China, a ressignificação do socialismo e novas abordagens marxistas
A China é um caldo de experimentação de uma nova engenharia econômico e social e, tendo em vista a prevalência do “Meta Modo de Produção”, também a mais avançada experiência humana em curso no mundo”.
Por Elias Jabbour*
A passagem do 70º aniversário da Revolução Chinesa não deve se encerrar em um simples olhar sobre uma história rica, vitoriosa e repleta de ensinamentos. Sim, trata-se de um exercício de poder a se vangloriar. Mas o sentido deve ser outro. Particularmente creio que o desenvolvimento recente chinês ocorre e lança o desafio teórico mais importante dos nossos tempos: a ressignificação do socialismo e do marxismo à luz de um mundo ainda marcado pela: 1) emergência de novos paradigmas tecnológicos; 2) a financeirização como dinâmica dominante de acumulação; 3) as modernas formas de dominação imperialista, sob a forma de “guerras híbridas”, “lawfare” e a transformação do dólar em arma de destruição em massa e as 4) as novas e superiores formas de planificação econômica que surgem na própria China (Nova Economia do Projetamento).
A ressignificação do socialismo ensejado neste processo passa pela sua reafirmação como projeto de caráter desenvolvimentista (superar, sem negar o estágio de desenvolvimento do modo de produção rival, logo apreendendo o ponto mais alto daquilo que negamos – negação da negação) e essencialmente anti-imperialista. Formas lúdicas que confundem o horizonte socializante como uma utopia devem ser prontamente rejeitadas. Ao marxismo, em nome da manutenção do seu caráter universal, cabe uns rearranjos em seus conceitos basilares, entre eles os de modo de produção, formação econômico-social e na relação entre a lei do valor e a transição a uma formação econômico-social de nível superior. São ressignificações de extrema urgência em um mundo não visto pelos clássicos do materialismo histórico e cujas respostas dadas em contextos do século passado não são mais capazes de apreender a totalidade objetiva do tempo presente.
O socialismo como projeto desenvolvimentista em essência
Em grande medida a própria experiência chinesa enseja lapsos de respostas às questões que proponho. O caráter desenvolvimentista a ser advogado pelos comunistas é uma resposta tanto à velha questão sobre o socialismo ter ocorrido em países sem prévia base material quanto ao “catching-up” (emparelhamento) aos países centrais. A China, e o que ocorreu à União Soviética, demonstra que ao socialismo não cabe outra alternativa a não ser a redução da desigualdade entre países da periferia e do centro do sistema. Quebrar o monopólio exercido pelos países capitalistas desenvolvidos do aparato científico e tecnológico é a principal condição ao sucesso de qualquer alternativa ao capitalismo no mundo. O contrário é a proscrição das próprias experiências.
Isso envolve a capacidade de quebra do circulo vicioso das leis das vantagens comparativas pela via de projetos nacionais com capacidade de formação de policy space à consecução de políticas fiscais, cambiais e monetárias expansionistas.
O que ocorreu na China é interessante, pois o núcleo produtivo do país é composto por imensos conglomerados empresariais localizados nos pontos nevrálgicos da economia do país e dotados por um poderoso braço financeiro de longo prazo estatal. A atual pegada financeirizada do capitalismo não nega a natureza de seu sistema: um grande engenho de succionar mais-valia, multiplicando as fusões e aquisições empresariais. Afora esta tendência de centralização de capital estar em novo florescimento, existe o monopólio da moeda de referência internacional exercida pelo imperialismo. Este monopólio transmutou-se em na arma de destruição letal mais poderosa do mundo atual: o reenquadramento do mercado pelo Estado nos Estados Unidos pós-2009 possibilitou a reestatização da impressão do dólar e na criação de jurisprudência sobre a circulação desta moeda. O congelamento de ativos nacionais denominados em dólar – e seu profundo impacto sobre economias de países como Irã, Venezuela e Coreia do Norte – são uma péssima novidade com capacidade de ampliação do poderio financeiro imperialista. A essência do imperialismo não muda!
O projeto socialista não prescinde de gigantes empresariais globais, de complexos sistemas financeiros e capacidade financeira para fazer frente aos novos desafios postos pela presente emersão de novos paradigmas em matéria de ciência, tecnologia e inovação. O imperialismo tem se reposicionado em vários fronts, incluindo a introdução de novas tecnologias ao seu aparato de ação. As guerras híbridas a que estão submetidos muitos países do mundo, incluído a China, é parte do desenvolvimento de formas sofisticadas de intervenção sobre a realidade. A fronteira da tecnologia pode ser intransponível caso um país não tenha capacidade de modernização de seu parque industrial e tecnológico. As reformas a que foram, desde a década de 1990, submetidas as empresas estatais chinesas de forma a se utilizarem do mercado como instrumento de desenvolvimento são uma fonte de estudos de obrigatória passagem aos comunistas interessados em grandes questões que envolvem o exercício do poder político.
Outro ponto que acredito ser fundamental e que demanda muito estudo e aprofundamento são, o que tenho chamado, de novas e superiores formas de planificação econômica que surgem na China com muita força desde o início da presente década. Ao lado do crescente poderio financeiro, garantidor de capacidade de importação de novas e novíssimas tecnologias, um Sistema Nacional de Inovação foi concebida nos últimos 15 anos com o desafio de colocar o país na ponta de grandes processos envolvendo inovações que vão desde a plataforma 5G, a formação e sistematização do Big Data e a corrida para alcançar os EUA e a Alemanha nas áreas relacionadas à Inteligência Artificial. Políticas industriais como o Made in China 2025 e os que envolvem o desenvolvimento da Inteligência Artificial não somente tem dado bons resultados, mas também rapidamente adaptados e aplicados à “economia real”.
No século XX a conquista humana pelo conhecimento das leis/lógicas gerais do movimento do capitalismo ensejou novas capacidades de intervenção sobre o ciclo econômico que no capitalismo se expressam no Princípio da Demanda Efetiva e no socialismo pela via da planificação soviética. A economia monetária completava esse cenário formando o que Ignacio Rangel chamava de “Economia do Projetamento”. É evidente que surge na China uma “Nova Economia do Projetamento” pela via da introdução, à teoria e a prática da planificação econômica, das ja citadas novas e superiores formas de planificação econômica.
Por fim, no que se refere ao marxismo. Como reafirmar sua universalidade em um mundo completamente diferente do que ele se defrontava no século XIX? Como encontrar respostas teóricas aos desafios postos aos comunistas fora do poder? Como a experiência chinesa pode servir de auxílio a esta necessária adaptação? Tenho opiniões não definitivas sobre essas questões, mas ouso lançar algumas indicações. Falarmos em socialismo na contemporaneidade deve ser um exercício intelectual que demanda extrema cautela. Digo isso, pois o próprio desenvolvimento do modo de produção capitalista, e em particular na atual etapa financeirizada, impõem vários obstáculos e armadilhas de ordem teórica longe do alcance dos clássicos do materialismo histórico.
O “Meta Modo de Produção” e a China como a primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais
A dominância e prevalência exercida pelo capitalismo em âmbito mundial demanda dos marxistas um rearranjo de alguns conceitos fundamentais do marxismo, entre elas os conceitos de modo de produção e formação econômico-social e a lei do valor. O desenvolvimento em escala mundial do capitalismo plasmou o que meu companheiro de pesquisas e estudos onde me encontro (Itália), Alberto Gabriele, chama de “Meta Modo de Produção” – não se trata de um modo de produção em si mesmo, mas uma generalização necessária em nível superior do modo de produção. Gabriele sugere que o “Meta Modo de Produção” é caracterizado pela prevalência da: 1) da produção voltada ao mercado e de relações monetárias de produção e de troca; 2) A lei do valor como operador do sistema; 3) a extração de mais-valia e o circuito investimento-acumulação e 4) A existência mútua, e complementariedade, de dois macro-setores respectivamente o produtivo e o não produtivo.
Essa sugestão de abordagem teórica abre oportunidade de observar o mundo a partir de uma generalização/abstração sob forma de uma estrutura social cujas características fundamentais, segundo Gabriele, são 1) um modo de produção é dominante em nível global; 2) dois ou mais modos de produção coexistem em alguns países, sendo que um deles pode ser dominante dentro do próprio país e 3) a “liberdade” de ação de determinado modo de produção dominante em cada país é restringida pela prevalência, ou seja, do “Meta Modo de Produção”.
Continuando, é evidente que sob este “Meta Modo de Produção” se desenvolvem diferentes formações econômico-sociais, que podem ser capitalistas ou socialistas. Por exemplo, o surgimento dos chamados “Estados Desenvolvimentistas” na Ásia pós-Segunda Guerra Mundial levou ao surgimento de formações econômico-sociais de tipo capitalistas e socialistas. Neste contexto, uma abordagem onde a utilização da categoria de formação econômico-social é reformulada com vistas à prevalência de um determinado “Meta Modo de Produção” nos leva a considerar a China como a primeira classe de novas formações econômico-sociais que surgem no mundo contemporâneo com características de “socialismo de mercado” muito evidentes dada tanto a prevalência de formas socialistas de propriedade quanto à existência da lei do valor e sua utilização em prol de uma estratégia socializante. O Vietnã seria a segunda experiência deste novo tipo de formações econômicos-sociais.
De antemão, novas possibilidades teóricas são abertas com a introdução dos elementos expostos acima. Toda formação social é complexa, dada a capacidade de inserção e retração que o “Meta Modo de Produção” exerce sobre todas as realidades mundiais, capitalistas e socialistas. Daí a cautela que sugiro ao afirmar sobre a característica socialista desta ou daquela experiência. Logo, o socialismo não é uma realidade à priori. O que existe à priori é uma nova formação econômico-social com resultados econômicos e sociais espetaculares que se desenvolve e cria suas regularidades distintas, inclusive a distanciando de experiências de tipo capitalista de Estado. Em grande medida, e dentro das possibilidades da agenda de pesquisa que desenvolvo com Alberto Gabriele, podemos notar que a experiência chinesa aponta para uma perspectiva cada vez mais distante das possibilidades de um capitalismo, na melhor das hipótese, “regulado”. A China é um caldo de experimentação de uma nova engenharia econômico e social e, tendo em vista a prevalência do “Meta Modo de Produção”, também a mais avançada experiência humana em curso no mundo. É para lá que devemos estar com os olhos bem atentos.
* Elias Jabbour é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da UERJ e membro do Comitê Central do PCdoB