União Europeia: Mais uma ‘armadilha da austeridade’ em meio à pandemia
Grande parte da mídia europeia noticia como “histórico” e mostra os líderes europeus congratulando-se pelo acordo alcançado nesta semana para o “resgate” de países mais afetados pela crise precipitada pela pandemia de Covid-19. Entretanto, o pacto firmado entre os chefes de Estado e Governo dos 27 membros da União Europeia está longe de ser a salvação anunciada.
Por Moara Crivelente*
Já se classifica também de “histórica” a recessão que a União Europeia (UE) enfrenta, com uma quebra de 15% do PIB estimada pelo Banco Central Europeu (BCE) ainda em abril. A esta situação a proposta da Comissão Europeia, divulgada em maio, pretendia responder com três mecanismos: o SURE, apresentado como “apoio na crise pandêmica”, um fundo de garantia para trabalhadores e empresas, de 540 bilhões de euros; o programa Next Generation EU, o “reforço temporário” de 750 bilhões de euros, “para reforçar o orçamento da UE com novos financiamentos conseguidos nos mercados financeiros para 2021-2024”; e o Quadro Financeiro Plurianual de 2021-2027 de 1,1 trilhão de euros. Somas-se-ia ainda um conjunto de mais três programas de financiamento de emergência de até 21 bilhões de euros para 2021-2027.
Quatro dos chamados “países frugais”, Áustria, Holanda, Dinamarca e Suécia vinham defendendo um plano ainda mais severo para o Fundo de Recuperação, de 500 bilhões de euros compostos majoritariamente por empréstimo, por dívidas e um cabresto apertado aos países mais afetados pela crise esperada, mas catalisada pela pandemia.
Em maio, aquela contraproposta viera da Áustria, em resposta ao pacote proposto por França e Alemanha, que seria financiado por emissão de dívida pela Comissão Europeia e distribuído a “fundo perdido”, através de subvenções. Trata-se do primeiro orçamento da UE pós-Brexit e a nova configuração já trazia embates mesmo sem contar com a pandemia.
Já nesta segunda-feira (20), o Conselho Europeu saiu de uma sessão de cinco dias de duras negociações com um pacote de 750 bilhões de euros, com a repartição do fundo no centro da problemática: foi marcante a redução dos 500 bilhões inicialmente propostos em subvenções para os 390 bilhões aprovados e o restante, a ser destinado via empréstimos. O plano deverá ser votado pelo Parlamento Europeu (PE) na quinta-feira (23). Segundo a Euronews, também avultam cortes drásticos no orçamento da UE em pesquisa e inovação (o programa Horizonte 2020 passa de 13 para 5 bilhões até 2027), na chamada “transição justa” para a produção de energia limpa (de 30 para 10 bilhões), no investimento rural (de 15 para 7,5 bilhões) e na saúde (o programa EU4Health passa de 9,4 para 1,7 bilhão de euros).
De acordo com o comissário europeu para o Orçamento, o austríaco Johannes Hahn, em entrevista de junho à mesma Euronews, cada país europeu exporta dois terços do seu produto a outro país europeu, pelo que a dita interdependência demanda o apoio —por exemplo, o maior destino das exportações da Áustria é a Itália, que enfrenta graves dificuldades. Mas Hahn diz ainda que a proposta da Comissão Europeia não era oferecer “almoço grátis” aos países em necessidade, lembrando que o pacote vem atrelado a reformas.
Grandes economias como a italiana, a francesa, a alemã e a espanhola serão as principais recipientes dos recursos do fundo, recordando-se que a França é, por exemplo, a maior concedente de subsídios agrícolas aos seus próprios agricultores. À presidência do Conselho, a Alemanha, recordava o Partido Comunista Português (PCP) no início do mês, envidou esforços por um plano que a beneficiasse, devendo receber o dobro que Portugal em apoio. A ponderação vinha na análise sobre as expectivativas para a presidência alemã: sua prioridade seria o mercado único, com um “alargamento e aprofundamento, que num quadro de agravamento das desigualdades entre estados tornará a mirífica livre concorrência ainda mais falseada, criará as condições para uma ainda maior concentração de capital à escala europeia.”
Reagindo à notícia do plano aprovado, o PCP denunciava a repartição entre empréstimos e subvenções de um fundo já extremamente insuficiente, criando “mecanismos que consagram uma interferência acrescida da UE na execução das opções de investimento e noutras decisões soberanas dos Estados-Membros. Trata-se de uma inaceitável pressão adicional para associar os instrumentos agora aprovados —Orçamento e Fundo de Recuperação— à imposição do receituário neoliberal da UE, de que é parte integrante o ambicionado aprofundamento de ‘reformas estruturais’, de que são exemplo, o ataque a direitos laborais e aos sistemas públicos de segurança social”. O mesmo denunciou o Partido Comunista Francês (PCF), que classificou o plano de recuperação de subdimensionado e supercondicionado: “Tem um caráter antidemocrático, reforçando o peso da Comissão Europeia, particularmente em matéria fiscal. Além disso, permite a vários países reduzir sua contribuição para o orçamento europeu”.
À proposta franco-alemã de maio o grupo de esquerda no Parlamento Europeu GUE/NGL também classificara de insuficiente para responder aos inéditos desafios inéditos sociais e ecológicos. O PE havia demandado cerca de 2 trilhões de euros para uma recuperação que conduzisse a mudanças importantes. A co-presidenta do GUE/NGL, Manon Aubry, do partido França Insubmissa, acusara o plano apresentado em abril de vir a ser um mero “exercício de relações públicas, dando com uma mão e tirando com a outra”. E questionava: “Qual o sentido deste Plano de Recuperação quando o dinheiro ‘extra’ é na verdade tirado do orçamento da UE (…)? Qual o sentido do debate entre empréstimos e subsídios se os Estados membros e, consequentemente, os cidadãos europeus, terão de pagar a conta no final?” Aubry fazia referência à “austeridade” e às privatizações em meio às condições macroeconômicas novamente impostas em troca do apoio no programa Next Generation EU, mostrando que a UE “não aprendeu nada com a crise financeira de 2008 e o tremendo sofrimento que suas políticas impuseram aos cidadãos.” O mesmo pontuou o co-presidente do GUE/NGL Martin Schirdewan, do partido alemão DIE LINKE (A Esquerda).
A reivindicação da esquerda no PE é “ambição radical”: que o BCE cancele as dívidas soberanas e empreste dinheiro diretamente aos Estados membros, para protegê-los da especulação no mercado, e que a UE aumente a proporção dos seus próprios recursos para financiar um verdadeiro new deal verde e social, taxando transações financeiras e corporações globais, de acordo com o portal do GUE/NGL.
Mas a contraproposta dos quatro “países frugais” veio embrulhada na conhecida retórica “pedagógica”, gestora, segundo a qual os países mais afetados pela crise, supostamente mais relaxados ou indisciplinados em sua gestão econômica, não podem ser “beneficiados” por leniência com subvenções garantidas às custas dos mais ricos europeus.
Ressalte-se porém que aqueles países que mais aportam ao fundo de recuperação serão enormemente beneficiados pelos descontos que receberão de suas contribuições à UE —que, para alguns analistas, pode significar, no fim das contas, que quem contribui mais com o orçamento europeu é, paradoxalmente, o grupo de países mais pobres. Ficou a cargo das condições dos ditos “países frugais” sobre a mesa de negociações do pacote definir que setores das economias nacionais serão beneficiados pelo fundo, como serão os cumprimentos do orçamento mandatado e que reformas seriam requeridas aos países.
Para a esquerda, que tem muito vivo na memória e nas batalhas ainda travadas o legado desastroso dos pacotes impostos pela troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) para lidar com os impactos das crises de 2008-2012, o que está estampada nas manchetes é um projeto neoliberal de UE e a constante ingerência nas soberanias nacionais. Há tempos se denuncia um projeto federativo que rouba aos que precisem de apoio nas emergências da sua independência. Assim, fica mais uma vez desvendada a farsa da solidariedade europeia enquanto nada menos que uma pandemia traz não só sofrimento imediato como também catalisa uma crise esperada e que a cada momento parece dilapidar um pouco mais do invólucro com que se promove este “projeto europeu”, desvelando a sua natureza.
* Moara Crivelente é cientista política e membro da Comissão de Relações Internacionais da Secretaria de Relações Internacionais do PCdoB