“Você está roubando a minha casa!”
É justo que a senhora seja expulsa para que o colono se instale?
Salem Nasser*
Já passam de 200 os mortos na Palestina. Quase a metade é de crianças e mulheres. As imagens dessas crianças e de seus corpos desmembrados são duras demais para contemplar, mas ainda assim nos fazem prisioneiros, impotentes. Você talvez não as tenha visto —ou então tenha fugido delas, como faço eu, para não sucumbir.
Mas não é daquilo em nós que faz invisíveis as vítimas que falo hoje. É outra a cegueira que quero acusar.
A cada explosão de violência na Palestina (2008-2009, 2012, 2013) repete-se uma dinâmica tão previsível quanto exasperante. Primeiro, as notícias aparecem quando os fatos já correm há alguns dias. Logo, no tom, as notícias e as análises parecem sustentar um equilíbrio entre os dois lados, como quem quer ser —e parecer— justo.
Na essência, no entanto, justificam e naturalizam a posição de Israel. Finalmente, alguns, como eu, denunciam os crimes que tomam os civis por alvos, propositalmente. Convido, para confirmação, a uma leitura fina. Olhe os números e veja as imagens; coragem!
Essas vozes de denúncia não conseguem quebrar a narrativa oficial. Esta grassa entre nós por razões que são muitas.
Numa cena que simboliza o estopim imediato da violência, uma senhora palestina diz ao colono judeu: “Você está roubando a minha casa!”. Ele, com seu sotaque americano, responde que, se não for ele a roubar, um outro o fará. Em desespero, ela tenta articular: “Não, ninguém pode roubar a minha casa!”.
A pergunta é: você, o que acha? É justo que essa senhora seja expulsa de sua casa para que o colono recém-chegado dos Estados Unidos nela se instale? Na verdade, essa expulsão é apenas um passo dentro de um amplo e longo processo de limpeza étnica da Palestina. E essa limpeza era tida como uma necessidade, reconhecida como tal pelos fundadores, para que Israel pudesse ser um Estado exclusivamente judeu.
Então, a pergunta agora é: você acha justo que colonizadores vindos de vários cantos do mundo expulsem e desterrem milhões de palestinos, os que já foram expulsos e os que ainda o serão, habitantes da terra há séculos, se não milênios? Ou que os palestinos que restarem vivam sob ocupação e sob apartheid —ou, no melhor dos casos, na condição de cidadãos de segunda classe porque não judeus?
Antes que você julgue, no entanto, pergunto: já tinha visto o vídeo da senhora e de seu algoz colono? Sabia que um outro estopim da violência foi a repressão feroz contra os palestinos que iam rezar na Mesquita de Al-Aqsa —um outro modo de afirmar a soberania israelense exclusiva sobre Jerusalém? Sabia que a Human Rights Watch enxergou o apartheid e o denunciou?
O mais provável é que você tenha tido notícia do que acontecia apenas quando a violência atingiu Israel —“por parte de um grupo radical”, você terá lido. A partir daí, ficou sabendo tudo que o governo israelense disse e quase nada do que disseram os palestinos.
A ironia que quero apontar, talvez, seja esta: se não fossem os foguetes do Hamas, o pior de todos os crimes, o da limpeza étnica da Palestina, seguiria sendo metodicamente e profissionalmente cometido sem que nada incomodasse os criminosos.
Atenção! Nem mesmo a violência chega a revelar a existência do crime, que continua ausente da narrativa. Ele segue sendo uma verdade desconhecida, substituída por mentiras várias. Segue sendo uma grande injustiça.
Talvez não possamos nada pelos palestinos. Mas faria bem à nossa sociedade, hoje mais do que nunca, que soubéssemos reconhecer o mal, a injustiça, a exclusão —e contra eles lutar.
* Professor de direito internacional da FGV Direito SP – Fonte: Folha de S. Paulo