Presidente do Haiti viola Constituição, prende sucessores e se mantém no poder
O Haiti vive dias decisivos para a política nacional. O mandato constitucional do presidente Jovenel Moïse terminou, no último domingo (7), no entanto, o mandatário não dá sinais de que irá deixar o poder.
Em um discurso na tarde de domingo, Moïse afirmou ter impedido uma tentativa de golpe de Estado, que seria comandada pelo juiz Ivickel Dabrésil, do Tribunal de Cassação da corte suprema do Haiti e seu sucessor na presidência do país.
O presidente de fato disse que o plano golpista estava sendo monitorado pela segurança do Palácio Nacional desde novembro e que a polícia deveria buscar reunir-se com sua guarda pessoal para obter mais informações.
Sem comentar sobre o período constitucional do seu mandato, Moïse ofereceu uma coletiva de imprensa no aeroporto internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe, antes de embarcar para celebrar o Carnaval na cidade de Jacmel, 92 km a oeste da capital, na costa caribenha.
O primeiro-ministro Joseph Jouthe se pronunciou em seguida, respaldando as declarações de Moïse, afirmando que foram encontradas armas e dinheiro com os detidos, sem dar mais detalhes.
Anunciou a detenção do juiz Ivickel Dabrésil, da diretora geral da Polícia Nacional, Marie Louise Gauthier, e outras 21 pessoas que estariam envolvidas na suposta intentona para assassinar o chefe de Estado.
Depois disso, na noite de domingo (7), Joseph Mécène Jean-Louis, membro do Tribunal de Cassação desde 2011, leu um breve discurso em que disse “aceitar a escolha da oposição e da sociedade civil para poder servir ao nosso país como presidente provisório da transição “.
Mécène é apoiado pelo líder opositor André Michel, do partido Comitê Nacional Democrata Progressista (RDNP), quem declarou que “Moïse não pode denunciar um golpe de Estado, se já não é presidente”. Nesta segunda-feira (8), o Tribunal de Cassação amanheceu cercada por policiais.
Enquanto os partidos de oposição, movimentos populares e a Igreja exigem que Moïse entregue a gestão e seja instaurado um Conselho Nacional de Transição, o Executivo afirma que permanecerá até 2022 no poder.
“É o momento para que as forças vivas haitianas entrem em acordo a respeito do futuro do país, porque segundo a Constituição ele deveria ir, mas ele não fará isso. E o que isso significa? Significa que a lei não se aplica no Haiti e o que nos resta é a dimensão moral e política”, afirmou o cientista político e economista, Joseph Harold Pierre.
Apesar de não respeitar os artigos da Constituição que determinam o fim do seu mandato, Jovenel Moïse utilizou a mesma legislação para dissolver o Congresso do país em janeiro de 2020.
Depois de fechar o parlamento, não convocar eleições, governar durante um ano à base de decretos e sugerir uma reforma constitucional que acabe com o Senado, a figura de primeiro-ministro, e permita a reeleição, o mandatário prendeu o seu sucessor direto no último dia do seu mandato.
“Exatamente o que aconteceu no Peru, em 1992, é o mesmo que está acontecendo agora no Haiti. Há uma interrupção da ordem democrática pelo Executivo. A OEA [Organização dos Estados Americanos] também pode excluir um membro quando há algum tipo de erosão da democracia, como violações aos direitos humanos, algo que estamos vendo aqui atualmente. Portanto, se reúnem todas as condições para que a OEA atue”, declara Pierre.
O Conselho Superior da Magistratura (CSPJ) do Haiti reiterou em um comunicado que a Constituição era clara e o mandato de Moïse deveria terminar no dia 7 de fevereiro de 2021, quando completaram seis anos das eleições gerais de 2015 e cinco anos de gestão presidencial.
Segundo o calendário proposto por Moïse e pelo chanceler Claude Joseph, o referendo constitucional seria celebrado no dia 25 de abril, as eleições gerais no dia 19 de setembro e se houvesse segundo turno para a escolha do presidente, este seria celebrado no dia 21 de novembro, data em que também poderiam ser realizadas as eleições municipais.
Sem parlamento, sem previsão para eleições e agora sem um presidente com mandato constitucional, o Haiti se vê à beira de uma crise generalizada.
As principais ruas de Porto Príncipe foram militarizadas, já no último fim de semana, para evitar a realização de manifestações, previamente convocadas, para exigir a saída de Moïse e a convocatória de um conselho de transição.
“O povo haitiano tem toda a legitimidade diante da comunidade internacional para discutir o seu destino, porque constitucionalmente, desde ontem [dia 7] o Haiti não tem um presidente”, defende o membro da brigada de solidariedade do MST com o Haiti, Paulo Henrique Campos.
Até o momento, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA) ou outros organismos internacionais não se manifestaram sobre o Haiti.
“A chamada comunidade internacional que opera no país através das embaixadas, especialmente Canadá, França e EUA, construíram o Core Group, que é o grupo que sustenta o governo de Jovenel Moïse. Então não é novidade que a comunidade internacional formal se pronuncie defendendo o governo de Moïse”, analisa o militante do MST.
Os movimentos populares têm cobrado posicionamento desses organismos internacionais. Nesse sentido, fizeram uma conferência internacional no final de janeiro para expressar sua solidariedade e exigir o respeito à democracia no país caribenho.
“O rompimento da democracia no Haiti é o rompimento de mais uma democracia na América Latina e no Caribe. Então é fundamental que os movimentos do mundo, as forças progressistas de todo o mundo apoiem o Haiti neste momento. Isso é fundamental não só para o povo haitiano, mas para a democracia na região”, afirma Campos.
Crise profunda
Em março de 2020, a ONU já havia declarado que 40% dos haitianos necessitavam de ajuda humanitária para viver e 3 milhões sofriam de insuficiência alimentar severa.
Com um Produto Interno Bruto de US$ 14,3 bilhões e uma dívida externa de US$ 232 milhões, o Haiti é considerado o país mais pobre da América Latina e Caribe pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
O desemprego afeta cerca de 14% da população, podendo chegar a 17,8% na zona central do país, enquanto as remessas enviadas por haitianos no exterior representam 20% do PIB nacional.
Oficialmente, o país registra 11.758 casos de covid-19 e 245 falecidos, no entanto há denúncias de subnotificação pela pouca estrutura de contenção à pandemia.
Já que 46% das instituições de saúde são privadas e, nacionalmente, há uma média de 6,34 médicos para cada 10 mil habitantes, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que a média seja de 25 profissionais a cada grupo de 10 mil habitantes.
Histórico
Desde 2018, quando se desatou uma crise de desabastecimento de combustível na ilha, movimentos populares denunciam a corrupção do atual governo.
O Partido Haitiano Tèt Kale é acusado de desviar cerca de US$ 4 bilhões dos fundos do acordo PetroCaribe, assinado em 2006 com a Venezuela, que oferece petróleo a preços e condições preferenciais ao Haiti.
No último ano, entre os 170 decretos assinados por Moïse, está incluída a criação da Agência Nacional de Inteligência, com agentes que contam com imunidade para investigar supostos atos “terroristas”.
Em dezembro de 2020, o presidente do Colégio de Advogados de Porto Príncipe e líder opositor, Monferrier Dorval, foi morto, em um caso denunciado como um assassinato seletivo.
Para o cientista político Joseph Harold Pierre, a oposição de direita e de esquerda ainda está muito dispersa no país, o que dificulta pensar numa alternativa real de novo governo.
“Até agora acredito que o partido de esquerda mais ou menos estruturado é o Fanmi Lavalas, partido do [ex-presidente] Aristide. Não é que esteja desorganizado, mas como a reorganização se debilitou, porque muitos líderes deixaram o partido, surgiram críticas de falta de democracia interna. Por isso não acredito que poderia ser uma opção de poder na conjuntura atual, mas deveria ter um papel no processo de democratização”, analisa.
Já Paulo Henrique Campos acredita que as mudanças virão da organização popular e da sociedade civil, aliadas em uma frente ampla.
“A sociedade haitiana vai continuar mobilizada. Esse é o sinal que as organizações estão dando para o povo haitiano. Agora é importante construir um programa unitário, no qual toda a sociedade civil possa construir alternativas. Esse também é o sinal que a oposição parlamentar tem dado”, conclui Paulo Henrique.
Fonte: Brasil de Fato