China e o equilíbrio possível no conflito Otan-EUA-Ucrânia x Rússia
A República Popular da China apresentou, no dia 24/2, um texto com duas funções: sistematizar sua visão sobre o conflito na Ucrânia envolvendo Otan e a Federação Russa e ao mesmo tempo apontar propostas concretas que indiquem o início de uma saída diplomática.
Por Wevergton Brito Lima*
Como sabemos, a China vem aprimorando cada vez mais sua atuação internacional e o texto que apresentou é realmente impressionante.
Tanto assim, que a primeira reação da Ucrânia foi favorável à plataforma apresentada pelos chineses.
O Jornal O Globo, conhecido reprodutor e porta-voz das agências internacionais atlantistas, portanto, insuspeito nesta questão, registrou no próprio dia 24, em manchete: “Ucrânia e Rússia saúdam iniciativa da China para paz, mas Otan descarta a proposta imediatamente”.
Ao descartar liminarmente uma proposta acolhida favoravelmente pelo que seria a principal interessada, Otan/EUA mostram quem está no comando contra a Rússia, sendo a opinião da Ucrânia absolutamente secundária em tal contexto, se não totalmente irrelevante.
Mas isso já era sabido. O interessante é que o lead da matéria do jornal carioca informava que a “Ucrânia se mostra receptiva, enquanto Moscou entende que proposta legitima a sua agressão”. Como, por todos os deuses, a China consegue tal reação favorável de dois contendores que em tudo divergem?
Em primeiro lugar porque a China não tem qualquer interesse real no prosseguimento das hostilidades, e a Ucrânia, e ainda mais a Rússia, sabem disso. O texto apresentado trabalha, dialeticamente, com as contradições colocadas sem apresentar um modelo pronto para a paz, que só é possível ser alcançada, segundo a China, por negociações diretas – e sem exigências prévias – entre Rússia e Ucrânia, segundo determinadas condições básicas que a China apresenta como guias para um início de trabalho.
O primeiro item das propostas diz, de forma enfática, que “a soberania, a independência e a integridade territorial de todos os países devem ser defendidas efetivamente (grifos meus)”. Para não deixar dúvidas sobre sua posição em relação a este tema, de total convergência com o discurso ucraniano, a China arremata o primeiro ponto da seguinte maneira: “A aplicação igualitária e uniforme (grifo meu) do direito internacional deve ser promovida, enquanto o duplo padrão, rejeitado”.
Ao mesmo tempo, no segundo item, a China defende, aproximando-se da posição russa, que “a segurança de um país não deve ser procurada à custa da segurança de outros. A segurança de uma região não deve ser obtida através do fortalecimento ou expansão de blocos militares. Os interesses e preocupações de segurança legítimos de todos os países devem ser levados a sério e abordados adequadamente”.
Ou seja, de forma muito clara, a China inicia sua “análise” colocando em cena os elementos centrais do drama, que neste caso, estão em conflito – direito à integridade territorial versus direito à segurança nacional e avisa: “Não existe uma solução simples para um problema complexo”. Feita esta introdução, os demais 10 itens são propostas concretas: Cessar as hostilidades, retomar as negociações de paz, resolver a crise humanitária, proteger os civis e prisioneiros de guerra, manter a segurança das usinas de energia nuclear, evitar as ameaças de uso de armas nucleares, aliviar a crise alimentar, por fim às sanções que não tenham sido aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, trabalhar para evitar que o conflito agrave a crise econômica mundial e planejar a reconstrução das áreas destruídas no conflito.
Primoroso! Os direitos e preocupações de cada parte são reconhecidos, embora conflitantes no momento. Admite-se a complexidade do problema, repleto de contradições, mas aponta-se, em meio à batalha, o que pode ser consensual, como uma espécie de roteiro para a paz. Um documento efetivamente equilibrado, que não se compromete definitivamente com nenhum dos lados, revelando a autoridade política e moral de quem tem este equilíbrio.
Pode ser até que este documento não seja o responsável por deflagrar os movimentos efetivos em busca da paz, mas certamente irá influenciar muito, de uma forma ou outra.
Clique aqui e leia a íntegra do texto com as propostas da China, que já está disponível em várias outras plataformas, mas nunca é demais divulgá-lo pois tenho a convicção de que este exemplo de construção diplomática será, no futuro, estudado em todas a escolas de relações internacionais, até mesmo, quem sabe, no prestigiado Instituto Rio Branco.
*Jornalista, editor do i21