Graziella Pogolotti: As razões do meu voto na nova constituição cubana
Eu não sou jurista. Minha leitura da Constituição é de uma cidadã consciente de sua responsabilidade social e comprometida com o destino do país.
Abordo, em primeiro lugar, o apelo de Fidel para mudar tudo o que deve ser mudado, levando em conta os fatores que caracterizam o momento em que vivemos. Na análise do contexto que define a contemporaneidade, intervém o panorama internacional e os elementos que compõem nossa sociedade.
O colapso do socialismo europeu coincidiu com um estágio de desenvolvimento capitalista dominado pelo poder das finanças. A economia especulativa prevalece sobre a real. Fortunas gigantescas se refugiam em paraísos fiscais. Os fundamentos da democracia burguesa são quebrados mediante a manipulação das massas através da mídia e redes sociais que propagam mentiras e operam fora de um sistema legal que protege o cidadão.
Propagada em grande escala, a mentira da suposta posse de armas de destruição em massa pelo Iraque serviu de pretexto para invadir o país.
Desde então, o derramamento de sangue não parou. O deslocamento das populações foi imenso. O terrorismo atingiu dimensões sem precedentes. Direitos humanos e normas legais internacionais foram violados. A intervenção nos assuntos internos de outros Estados é imposta como prática. O Oriente Médio parecia muito distante. Agora, a ameaça paira sobre nossa América Latina.
Ante a rápida e avassaladora ofensiva do capitalismo em sua forma mais agressiva, que viola o direito internacional, a soberania e identidade dos povos pela conjunção da dominância econômica, da ameaça militar, do descrédito da política e da manipulação sofisticada de consciências, o socialismo propõe uma alternativa para os países do Terceiro Mundo e, também — em outra escala — para a preservação do planeta.
Temperado em sua formulação teórica e prática à especificidade histórica de cada nação, à análise concreta de seu nível de desenvolvimento, às suas tradições e culturas, distanciado do transplante mecânico de outros modelos, estabelece as bases para alcançar a verdadeira soberania nacional, apoia uma crescente justiça social e defende o respeito devido à dignidade humana.
Vista de forma abrangente, a Constituição articula a projeção rumo ao futuro e as demandas do presente. Mantém viva a perspectiva de uma sociedade comunista. Estabelece as bases conceituais do corpo jurídico que deve se ajustar às mudanças operadas na sociedade cubana em termos de formas de propriedade e garantias para o investimento estrangeiro.
Em contraste com o livre jogo do mercado, afirma as prerrogativas do Estado como representante da soberania popular. Baseia os regulamentos que devem presidir o funcionamento dos tribunais e da promotoria, como garantia dos bens do povo e dos direitos das pessoas.
Preserva o acesso universal e gratuito à saúde pública e à educação. Acima de tudo, atribui prioridade absoluta, de acordo com a tradição de José Martí, ao respeito pela dignidade humana.
Consistente com o acima exposto, dedica uma parte substantiva de seus artigos à formulação dos direitos e deveres dos cidadãos, com base no respeito devido à pessoa humana. Condena todas as formas de discriminação com base na raça, origem étnica, origem social, sexo, deficiência e orientação sexual. Atualiza o conceito de família, reconhecendo sua diversidade de formas e constituição. Legitima com isso uma realidade existente agora com raízes que vieram de muito tempo atrás e escondidas sob o manto da hipocrisia, fonte de preconceitos lacerantes herdados da área mais escura de nossa tradição cultural.
Ratifica os direitos da infância e adolescência, bem como os deveres correspondentes à maternidade e paternidade, os dos filhos em relação aos pais e avós. Nesta área, condena o exercício de todas as formas de violência, levando em conta as consequências físicas, psicológicas e sociais que podem resultar desses comportamentos.
Como Carta Magna, a Constituição estabelece os princípios fundamentais que presidirão a sociedade que estamos construindo. É o ponto de partida conceitual da legislação complementar que começará a ser desenvolvida imediatamente e que, provavelmente, também exigirá a revisão de nossos Códigos Civis e Criminais. Delineia os padrões do que deveria ser, a forma de um guia de ação para corrigir problemas potenciais em nossa realidade atual manchada pelo burocratismo, a diferença entre os preços e os salários, o suborno, a corrupção, a cumplicidade, a apatia e a complacência com o que foi mal feito.
Concebido com a participação de todos e para o bem de todos, o debate sobre a Constituição constituiu um exercício democrático. Ele contribuiu com propostas que melhoraram a versão original. Não menos importante foi o contributo para o desenvolvimento de uma consciência cidadã, responsável e comprometida com o destino do país, um passo decisivo para a assunção da indispensável sujeição ao Estado de direito em benefício da nação e dos que partilham o espaço da Ilha.
Graziella Pogolotti é jornalista e escritora. Nasceu em Paris em 1932 e foi para Cuba com sete anos de idade. Em 2005 recebeu o Prêmio Nacional de Literatura, mais importante premiação literária de Cuba.
Fonte: Granma