Snowden liga escândalo da espionagem na Europa a Biden
Macron e Merkel em sintonia com o denunciante: querem saber todas as informações sobre a cooperação entre dinamarqueses e norte-americanos na escuta aos aliados. Snowden responsabiliza presidente norte-americano.
Por César Avó
O presidente francês e a chanceler alemã pediram explicações à Dinamarca e aos Estados Unidos em resultado de novas revelações públicas sobre a espionagem que os norte-americanos realizaram aos aliados europeus entre 2012 e 2014, incluindo Angela Merkel e os seus rivais sociais-democratas.
Vários deputados e altos funcionários alemães, franceses, noruegueses e suecos foram espionados pela Agência de Segurança Nacional (NSA), a agência de espionagem dos EUA responsável pelas escutas eletrônicas, através da utilização dos sistemas de vigilância eletrônicos dinamarqueses.
Para Edward Snowden, o denunciante que em 2013 pôs a nu o sistema de vigilância massificado da NSA, cidadãos norte-americanos incluídos, compete ao presidente norte-americano responder às questões levantadas, uma vez que Joe Biden era à época vice-presidente.
“Biden está bem preparado para responder a isto quando em breve visitar a Europa, uma vez que, como é óbvio, esteve profundamente envolvido neste escândalo desde o início“, escreveu o antigo especialista da CIA e consultor da NSA.
Nos próximos dias o presidente dos Estados Unidos vai ter oportunidade de falar com os líderes europeus em várias ocasiões: nos dias 7 e 8 durante a cúpula do G7, em Carbis Bay, na Cornualha, no dia 14 na cúpula da Otan, em Bruxelas, e na mesma capital, um dia depois, na Cúpula União Europeia-EUA.
“Deveria haver um pedido explícito de divulgação pública total, não só da Dinamarca, mas também do seu parceiro principal“, concluiu Snowden.
Quem inadvertidamente juntou a sua voz à de Snowden, exilado na Rússia, foi Emmanuel Macron e Angela Merkel. “Isto não é aceitável entre aliados, e muito menos entre aliados e parceiros europeus“, disse Macron no final de uma cúpula franco-alemã em videoconferência entre Paris e Berlim.
“Não há espaço para suspeitas entre nós. É por isso que estamos à espera de total clareza. Pedimos que os nossos parceiros dinamarqueses e norte-americanos forneçam todas as informações sobre estas revelações e sobre estes fatos passados. Estamos à espera destas respostas“, disse o chefe de Estado francês. Já Merkel disse que “só podia concordar” com os comentários do líder francês, e deu sinal positivo à reação do governo dinamarquês. “É uma boa base, não só para esclarecer os fatos, mas também para estabelecer uma relação de confiança“, declarou.
“Inaceitável”
Horas antes, o Ministério da Defesa da Dinamarca, dirigido pela ministra Trine Bramsen, considerou “a espionagem sistemática de aliados próximos inaceitável“. A mesma palavra foi utilizada pela primeira-ministra norueguesa Erna Solberg. “É inaceitável que países que mantêm cooperação estreita entre aliados sintam a necessidade de se espiar.” No mesmo registo falou o ministro da Defesa da Suécia Peter Hulqvist. “Queremos as cartas em cima da mesa. É inaceitável ter os aliados sob escuta.”
A notícia foi divulgada no domingo, resultado de uma investigação da televisão pública dinamarquesa (DR), à qual o Le Monde, o Süddeutsche Zeitung, os canais alemães NDR e WDR, bem como as estações públicas de televisão SVT (sueca) e NRK (norueguesa) tiveram acesso. A DR fez eco de um relatório dos serviços secretos internos dinamarqueses sobre a Operação Dunhammer, o qual mostra que a NSA espionou políticos europeus em 2012 e 2014, utilizando sistemas de escutas de cabos submarinos de telecomunicações, através de um acordo com os serviços de informações da Dinamarca.
A NSA terá obtido dados a partir dos números de telefone de políticos e conseguiu aceder a SMS, chamadas telefônicas e tráfego na internet, incluindo pesquisas, histórico, chats e serviços de mensagens.
Entre os alvos estavam a chanceler alemã Angela Merkel, bem como dois candidatos à liderança do país, em 2009 e 2013: Frank-Walter Steinmeier, então líder do Partido Social Democrata (SPD) no Bundestag, mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros e atual presidente da República, e Peer Steinbrück, uma das figuras de topo do SPD.
Quando saíram a público notícias de que a NSA tinha os telefones dos ministros alemães, incluindo o de Merkel, sob escuta, em 2013, as relações entre Berlim e Washington arrefeceram. A chanceler declarou então que “espionagem entre amigos era inaceitável”. À época também se noticiou que a própria agência de serviços secretos alemã, BND, pode ter ajudado a espionagem dos EUA em relação a empresas e funcionários europeus.
A investigação da estação de TV falou com nove fontes que tiveram acesso ao relatório confidencial iniciado em 2013 e concluído em maio de 2015 pelo serviço dinamarquês de informações militares (Forsvarets Efterretningstjeneste, FE), um documento que tinha como objetivo compreender a utilidade das informações obtidas para a NSA, e é consequência das revelações de Edward Snowden sobre as práticas da NSA.
As informações recolhidas no relatório deixaram claro que o FE tinha ajudado a NSA a espiar políticos importantes na Suécia, Noruega, França, Alemanha e Países Baixos. Os serviços secretos dinamarqueses também ajudaram a agência norte-americana a espionar os ministérios dos Negócios Estrangeiros e das Finanças dinamarqueses, bem como um fabricante de armas dinamarquês. A FE também cooperou com a NSA em operações de espionagem sobre a própria administração dos EUA.
Defender interesses
Segundo a investigação da mídia, o governo dinamarquês soube o mais tardar em 2015 do envolvimento dos serviços secretos do seu país na espionagem da NSA. De acordo com a estação dinamarquesa, a ministra da Defesa Trine Bramsen terá sabido do caso em agosto de 2020. Ao saber do grau de cooperação entre os serviços de informações dos dois países, o governo dinamarquês forçou o diretor do FE, Lars Findsen, e o seu antecessor, que esteve no cargo até 2015, Thomas Ahrenkiel, entre outros altos funcionários, a demitirem-se. Na altura, o governo disse que uma auditoria tinha levantado suspeitas de que o FE estava a conduzir uma vigilância ilegal entre 2014 e 2020.
Em novembro de 2020, a DR revelou que os EUA tinham utilizado os cabos dinamarqueses para espiar as indústrias de defesa dinamarquesa e europeia entre 2012 e 2015 e um mês depois, o Ministério da Justiça ordenou uma comissão de inquérito sobre as operações do serviço secreto. As conclusões estão previstas para o final do ano.
Patrick Sensburg, deputado da CDU que levou uma comissão parlamentar alemã a investigar o escândalo da espionagem da NSA, não se mostrou surpreendido com as notícias sobre as atividades dos serviços secretos. “Não é uma questão de amizades. Não é uma questão de aspirações ético-morais. É uma questão de defender interesses“, explicou o conservador à NDR.
De George Washington a George W. Bush
A história dos Estados Unidos está fundada na importância da espionagem. “A necessidade de obter boa espionagem é evidente e não há necessidade de a sublinhar. Tudo o que me cabe acrescentar é que mantenhais toda a questão tão secreta quanto possível. Pois do segredo depende o sucesso de muitos empreendimentos deste tipo, e é pela falta dele que são geralmente derrotados, por muito bem planeados que sejam“, escreveu George Washington em 1777. O homem que mais tarde se tornou no primeiro presidente dos EUA fez também operações de desinformação que ajudou a evitar batalhas contra as tropas britânicas.
Em consequência dos atentados do 11 de Setembro, o Congresso dos Estados Unidos autorizou a chamada “guerra ao terror” do presidente George W. Bush, a qual se apoiou num conjunto de poderes excecionais. O programa de vigilância do presidente autorizou a Agência de Segurança Nacional (NSA) a proceder a escutas sem necessidade de mandados judiciais. Mais tarde soube-se que a NSA teve acesso total a todas as comunicações por fibra ótica, englobando conversas telefônicas, correio eletrônico, atividade na internet, mensagens de texto e inclusive tráfego de rede privada empresarial.
O antigo técnico especializado da CIA, mais tarde consultor da NSA Edward Snowden, decidiu aos 29 anos acabar com a sua carreira (e a sua vida privada) ao expor ao jornalista Glenn Greenwald documentos que comprovavam a extensão da vigilância eletrônica que os Estados Unidos fazem globalmente, mas também aos próprios cidadãos. A reportagem do The Guardian e mais tarde o livro Sem Esconderijo explicam o poder da vigilância através de metadados. Snowden foi acusado de furto de bens públicos, comunicação não autorizada de informações de defesa nacional e comunicação intencional de informações de comunicações classificadas.
Fonte: Diário de Notícias (Portugal)