Os herdeiros do Apartheid
Quase 30 anos depois do fim do regime de Apartheid na África do Sul, organizações racistas buscam o retrocesso no país e existe até uma cidade onde residem apenas brancos.
Por Rodrigo Barradas *
É estranho pensar a história como cíclica. A estranheza decorre do fato de que quando a repetimos, não trazemos de volta apenas os pontos positivos, mas talvez principalmente os fatos negativos. O que mostra que não temos lá muita habilidade de aprendermos com os erros do passado.
Wouter Basson é um cardiologista sul-africano que virou notícia no ano passado quando foi divulgado que ainda exercia a profissão em duas clínicas no país. A surpresa se dá ao fato de que ele simplesmente é o ex-chefe do projeto secreto de guerra química e biológica do país, o Project Coast, durante a era do Apartheid.
Apelidado de Dr Morte, Basson liderou campanha secreta de injeções na década de 1980, destinada a conter a fertilidade da população negra, na tentativa de diminuir a disparidade demográfica entre a maioria negra e a minoria branca naquele país.
Basson havia sido absolvido em 2002 de 67 acusações. Entre elas, a de ter fornecido um “coquetel triplo letal” que foi usado durante a Operação Duelo – a eliminação sistemática de prisioneiros de guerra da SWAPO. Muitos dos prisioneiros eram angolanos e cubanos. O relatório das Nações Unidas identifica o coquetel triplo como cetamina, succinilcolina e tubocurarina.
O fato de Basson continuar exercendo a medicina não é de se espantar. Desde o fim do Apartheid e o modelo de reconciliação, a minoria branca ainda continua sendo uma minoria com melhores condições de vida no geral, mesmo que uma pequena parte tenha empobrecido.
Em 2015, escrevi parte da reportagem abaixo para a extinta revista eletrônica “Babel”, onde pude entrevistar líderes de grupos racistas dissidentes e que ainda sonham com uma África do Sul totalmente branca ou que o poder volte às mãos do sul-africanos brancos.
Não faz muito tempo que a África do Sul conseguiu, ao menos politicamente, quebrar as correntes do Apartheid. Tendo o seu ápice moral e imagético na ascensão de Nelson Mandela à presidência. O primeiro presidente negro sul-africano.
O Apartheid foi o regime de segregação racial da África do Sul, imposto por uma minoria branca a uma maioria absoluta de negros. As diferenças impostas estavam impregnadas em todas as partes. Do privilégio social à língua.
Os negros estavam relegados aos guetos, sendo o mais famoso deles Soweto, localizado nos arredores de Johanesburgo. Que dentro do seu próprio país, deveriam portar passaporte e só poderiam entrar nos bairros brancos, esses, verdejantes e abastados subúrbios em sua maioria, com autorização da polícia e do Governo. Claro, iam apenas para fazer trabalhos de natureza braçal. Jardinagem e limpeza das casas. Muitas mulheres – empregadas domésticas – eram obrigadas a viver nos lares dos seus “senhores” brancos. Sendo assim, separadas de seus pais, maridos e filhos.
Os brancos sul-africanos são os bôeres ou africâneres, descendentes de holandeses em sua maioria, mas também de franceses, alemães e ingleses. Do nome vem o idioma símbolo do regime, o Africânder, cuja origem remonta ao holandês falado no século XVII. Em dado momento foi imposto aos negros o ensino de uma língua que para eles era um dos maiores símbolos da opressão contra o seu povo. Por isso eles falavam Inglês, entre si.
Há um fato interessante quanto ao Africânder. Mesmo significando o idioma do opressor, Nelson Mandela, ainda preso, mandou uma mensagem aos seus. Disse que era necessário que eles aprendessem sim. Mandela achava que os negros deveriam conhecer o âmago do povo que os oprimia, entender como eles pensavam, agiam, para que pudessem ter eficiência na sua luta. E para ele, não haveria melhor maneira de fazer isso do que aprendendo a língua deles e a partir daí, os seus códigos, condutas e crenças.
O regime era uma ditadura, onde quem normalmente era perseguido, torturado e assassinado, eram os negros. Principalmente os que se rebelavam contra o Apartheid. Mas também tudo isso era aplicado aos brancos se esses passassem a defender os direitos civis dos negros. Uma das armas utilizadas era o banimento. A pessoa banida não poderia se reunir com mais de uma pessoa ao mesmo tempo – excluso seus familiares -, em casa ou em espaço público. Também não poderia sair do país.
Foi o caso da educadora e ativista branca sul-africana, Ruth First. Casada com o político e membro do Partido Comunista da África do Sul, Joel Slovo, ela foi uma incansável lutadora pelos direitos civis dos negros, naquele país.
Foi perseguida e presa, sendo mantida em isolamento total. A primeira mulher branca a ter essa condenação. Em 1964, teve que se exilar para não ser condenada à pena capital. Primeiro foi morar em Londres, tornando-se membro ativa do Movimento Anti-Apartheid daquela cidade. Em 1978, foi convidada para lecionar na Universidade de Maputo, capital de Moçambique. O país acabava de se tornar independente. First, sendo considerada uma terrorista pelo governo racista da África do Sul, morreu ao abrir uma carta-bomba enviada para a sua sala pelo Serviço Secreto racista, naquela Universidade, em 1982.
A história da luta contra o Apartheid teve vários exemplos de brancos que se opuseram à desumanidade daquele regime. Donald Woods foi um editor do Daily Dispatch, um importante jornal dos arredores da Cidade do Cabo. Woods tornou-se um grande amigo do ativista negro Steve Biko. Chegou a empregar negros no jornal, que logo foram presos – um sendo torturado até a morte -, pela polícia racista sul-africana.
Logo após o assassinato de Biko, Woods decidiu que contaria ao mundo os absurdos que estavam em curso no seu país, através de um livro. Foi descoberto e banido. Planejou e conseguiu a sua fuga da África do Sul. Na Inglaterra, já com a família, publicou o livro e tornou a emocionante história de Biko, conhecida mundialmente.
Posteriormente, a história dessa amizade foi parar no cinema, com o filme “Cry Fredoom”, sendo filmado em 1987, ainda durante o Apartheid, e conta com Denzel Washington no papel de Steve Biko.
Os supremacistas querem um país branco
Na contrapartida, temos outros personagens. Não falo do governo racista, mas sim de grupos radicais de extrema direita, que também faziam parte do cenário social e que na verdade ainda existem.
Eugène Terre’Blanche, talvez não seja um personagem muito comum quando seu nome é entoado. Mas muito provavelmente você se lembrará que há uns anos, um importante líder de um movimento racista sul-africano havia sido assassinado, o que fez acender novamente as tensões raciais na África do Sul. Era ele. Trata-se de uma das peças-chave, para tentarmos entender como e o porquê de grupos supremacistas continuarem agindo hoje e lá atrás, mesmo dentro de um regime que dava plenos direitos e benefícios aos brancos.
Terre’Blanche foi o fundador em 1973, do Movimento de Resistência Africânder (Afrikaner Weerstandsbeweging – AWB), um dos grupos radicais mais violentos e intolerantes. Pregava uma África do Sul 100% branca. Por isso, mesmo tendo no início do regime se filiado ao Partido Nacional, que comandava a segregação, se desiludiu porque não o achava eficaz o suficiente.
O AWB teve papel muito importante na disseminação do terror, principalmente quando a África do Sul dava sinais que finalmente iria colocar um fim na vergonhosa segregação racial ao qual subjugou os negros, mesmo não oficialmente, desde a vinda dos europeus para a região.
Quando em 1990 o então presidente Frederik de Klerk autorizou a libertação de Nelson Mandela, depois de 27 anos preso numa solitária e principalmente quando sinalizou a possibilidade de que negros, e principalmente Mandela, poderiam se candidatar à presidência, o AWB entrou em ação. Comandaram vários atentados terroristas dentro da África do Sul, com carros-bomba, levando centenas de pessoas à morte. Terre’Blanche disse na ocasião que se fosse preciso, levaria o país a uma guerra civil.
Num fato que ficou marcado, durante as eleições, o AWB invadiu uma pequena cidade ao norte da África do Sul, e tentou tomá-la à força, matando e ferindo muitos civis negros. Em contrapartida, policiais negros conseguiram impedir, tendo uma imagem como símbolo de uma guerra civil que estava cada vez mais perto, quando quatro membros do AWB, feridos à bala no chão, foram executados na frente das câmeras pelos policiais negros.
Terre’Blanche foi assassinado em 03 de abril de 2010, em sua propriedade em Ventersdorp, por um empregado negro, no que se leva a crer, ter sido a partir de um desentendimento salarial. Depois de seu assassinato, houve muita tensão por parte do AWB e outros grupos radicais. Diziam ser apenas uma partícula dos assassinatos de fazendeiros brancos, por grupos de negros. De fato, esse problema existe, tanto na África do Sul, quanto em países como o Zimbábue, antiga Rodésia, chamado assim, quando lá imperava também um regime de segregação racial. Mas tem muito mais a ver com a violência que brota da desigualdade social do que de um suposto e inexistente racismo reverso e perseguição ao povo branco.
Assim como o AWB, outros grupos existem e se fortalecem como o seu aliado e também radical “Kommandokorps”, que entre suas ações, ensinam jovens brancos a odiar os seus agora, vizinhos negros. No documentário “Afrikaner Blood” (disponível abaixo com legendas em inglês), das holandesas Elles van Gelder e Ilvy Njiokiktjien, vencedor do primeiro prêmio do concurso World Press Photo 2012, na categoria multimídia, dá para se ter a estarrecedora ideia, de como eles transformam estudantes normais em guerrilheiros pela supremacia branca.
Num acampamento nos arredores da cidade de Carolina, situada na província de Mpumalanga, África do Sul, pode-se avistar uma movimentação estranha. Pessoas vestidas com roupas militares caminham juntas. Adultos na frente e adolescentes atrás. “Eu amo a África do Sul… A diversidade da natureza sul africana é única neste mundo”, fala Franz Jooste, ex-major do exército sul africano durante o Apartheid e hoje, líder do grupo racista paramilitar Kommandokorps, no início do curta-documentário.
Quando passamos a investigar de forma mais profunda a vida na África do Sul de hoje, logo percebemos que o abismo entre a tão sonhada nação arco-íris e a realidade de tantas diferenças latentes é muito mais profundo do que conta a versão oficial dos fatos.
No documentário, dá para se ter noção de como a mentalidade dos jovens que ingressaram no acampamento, muda. São adolescentes nascidos ou crescidos já na era da reconciliação e que são mandados para o camping por seus pais, que ainda nutrem um forte sentimento de segregação. Lá, são ensinados a odiar os negros, com teses baseadas em uma suposta inferiorizarão da etnia negra, e odiar tudo o que a África do Sul de 1994 para cá, representa, incluso sua bandeira que faz alusão à integração dos povos.
Em entrevista que fiz em 2015, Franz Jooste disse que não se trata mais do Apartheid, mas sim da criação de um país exclusivo para os brancos. “O Kommandokorps é um grupo de pressão política e militante, que treina o nosso povo, os bôeres – pessoas africâneres -, para se protegerem e proteger os seus entes queridos, contra um brutal e assassino inimigo implacável (A África do Sul da integração dos povos). Damos suporte para um estado separado para os africâneres. Somos um povo separado que luta por independência. Queremos um estado separado , assim como os alemães , russos, georgianos e irlandeses têm. Nada mais, nada menos. Soberania e independência”.
Ainda segundo Jooste, desde 1994 que o número de brancos que faliram e começaram a formar favelas brancas cresceu bastante. Ele culpa os governos negros da África do Sul, como se houvesse perseguição contra os africâneres e critica as políticas de recompensa dadas pelo Estado aos negros para que ascendam socialmente. “Os negros não ascenderam socialmente de forma natural. Eles ascenderam com ‘dinheiro artificial’ que lhes é fornecido de várias maneiras, através de leilões, fraude, roubo, corrupção e muitas outras formas, criando artificialmente os chamados ‘diamantes negros’. O governo priva o nosso povo dos postos de trabalho, através do sistema ‘Black Economic Empowerment – BEE’ (uma espécie de cotas de emprego para os negros), tornando assim vários brancos pobres. Mas seu sistema artificial não pode durar muito tempo e se eles querem este país novamente próspero, eles têm que olhar para os ‘diamantes brancos’ novamente”, disse, numa alusão clara a uma suposta superioridade meritocrática branca.
Comunidades 100% segregadas
O Karoo, na província do Cabo Setentrional é uma região árida. Junto ao rio Orange, brota uma pequena vila, que de tão verdejante, pulula à vista como um verdadeiro oásis. Trata-se de Orânia. À primeira vista, parece uma vila comum, mas a impressão acaba nos seus portões. Trata-se de uma cidade fechada, totalmente privada e segregada. Ali moram apenas brancos. São totalmente separados do Estado sul-africano.
Para existir, a cidade de fato funciona como uma empresa. Ela foi fundada em 1990 por um grupo de 40 famílias africâneres, lideradas por Carel Boshoff, genro do antigo primeiro-ministro do Apartheid, Hendrik Verwoerd, que insatisfeitos com a abertura do regime de segregação, decidiram se isolar do resto do país. Para que isso pudesse ocorrer, a empresa Vluytjeskraal Aandeleblok (Whistle Corral Share Block), comprou a localidade por U$ 200 mil.
A comunidade é auto-suficiente, possuindo até moeda própria, a Ora, emitida pela primeira vez em 2004. Porém, não tem reconhecimento do South African Reserve Bank, só podendo ser usada na própria comunidade.
Em entrevista concedida a mim lá em 2015, John Strydom, porta-voz de Orânia, diz que a comunidade já era pensada desde a década de 1970, pelos que defendem a separação total dos povos, mas que não são adeptos de ações radicais, como as do AWB e Kommandokorps. “Orânia já era discutida em conceito, desde a década de 1970, porque previmos que a demografia favoreceria apenas aos povos indígenas. O governo atualmente não protege a minoria branca, como deveria. Nós não apoiamos posições extremas e não acreditamos em violência. Negociamos, mas esculpimos o nosso próprio futuro. Quem deseja viver em Orânia, tem que saber claramente o que a comunidade representa. Então marcar uma entrevista, assinar a nossa constituição e ganhar sua própria renda, casar-se… É uma comunidade bastante normal com os valores tradicionais dos africâneres”, informou.
A experiência com Orânia deu frutos, o que é um pesadelo para a ideia de uma África do Sul unida. Nos arredores da cidade de Pretória – que é a cidade grande com maior número de brancos naquele país -, está localizada Kleinfontein, outra comunidade 100% branca. Apesar de ter sido fundada em 1992, como uma Aldeia Cultural, só recentemente desenvolveu sua economia auto-sustentável, peça-chave para a independência do Estado sul-africano.
Os desafios de uma África do Sul unida
Os desafios para uma África do Sul unida ainda precisam ser superados. É verdade que muitos sul-africanos brancos que haviam fugido do país, com a ascensão de Mandela ao poder, têm voltado.
Primeiro é necessário que o branco entenda que depois de décadas e décadas de subjugação e exclusão ao negro é preciso que existam políticas afirmativas que os coloque dentro da sociedade sul-africana. Segundo é preciso levar em conta que provavelmente, assim como foi feito no Brasil em relação à Ditadura Militar, a anistia dos criminosos do regime não deu certo e continua a não dar. E terceiro e antes de tudo, deve haver uma superação pelo lado branco, das questões ultrapassadas que tentam provar uma absurda inferioridade intelectual e cultural dos negros, o que daria um falso álibi para a subjugação desses povos. Isso já deveria ter sido superado desde o século XIX – quando essas teorias começaram a ser ridicularizadas pelo mundo.
Não segundo a ideologia que pontua as ações de grupos supremacistas. Mas como o próprio Franz Jooste especifica no começo do documentário “Afrikaner Blood”: “A diversidade da natureza sul africana é única neste mundo”, falta a ele e seus asseclas perceberem que nesta beleza de diversidade, principalmente está a beleza e importância humana.
* Jornalista e autor de Em Chamas, livro de poesias (2015)