Súmula Internacional

Súmula Internacional 71 – África e a nova luta contra o colonialismo e o neocolonialismo

“Bom dia, África”, diz a inscrição / Oleg Maslyakov e Efim Tsvik

A presença sino-russa na África é forte e não é de hoje. Ela tem as marcas (principalmente) da União Soviética e dos países socialistas (China inclusive) na dura luta dos povos africanos contra o colonialismo. Na segunda metade dos anos 1980 eu, então um comunista neófito, tinha um amigo concluindo o curso de oficial da marinha brasileira no Colégio Naval. Certo dia ele me convidou para umas cervejas com um aspirante a oficial de um país africano em visita ao Brasil. Qual não foi minha surpresa quando, durante a conversa, o rapaz se revelou marxista e anti-imperialista. Não lembro o nome do jovem, nem sua nacionalidade, mas nunca esquecerei a grande convicção libertária que movia o futuro oficial africano. A coragem inaudita dos independentistas africanos contou sempre com o incentivo dos países do campo socialista e a lembrança disso é imperecível. Porém, apesar de em grande parte derrotadas na luta anticolonial, as antigas potências coloniais continuaram a desempenhar papel político decisivo, manobrando sempre no sentido de manter os países africanos em condições neocoloniais. Com o fim do campo socialista e o estabelecimento do poder unipolar dos EUA pós-guerra-fria, estreitou-se a margem de manobra das ex-colônias que visavam afirmar as respectivas soberanias e desbravar seus caminhos próprios de desenvolvimento.

África tem hoje maior margem de manobra

No entanto, recentemente os EUA e a Europa têm denunciado a crescente “influência da Rússia e da China” no continente africano. E de fato existe um novo cenário. Para ele contribuí decisivamente a China, mas a Rússia também voltou a desempenhar importante papel depois de se recuperar da destruição da era Yeltsin. A margem de manobra para os africanos torna a alagar-se e eles não querem perder (mais) tempo, o que representa de fato uma ameaça a mais para o imperialismo. Um relatório do Banco de Gana de 2019, citado pelo Dossiê nº 16 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, informa que dos 5,2 bilhões de dólares em ouro exportados por empresas de mineração estrangeiras em Gana, o governo ganês recebeu menos de 1,7% de retorno do seu ouro. A França, por exemplo, nos tempos “áureos”, chegou a ter 20 países africanos como colônias. Entretanto, mesmo com o fim da colonização, o governo francês continuou interferindo abertamente nos assuntos políticos dos países emancipados, sempre visando garantir que o poder na ex-colônia estivesse alinhado com os interesses da França. Assim, até 2018 era a França quem emitia a moeda e controlava a política monetária de 14 ex-colônias africanas. Entre 1965 e 2015, golpes de estado ocorreram em dezesseis ex-colônias francesas na África. Vamos citar dois casos: em 1º janeiro de 1966, David Dacko, presidente da República Centro-Africana é deposto e morto. Dois dias depois é a vez de Aboubacar Sangoulé Lamizana, presidente de Burkina Faso, ter o mesmo destino. Em comum, existia o fato de que os dois presidentes propunham a criação de uma moeda independente e foram assassinados por militares ligados às forças armadas francesas.

África, França e o neocolonialismo

A inscrição do cartaz diz , “As nações da África controlarão os colonizadores!” / Grupo soviético Kukryniksy

É famosa a frase do presidente francês “socialista” François Mitterrand, em 1958: “sem suas colônias, não há espaço para a França no século 21”. O que foi reverberado 5 décadas depois por outro ex-presidente francês, Jaques Chirac, que em 2008 asseverou que “sem a África a França tende a rumar para um país de terceiro mundo”. E o que assistimos agora? Em apenas um ano, o exército francês foi expulso de Mali e Burkina Faso. Níger segue os exemplos. Níger foi uma colônia francesa desde o início do século 20 até 1960, quando se tornou um país independente. Hoje é um dos principais fornecedores de urânio para as usinas nucleares francesas mas seu povo permanece na miséria. No entanto, com a multipolaridade, os africanos não necessitam mais exclusivamente do “apoio militar” do Ocidente contra as ameaças do terrorismo de fundo religioso que assola a região (muitas delas cevadas pelo Ocidente). Podem agora contar com a assistência militar direta e indireta da Rússia. No campo econômico, os africanos não são mais obrigados, como única saída, a se submeter às condições draconianas de “empréstimos” do FMI e Banco Mundial altamente condicionados. Eles têm a opção de se associar à Iniciativa “Um cinturão, uma rota”, da China. Com a imensa vantagem de que nem a Rússia ou a China exigem submissão ideológica ou tentam impor modelos políticos de qualquer tipo. Ou seja, com o novo ambiente internacional marcado pela multipolaridade, os países africanos têm espaço para manobrar de acordo com seus interesses, e aproveitam este vento fresco para se livrar do odor purulento do neocolonialismo.

África: Mídia diz que colonialismo é “fake news”

Pressionado, o antigo colonizador tenta se “repaginar”. Em 2018, o presidente francês Emmanuel Macron devolveu a Benin 26 obras de artes roubadas do país durante o período colonial. A própria França reconhece que em todos os países que colonizou no continente eles se apropriaram de mais de 90 mil obras de arte que estão espalhadas pelos museus franceses. Em 2021, Macron pediu perdão, 27 anos depois, pela “grande responsabilidade” francesa no genocídio de Ruanda (1994), que vitimou cerca de 800 mil pessoas (EUA e Bélgica desempenharam o mesmo papel que a França neste episódio). A máquina de propaganda atlantista também foi acionada. A agência alemã DW publicou, nesta terça-feira (1º), matéria onde denuncia que a Rússia promove uma campanha de desinformação nas redes sociais da África com “postagens típicas (que) acusam a França de neocolonialismo”. Vejam vocês, que injustiça. Acusar a França de neocolonialismo! Logo agora que eles estão arrependidos. Quem sabe, para a DW a colonização do continente africano não passou de uma fake news. Dificilmente, contudo, velhas manipulações midiáticas, reparações mínimas e arrependimentos tardios irão convencer os africanos de que o imperialismo mudou sua essência.

África construindo seu futuro

Este pôster de 1969 de Vasily Boldyrev mostra um jovem negro com um rifle iluminado pela luz do cruzador soviético Aurora, “O Grande Lenin iluminou nosso caminho”, diz a inscrição

Surpreendeu o mundo, recentemente, o discurso do líder provisório de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, na Cúpula Rússia-África. Disse Traoré: “Partilhamos a mesma história (com a Rússia) no sentido de que somos os povos esquecidos do mundo. Seja em livros de história, documentários ou filmes, tende-se a varrer o papel dominante que a Rússia e a África tiveram na luta contra o nazismo. Estamos juntos porque neste momento estamos aqui para falar sobre o futuro dos nossos povos, o que vai acontecer amanhã, este mundo livre a que aspiramos, este mundo sem interferência nos nossos assuntos internos (…) Como a África, com tanta riqueza no seu solo, com natureza generosa, água, sol abundante, é hoje o continente mais pobre? (…) os imperialistas nos acusam de não respeitar os direitos humanos. De que direitos humanos estamos a falar? Estamos vendados e isto é vergonhoso. Nós, chefes de estado africanos, precisamos parar de nos comportar como fantoches que dançam sempre que os imperialistas puxam as cordas“. E como se fosse pouca coisa esta corajosa denúncia, o jovem líder (35 anos), encerrou seu discurso da seguinte forma: “Gostaria de terminar dizendo que temos de prestar homenagem aos nossos povos que estão a lutar. Glória aos nossos povos. Dignidade para os nossos povos. Vitória para os nossos povos. Pátria ou morte, venceremos! Obrigado, camaradas“. Há mais de três décadas, quando o jovem oficial africano em visita ao Rio de Janeiro me falou de suas convicções revolucionárias, pensei comigo que a URSS e o campo socialista, capaz de influenciar as causas mais justas por todo o mundo, eram imortais, ilusão que dolorosamente desabou poucos anos depois. Devemos sempre ter em conta as contradições subjacentes que existem em cada situação, e portanto, seu caráter instável, e, principalmente, não esquecer que a luta dos povos não é uma linha reta e constantemente ascendente. Tem curvas, recuos, acúmulos, recomeços, embora o sentido geral da história seja sempre favorável ao progresso e às ideias avançadas. Assim, quem tentar julgar o que está acontecendo na África pela métrica desgastada e hipócrita dos “valores ocidentais” do mundo burguês e sua mentalidade neocolonial, não vai entender nada. Por estes “valores”, o ouro de Gana é desviado por conta da corrupção dos governantes. Assim, instituições como o Banco Mundial e a Transparência Internacional, colocam o país nos primeiros lugares do índice de corrupção. Já os países dos corruptores e ladrões de ouro do povo ganês (europeus, estadunidenses e canadenses, em sua maioria) não aparecem neste índice, afinal estão corrompendo e roubando “bárbaros”. Felizmente, a história está se desenvolvendo diante dos nossos olhos em uma velocidade inédita. O imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo estão em xeque e, por mais turbulentos que sejam os tempos, não nos faltam motivos para um lúcido otimismo. No horizonte da heroica África, nosso berço comum, parecem surgir os clarões de um novo alvorecer da luta dos povos.

Por Wevergton Brito Lima

Encontre os números anteriores da Súmula Internacional na editoria Visão Global

 

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