Soberania de Recursos: A agenda para que a África saia do Estado de Saque
Publicado pelo Dossiê nº 16 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / maio de 2019
Em maio de 2011, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou um trabalho de Burcu Aydin intitulado “Gana: abençoado ou amaldiçoado?” (WP/11/104). O petróleo havia recém sido descoberto na costa do país africano, o que colocou no horizonte a possibilidade de maiores rendas para o país. Aydin questionou se Gana enfrentaria a “maldição dos recursos”, também conhecida como Doença Holandesa. Esta ocorre quando a receita da venda do petróleo entra em um país, valoriza a moeda e causa uma grande crise em outras partes da economia. Ao olhar para 150 países de média e baixa renda, Aydin fez uma importante descoberta: “Os resultados mostram que existe uma armadilha da pobreza para os países pobres, porém ricos em recursos, devido à sua baixa qualidade institucional”. Má governança e gestão macroeconômica, sugere Aydin, diminuem a possibilidade de que as receitas dos recursos naturais sejam usadas para melhorar o desenvolvimento do país. Não há menção, no trabalho do FMI, a outros atores no processo, ou seja, as empresas multinacionais que dominam o negócio de extração de recursos naturais. A literatura pró corporativa explica os problemas na economia de recursos de duas maneiras: 1) má gestão macroeconômica que faz com que as receitas inundem a economia e valorizem a moeda 2) má governança, com corrupção e roubo por parte de funcionários do governo.
Não há questionamentos acerca do papel das empresas multinacionais. Estudos e a mídia ocidental apontam o dedo para as empresas chinesas na África – quase como uma forma de desviar o foco do fato de que as corporações mais poderosas do setor extrativista não são chinesas. As dez maiores empresas multinacionais que operam no continente africano são:
- Anglo-american (Reino Unido)
- Rio Tinto (Austrália)
- Vale (Brasil)
- BHP Billiton (Austrália)
- Barrick Gold (Canadá)
- Freeport-McMoran (EUA)
- Newmont Mining (EUA)
- Teck (Canadá)
- Goldcorp (Canadá)
- Alcoa (EUA)
Ignorar o poder dessas corporações de abocanhar a maior parte das receitas advindas dos recursos extraídos no continente africano é desprezar um problema institucional chave enfrentado pelos países africanos que enfrentam saques em escala colonial e não têm soberania sobre seus recursos.
A postura pró-corporativa do Ocidente sufoca as possibilidades de um futuro. Há pouco espaço para as lutas dos povos do continente contra o excedente extraído de seus países e de sua força de trabalho. Alheio a toda essa literatura está qualquer debate sobre uma saída das relações capitalistas que estruturam a extração de recursos do continente. É nesse contexto que Dossiê no 16 nos interessa as possibilidades trazidas pelo nacionalismo de recursos ou soberania de recursos. Podem essas perspectivas dar ferramentas para construir uma vontade coletiva nacional e popular contra as depredações capitalistas do continente?
Para comentar esses temas relacionados aos saques capitalistas e nacionalismo de recursos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social conversou com Gyekye Tanoh, chefe da Unidade de Economia Política na Rede do Terceiro-Mundo África, com sede em Acra (Gana).
ITPS – Um dos grandes escândalos do século 21 é o saque de recursos do continente africano. Você poderia contextualizá-los?
A África, desde seu passado colonial até o pós-colonial, especializou-se em ser fonte de matérias-primas para o resto do mundo. Grande parte das políticas da região continua a ser dominada por potências estrangeiras e instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. A história da escravidão e do colonialismo até os dias de hoje criou uma paisagem na qual o domínio das empresas estrangeiras na África é imenso, mais acentuado do que em qualquer outra parte do mundo. Uma característica definidora desse domínio é um tremendo desequilíbrio de poder no qual a influência das corporações para explorar o trabalho e os recursos do continente, destruir o meio ambiente e ditar políticas para os governos é gigantesca. Em outros países – digamos, Canadá – uma corporação é forçada a respeitar certas leis, relativamente falando, como regulamentações ambientais, legislação fiscal e trabalhista. Mas a empresa canadense na África opera sem nenhuma dessas restrições. O que é bom para o Canadá não é bom para os Camarões.
Um relatório recente do Banco de Gana ofereceu algumas estatísticas chocantes. Dos 5,2 bilhões de dólares em ouro exportados por empresas de mineração estrangeiras de Gana, o governo recebeu apenas 68,6 milhões de dólares em pagamentos de royalties e 18,7 milhões em impostos sobre a renda das empresas. Em outras palavras, o governo recebeu menos de 1,7% dos retornos globais de seu próprio ouro. Como esses números subestimam o valor das exportações do minério, os retornos para Gana seriam ainda menores. O que é ainda mais chocante é que – com base na mesma análise – a parcela da riqueza que vai para as comunidades diretamente impactadas pela mineração é de 0,11%.
Foi sempre assim? Não há dúvida de que o continente africano tem sido explorado há muito tempo, mas essa estrutura de saque particularmente agravada tem raízes no período da crise da dívida dos anos 1980. Antes disso, na era da libertação nacional, os Estados tentavam proteger suas matérias-primas e obter melhores acordos comerciais. Mas a crise da dívida enfraqueceu o poder de barganha deles. Os governos africanos, no final dos anos 1980/90, foram pressionados pelas instituições financeiras internacionais e pelas corporações transnacionais a ajustar sua postura de barganha. Eles foram instados a promover rapidamente o crescimento liderado pelas exportações com base na teoria da vantagem comparativa. Pouco importava que a “vantagem comparativa” da maior parte do continente fosse a exportação de setores extrativistas, e não do setor industrial (que tem maior potencial de valor agregado). A exportação de matérias-primas não processadas ou pouco processadas gerou receita, que não foi convertida em investimentos internos, mas usada para pagar a dívida.
O que vimos como resultado dessa exportação de matérias-primas e de receita para pagar a dívida foi uma desindustrialização precoce. Em 2003, a Conferência das Dossiê no 16 Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) apresentou esse conceito de desindustrialização precoce para explicar o que estava acontecendo no Sul Global. Referia-se ao colapso da produção industrial antes que ela se integrasse à economia. Se a indústria não se desenvolve, então a classe política recua e obtém recursos por meio da exportação de matérias primas. As economias domésticas retrocederam, o emprego produtivo e mobilização de recursos encolheram e a demanda agregada caiu. As pessoas não tinham condições de economizar ou investir na produção local ou constituir demandas viáveis e conexões de fornecimento para produção em outras partes de suas economias locais. O Estado também não poderia arrecadar recursos suficientes para fornecer bens e infraestrutura sociais. A marginalização estrutural do povo enfraqueceu a capacidade do país em moldar a estrutura política do Estado.
A crescente dependência das exportações de matérias-primas significava crescente dependência de corporações e mercados estrangeiros. Isso foi exigido pelo Banco Mundial e consagrado por um documento publicado em 1992. Esse documento afirma claramente que os governos devem mudar sua política “em direção a um objetivo primário de maximizar as receitas fiscais da mineração a longo prazo, em vez de buscar outros objetivos políticos como o controle dos recursos e o incremento do emprego” (Banco Mundial, Estratégia para a Mineração Africana, 1992). Em outras palavras, os governos deveriam simplesmente exportar matérias-primas e permitir que empresas de mineração estrangeiras roubassem recursos. Não deveria haver nenhuma tentativa de “controlar recursos” ou criar empregos.
ITPS – Assim como o Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais pressionaram os governos do continente a exportar matérias-primas e não se preocuparem com os objetivos mais amplos do desenvolvimento, uma dicotomia interessante se abriu. Havia uma nova sugestão de que “países ricos em recursos” tinham “más governanças”. Em outras palavras, que o problema da corrupção não estava no sistema como tal, mas sim na classe política e no Estado. Parece que esta é outra maneira de minar quaisquer forças e instituições sociais que possam pressionar para democratizar a política do Estado.
A partir dos anos 1990, o termo “governança” foi instalado no coração do discurso do desenvolvimento. Tudo passou a ser sobre “boa governança” e sua importância. Há algo muito superficial nesse discurso que ignora, e até obscurece, as profundas dinâmicas estruturais que levam um país a se tornar meramente exportador de matérias-primas e que dão às empresas transnacionais o poder de fixar preços e determinar a parte da receita a ser repassada aos Estados. Não é a “corrupção” dos funcionários do governo que traz a Gana apenas 1,7% das receitas do ouro para os cofres do Estado. Todo o sistema que foi estabelecido desde os anos 1980 para forçar os países a dependerem das exportações de matéria-prima e se tornarem dependentes de compradores estrangeiros é o que deixa nações como Gana com uma quantidade tão minúscula da riqueza retirada de suas terras. A “boa governança” não vai resolver isso, a menos que “boa governança” também se refira à dinâmicas estruturais profundas.
O discurso dominante sobre governança de recursos – a linguagem da “boa governança” – tem vários impactos profundamente distorcionantes. Apenas os comportamentos aberrantes dos funcionários públicos devem ser vistos como corrupção. No entanto, é evidente que a falta de recursos disponíveis para instituições públicas responsáveis torna impossível criar ou sustentar mecanismos domésticos anticorrupção significativos. O poder esmagador da corporação transnacional torna virtualmente impossível aplicar normas genuínas de governança democrática e desenvolvimentista nessas empresas quando operam em Gana, Zâmbia ou Papua Nova Guiné.
Se a discussão for para os números baixos de receita, então, as instituições financeiras internacionais falam de choques naturais do mercado. Há, dizem eles, booms e quedas nos preços de commodities. Mas isso é insuficiente para explicar. Mesmo em tempos de booms – acreditamos – as receitas são minúsculas. É nesse momento que podemos ver a economia política da extração de forma muito clara. Um antídoto para o ciclo de expansão e recessão, que existe, é que os recursos públicos sejam substantivamente dedicados a melhorar as atividades produtivas dos trabalhadores e as capacidades produtivas dentro da economia. Isso é possível em Estados ricos em recursos que têm economias diversificadas, autonomia em relação à dominação imperial e instituições socialdemocratas conquistadas pelas lutas dos trabalhadores. Esses Estados criam Fundos de Riqueza Soberana (FRS) a partir de suas receitas de exportação de recursos naturais. A Noruega é um exemplo muito citado. Esse deve ser um requisito mínimo para todos os países dependentes de recursos naturais: economizar em momentos de excesso e usar os FRS em tempos de escassez. Mas durante um boom de commodities, há ainda uma receita insuficiente para construir infraestrutura e suprir as necessidades básicas da população. Esperar que Zâmbia ou Gana construam esse tipo de fundo soberano a partir de receitas insignificantes e de uma base econômica tão estreita, tão completamente dependente dos mercados e capitais estrangeiros, é irreal.
Na era da financeirização, a maioria dos FRS investem principalmente em títulos financeiros. Esse foi o caso de Angola, em que uma grande fatia foi para a compra de títulos financeiros, especialmente de Portugal, seu antigo governante colonial. Angola perdeu muito com esses “investimentos” quando Portugal se envolveu na crise financeira da zona do euro depois de 2008. Em vez de investir nos mercados financeiros, Estados como Angola e Nigéria poderiam ter feito investimentos diretos na produção através de bancos de desenvolvimento. Esses bancos forneceriam crédito para cooperativas agrícolas, industriais e outras iniciativas que gerassem emprego e bens e serviços para satisfazer necessidades reais. Mas para isso, é necessário que os Estados controlem o setor financeiro e tenham em mente o bem-estar público.
A linguagem da “boa governança” é usada para deslegitimar qualquer aspiração de nacionalização e criação de um monopólio do Estado. Um fato notável é que a indústria de cobre da Zâmbia foi melhor para o país durante o período do monopólio estatal de 1970 a 1998. O retorno para o tesouro nacional da indústria do cobre após o período de monopólio do Estado passou a ser apenas 3% do que era nos velhos dias do monopólio. Esse é um fato desconfortável para os defensores da privatização. O discurso da “boa governança” sugere que os Estados de países em desenvolvimento – como a Zâmbia – são profunda e congenitamente corruptos. A única salvação, dizem eles, é que o país adote regimes de livre mercado. Mas, claro, o resultado foi terrível. “Déficits do governo” ou “má governança” não explicam a desindustrialização da Zâmbia nem explicam a reversão da diversificação econômica. Como a Zâmbia está agora totalmente dependente das exportações de cobre, os movimentos internacionais de preços desse metal têm um efeito preponderante e distorcido na taxa de câmbio do kwacha. Essa distorção e a receita limitada das exportações de cobre têm impacto sobre a competitividade e viabilidade de outras exportações, como resultado das flutuações dos kwacha. Além disso, as flutuações afetam a área social. Um estudo feito em 2018 mostrou que as mudanças nas taxas de câmbio oscilaram entre -11,1% e +13,4% no período entre 1997 e 2008. A perda de fundos de doadores para o Ministério da Saúde na Zâmbia foi de 13,4 milhões de kwachas ou 1,1 milhão de dólares por ano. Devido ao colapso do kwacha entre 2015 e 2016, o gasto com saúde per capita na Zâmbia caiu de 44 dólares (2015) para 23 dólares (2016).
A corrupção sugere que resultados perversos são decorrentes de quebra de regras em vez de ser o resultado do funcionamento normal do sistema. Tudo o que descrevi é baseado no funcionamento normal. Quando o Estado permite que corporações estrangeiras tomem controle sobre a extração de matérias-primas e quando a economia se torna dependente da exportação dessas matérias-primas à custa de um projeto de diversificação, o resultado será menos receita para o povo e uma economia em crise a longo prazo. O discurso sobre “boa governança” evita o funcionamento normal.
O discurso de governança de recursos só se sustenta na imaginação. Primeiro, obtemos uma desindustrialização prematura que leva à terrível realidade da pobreza e do desespero. Então, temos o surgimento do discurso da corrupção para explicar a pobreza e a desesperança. Mas não é a corrupção que cria essa situação. É a estrutura que enfraquece as capacidades domésticas e o planejamento econômico democrático e participativo que é o que melhor pode assegurar a responsabilidade e a eficácia do Estado. Essa estrutura põe de lado o projeto de diversificação e industrialização e entrega as matérias-primas para empresas multinacionais estrangeiras. Uma vez que essa estrutura está escondida, então pode-se culpar o suborno parasita mais mesquinho como responsável pela miséria. É isso que esse discurso de governança de recursos faz.
ITPS – Como você avalia a Iniciativa de Transparência das Indústrias Extrativistas, da Carta dos Recursos Naturais e da Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (NEPAD, sigla em inglês)? Parece que cada um desses, de formas diferentes, são essenciais para a proliferação do discurso da boa governança para disciplinar os movimentos políticos e as instituições do Estado.
Desses três, a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África – ou NEPAD – vem em primeiro lugar. Foi adotado em 2001 pela União Africana como um parâmetro político para o continente. A NEPAD promoveu a ideia de que a democracia e a boa governança são as condições prévias para o desenvolvimento. A estrutura do saque ficou mais uma vez fora da discussão. A Iniciativa de Transparência nas Indústrias Extrativas (ITIE) surgiu em 2003, após a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Johanesburgo (África do Sul). A Carta dos Recursos Naturais surge a partir desses – particularmente do comitê de direção da União Africana para a NEPAD – em 2011. Todas essas iniciativas seguem a mesma lógica. Eles não têm como objetivo gerar engajamento real acerca da distribuição de rendas ou da propriedade e controle de produção – os problemas fundamentais para o continente africano. Nem questionam as relações econômicas e políticas que estão por trás do saque. Sobre esse último ponto, se questionassem de fato essas relações, teriam de prestar atenção à distribuição desigual de benefícios e à falta de compensação para os donos naturais dos recursos do subsolo e do trabalho que de fato criam produtos úteis ou valiosos a partir dessas riquezas. Eles também podem ter que discutir as prioridades de um país e o mal desenvolvimento que ocorre quando um governo é reduzido a apenas o canal de exportação de matérias primas.
É importante ressaltar que a Carta de Recursos Naturais, embora adotada pela União Africana, foi elaborada por intelectuais das instituições financeiras internacionais. Esses intelectuais incluem Paul Collier, do Banco Mundial, e Anthony Venables, professor de economia em Oxford. Em 2013, a National Resource Charter e o Revenue Watch Institute foram incorporados para formar o Natural Resource Governance Institute, sediado em Nova York. Este é dirigido por Daniel Kaufmann, que trabalhou no Banco Mundial, e se dedica a promover a Carta de Recursos Naturais.
Para essas iniciativas, os valores de transparência e prestação de contas são fins autossuficientes. Se o seu governo é transparente, então isso é bom. Transparência e prestação de contas não são propostas como meios para chegar a outro fim. Se assim fosse, qual seria então o fim, para além do genérico termo desenvolvimento sustentável? O fim seria um governo capaz de fornecer os bens sociais necessários ou uma população que tenha suas necessidades atendidas e que possa, portanto, brilhar?
É importante sublinhar que “transparência”, nesse contexto, tem o seu próprio significado específico. Significa que um governo deve alinhar suas políticas aos princípios básicos das instituições financeiras internacionais. Esses princípios incluem regras relacionadas ao comércio para a liberalização do investimento e fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual. Se um governo aderir a esses princípios, então é um governo transparente. A linguagem do combate à corrupção foi muitas vezes utilizada pelo Banco Mundial e pela Transparência Internacional contra governos que não estavam preparados para se render a esses princípios. Tais governos que tentaram manter alguma medida de soberania foram rotulados como “mal governados”. A propósito, nenhum país “rico em recursos” – como Austrália e Canadá – era “mal governado”, embora haja escândalos nesses países. O governo canadense está no meio de um escândalo sobre propinas pagas pela SNCLavalin (uma empresa canadense) a autoridades líbias. A Transparência Internacional diz que o Canadá é 9º entre os dez países menos corruptos (a Dinamarca lidera, a propósito). A Líbia, entretanto, está em 170º de uma lista de 180 (a Somália seria o país mais corrupto). O que faz com que o Canadá, cuja empresa é quem suborna seja menos corrupto que a Líbia, cujo funcionário recebe o suborno, é parte da maneira como a “transparência” opera em nossos dias.
A NEPAD – enraizada no continente africano – promove o trabalho da EITI e NRC à custa de instituições e processos decisórios africanos autônomos. Um exemplo de um desenvolvimento liderado por africanos é a Visão Mineira Africana, que foi adotada em fevereiro de 2009 pela União Africana. Em outubro de 2008, ministros africanos que trabalham nas áreas de desenvolvimento de recursos minerais se reuniram para redigir esse documento. Um reflexo da frustração foi que uma região com grande riqueza em recursos poderia ser, ao mesmo tempo, muito pobre. A questão central para a Visão Africana de Mineração é a convocatória para integrar a questão da mineração em uma agenda de desenvolvimento mais ampla. Esses aspectos da Visão Africana de Mineração foram também, em parte, os resultados das lutas populares nas comunidades e dos trabalhadores dos setores de recursos. As estruturas orientadas pelo Ocidente – como a Carta de Recursos Naturais – anulam as iniciativas conduzidas por africanos. Os parâmetros políticos e a credibilidade institucional dos processos impulsionados pela África – por mais limitados que sejam – são minados pelo domínio intelectual e político dos parâmetros definidos pelo Ocidente. Essa suposta escassez intelectual fornece mais evidências de que “países em desenvolvimento ricos em recursos” são automaticamente “mal governados”, pois, afinal, eles nem sequer têm uma estrutura para lidar com a “corrupção”. Essa assim chamada ausência justifica a ajuda externa da “comunidade internacional”, ou seja, os Estados ocidentais e suas instituições, para definir as normas de governança e dar legitimidade para mobilizar comunidades subnacionais e atores da sociedade civil para a implementação da política. O objetivo da EITI e da NRC é garantir que os fundamentos do sistema – o saque – permaneçam inalterados ou que sejam perpetuados e ampliados.
ITPS – Qual seria uma alternativa ao paradigma da “boa governança”? Do que se trata ideias como “nacionalismo de recursos” e “soberania de recursos”?
Uma grande parte das matérias-primas na África é de propriedade de um pequeno grupo de corporações poderosas, mais grave é o fato de que a maioria delas também são empresas estrangeiras. Essas empresas agem com todo o peso do poder de seus governos. A Barrick Lumwana, por exemplo, é uma das quatro empresas estrangeiras que respondem por 80% da produção de cobre da Zâmbia. A Barrick Lumwana é uma subsidiária da Barrick Gold. O nome é enganoso. Lumwana é uma cidade na Zâmbia. A Barrick Lumwana apenas dá à Barrick Gold Corporation, uma empresa canadense, um nome na Zâmbia e a faz parecer menos estrangeira. A Barrick Gold é totalmente apoiada pelo governo canadense em suas operações na Zâmbia.
Durante o boom global das commodities, de 2000 a 2014, a América Latina e a África experimentaram o impacto do aumento dos preços das matérias-primas. Mas as duas regiões a experimentaram de maneiras radicalmente diferentes. No caso da África, devido ao controle quase monopolista que as corporações têm sobre os recursos naturais do continente, os benefícios da economia natural eram marginais para os governos e populações africanas. Os benefícios foram distorcidos em favor de empresas estrangeiras e seus respectivos países. Os vastos benefícios do boom das commodities foram absorvidos pelas empresas estrangeiras e por uma pequena elite local. A experiência do continente africano durante o último boom de commodities mostra que é necessário e lógico que um país rico em recursos busque o controle nacional completo sobre seus recursos naturais. É uma resposta razoável a uma realidade que é profundamente injusta e destrutiva.
O primeiro aspecto da reforma deve ser as assimetrias econômicas que surgiram como resultado da atual cultura de captura de recursos. Há três problemas imediatos aqui: as disparidades salariais, também uma expressão de superexploração; incentivos fiscais; fuga de capitais através de repatriamento de lucros e offshores. A composição e estrutura do emprego nas indústrias extrativas é evidente. Posições altamente qualificadas são normalmente realizadas por expatriados, principalmente do Ocidente. As diferenças salariais entre os expatriados e os africanos são enormes; nas empresas de mineração, isso às vezes chega a 600 para 1. De fato, nos setores de exportação, estamos testemunhando o crescimento do fenômeno da “superexploração”, que é pagar pelo trabalho uma quantia insuficiente para a sobrevivência do trabalhador. E como a tecnologia é monopolizada pelas transnacionais, a única maneira de as exportações locais permanecerem competitivas nos mercados internacionais é fazer uma drástica deflação doméstica, que afeta principalmente a mão-de-obra local e outros grupos de produtores na cadeia de valor global.
A outra questão é o saque do sistema tributário. Além das isenções fiscais que todos os investidores estrangeiros recebem – como um período de dez anos de férias fiscais, bem como uma taxa mais rápida para amortizar as perdas de capital -, temos algo chamado lista de mineração. Essa lista inclui tudo o que a mineradora importa do exterior, como papel higiênico, lenços de papel, água mineral e até creme dental. Todas essas coisas são isentas de impostos. Muitas das coisas que não têm nada a ver diretamente com o setor de mineração entram no país sem nenhum imposto. O imposto sobre esses bens, se o valor for agregado, pode ser considerável para uma economia com reservas cambiais fracas.
Portanto, seja a exploração salarial, incentivos fiscais, participação nos lucros ou nas receitas, os benefícios associados à extração de recursos naturais são grotescos e altamente hostis para os países que têm recursos naturais e para grande parte de sua população. Desse ponto de vista, é válido buscar o nacionalismo de recursos como um projeto político. Temos que ser precisos sobre o nosso senso de nacionalismo de recursos. No exemplo da mineração, poderia incluir a completa nacionalização de minas ou incluir reformas mais brandas, como a imposição de impostos mais altos a empresas estrangeiras. Também poderia incluir um salário mínimo mais alto para os trabalhadores, o que se traduziria em uma maior parcela de recursos advindos da atividade mineradora permanecendo nas comunidades onde estão essas riquezas. Os países também poderiam insistir em royalties mais altos, baseados no preço final de mercado, em vez de nos preços estabelecidos – geralmente mais baixos. Essas várias intervenções políticas formam a base do nacionalismo de recursos.
Mas acho importante destacar aqui alguns equívocos que podem surgir. Em primeiro lugar, é preciso entender que o problema do continente não é apenas a corrupção, más práticas corporativas em relação a uma norma exemplar. Toda a forma de mineração – dentro do sistema capitalista – é desenvolvida em torno da exploração da força de trabalho, a criação de mais-valia que é então acumulada pelo capital à medida que os trabalhadores voltam para casa com uma parcela cada vez menor do excedente. Em segundo lugar, a implicação disso é que não se pode assumir que o nacionalismo de recursos é meramente um projeto político centrado no Estado. Trabalhadores – mineiros, nesse caso – são agentes chave de mudança, construindo suas próprias lutas contra o funcionamento normal do capitalismo. As lutas dos trabalhadores enriquecem a sociedade, levantando questões de etnia, gênero e outras formas de opressão nos debates em torno de que tipo de sociedade se quer produzir e viver. A luta de classes dentro de nossas sociedades é central para o desenvolvimento do projeto de soberania de recursos, pois, de outro modo, a questão repousa sobre um debate entre uma burguesia imperialista e uma burguesia nacional sem levantar a importante questão do empobrecimento dos trabalhadores e da sociedade em geral.
Eu gostaria de expandir a ideia do nacionalismo de recursos. Não se refere apenas a minerais, gás e petróleo. De incluir água e terra, bem como as condições de produção agrária. Na África austral, a questão da terra é central, como vimos no Zimbábue e na África do Sul. A questão foi colocada sobre a mesa pelos despossuídos, seja por meio de ocupações de terras, boicotes ou greves. Discussões sobre a soberania de recursos são muito úteis neste contexto. Elas permitem uma ampliação da consciência política de todos os setores da sociedade. A estrutura do nacionalismo de recursos não vê a questão dos recursos do ponto de vista de um agricultor em uma aldeia remota cujas árvores estão sendo derrubadas por uma corporação e buscam compensação. Aquele agricultor deveria receber uma indenização, mas esse não é o todo da estrutura do nacionalismo de recursos, que inclui tanto o agricultor cujas árvores estão sendo derrubadas quanto os pescadores a quem é negado acesso ao uso de rios ou partes do mar, bem como aos trabalhadores agrícolas que não têm irrigação. A eles todos são negados o uso de recursos cruciais, que muitas vezes são entregues às corporações. As lutas populares por compensação e por irrigação são trazidas para o mesmo quadro, permitindo que as lutas desenvolvam estratégias comuns a partir de uma análise sistemática da desapropriação. É claro que o nacionalismo de recursos pode trazer benefícios materiais imediatos para a classe trabalhadora e o campesinato que vivem em países ricos em recursos.
Quaisquer que sejam as limitações do nacionalismo de recursos, e existem muitas, é uma estrutura importante para o continente, é uma reação, uma primeira reação contra a globalização neoliberal, e é importante que incentivemos as discussões sobre ela.
Mas acho que precisamos estar bem cientes das limitações do nacionalismo de recursos, particularmente se ele obscurecer os interesses de classe em jogo. Se você tem uma lente norte-sul estreita, então há uma tentação de ser cego para a exploração do trabalho no Sul, onde uma burguesia opera contra os interesses da classe trabalhadora e do campesinato. Uma análise de classe muito mais cuidadosa é necessária.
Para dar um exemplo das armadilhas, veja o caso do Congo. As empresas de mineração, assim como os governos belga, britânico e norte-americano, se opuseram totalmente à ala do movimento nacionalista de Patrice Lumumba, não apenas pelo que consideravam uma possível ameaça de nacionalização dos recursos, mas também pela crescente onda de lutas da classe operária e dos mineiros que catapultou Lumumba e o Movimento Nacional Congolês em meio a uma série de organizações pró-independência fragmentadas e sectárias. No final de 1959, Lumumba foi preso, mas em seis meses ele seria o primeiro-ministro de um país vasto, rico em recursos e recém-independente. E é aí que a questão da classe se torna importante. Moïse Tshombe, rival de Lumumba, era o líder da província de Katanga, onde ficava a maior parte da riqueza dos recursos do Congo. Tshombe conduziu uma agenda nacionalista étnica que lhe valeu o voto em Katanga e permitiu-lhe – numa suposta plataforma de nacionalismo de recursos – reivindicar a secessão. Lumumba foi preso, assassinado, e o nacionalismo de Tshombe se dissolveu em total capitulação ao imperialismo. Um termo desenvolvido para definir a destruição total no Congo sob o sucessor de Tshombe – Mobuto-le mal Zairois, a Doença do Zaire, significando não apenas a corrupção pessoal de Mobuto, mas o roubo das riquezas do Congo (então Zaire) para as corporações ocidentais.
Ao mesmo tempo em que as esperanças do Congo se dissolviam em saques, os mineiros de estanho bolivianos e os trabalhadores agrícolas sem-terra lideraram uma luta – incluindo uma histórica marcha da fome em La Paz, capital da Bolívia – que derrubou o governo. Essa foi a Revolução Nacional Boliviana de 1952. O novo governo implantou a reforma agrária e controle sobre as minas, mas a pressão econômica levou ao colapso de todas as novas instituições uma década depois. A memória da Revolução permaneceu, porém, e foi despertada no novo século – em 2000 – quando o povo de Cochabamba lutou contra a privatização da água. Mais uma vez, os trabalhadores dos campos e minas, muitos deles de comunidades indígenas, se levantaram para criar um genuíno dinamismo de baixo para cima baseado em um nacionalismo de recursos da classe trabalhadora. Em sua agenda estavam os direitos à água, mas também os direitos dos cocaleiros e trabalhadores do petróleo, os direitos à cultura e à representação. Esse amplo movimento de classe a partir de baixo definiu a próxima fase da história boliviana. Um dos países mais fracos da América Latina foi capaz de promulgar as mudanças de maior alcance no setor de recursos por causa desse movimento classista.
Devemos ser corajosos e intransigentes em relação ao nosso compromisso com um movimento classista que defenda a natureza e os direitos comuns das pessoas aos recursos. Precisamos formular uma agenda alternativa de governança de recursos que seja definida por um projeto de desenvolvimento democrático e de classe que não seja sectário, mas internacionalista.
Fonte: Dossiê nº 16 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / maio de 2019