidos no conflito: “A China não quer confronto, e o Japão não quer uma concorrência econômica maior. A Coreia do Sul teme a síndrome da unificação alemã e defende a criação de uma confederação. A Coreia do Norte não deseja ser absorvida, e não dá para esquecer que os EUA, se retirarem suas tropas do sul, deixam de ser os ‘donos do Pacífico’” (VISENTINI apud CRESTANI, 2009, p. 3).
Em suma, ficam claros os traços de racionalidade por detrás da divisão da Península e os interesses securitários envolvidos com este fenômeno. Ou seja, a política de defesa da Coreia Popular obedece ao contexto em que está inserida, bem como às estreitas margens de manobra do país num contexto adverso e assimétrico. Tratando-se de política, a execução de juízos morais pouco agrega para a compreensão dos complexos horizontes decisórios, elaborados num constante cálculo baseado nas alterações do panorama das correlações de forças que se desenvolvem de forma desigual e combinada. As vicissitudes do regime de Pyongyang e os vai-e-vem dos dilemas securitários da Península Coreana são exemplo evidente disso, cabendo cautela e sobriedade aos que pretendem desmistificá-los.
Referências:
CRESTANI, Jaqueline. Quem tem medo da Coreia do Norte? Porto Alegre: NERINT, 2009.
LANKOV, Andrei. The real North Korea: lifeandpolitics in thefailedstalinist utopia. Oxford: Oxford University, 2013.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Novas tensões geopolíticas hoje”. Cadernos de Estudos Estratégicos – Escola Superior de Guerra, p. 29-48, março/2019.
VISENTINI, P.G.F.; PEREIRA, A.D. “A discreta transição da Coreia do Norte: diplomacia de risco e modernização sem reforma”. Revista Brasileira de Política Internacional, 57 (2), p. 176-195, 2014.
VISENTINI, P.G.F.; PEREIRA, A.D.; MELCHIONNA, H.H. A revolução coreana: o desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: Editora UNESP, 2015
[1] Pós-Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais na UFRGS. Doutor e mestre em Ciência Política (UFRGS). Professor do Colégio Militar de Porto Alegre. E-mail: dgpautasso@gmail.com.
[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: tiagosnogara@gmail.com.
[3] Como definiram Visentini e Pereira (2014, p. 191), para a China a questão “não se trata, entretanto, de simplesmente exercer influência sobre a RPDC, mas de manter relações pacíficas que garantam o status quo na península”.