Todo Mundo

A China não aceita condicionamentos

A confrontação estrutural gerada pela atual Guerra Fria é resultado da incapacidade do Ocidente em aceitar a soberania plena da China e da Rússia e a respectiva influência disso sobre o resto do mundo.

Jorge Elbaum*

No discurso que Washington tenta disseminar através de seus propagandistas, Pequim é uma autocracia que desafia sua hegemonia global, enquanto Moscou é um ator geoestratégico que deve ser fragmentado e/ou isolado. O G7, a OTAN e o AUKUS – formado em 2021 – se articulam para reduzir a liderança dos BRICS, demonizar aqueles que desafiam as atualizações do Consenso de Washington e sabotar as capacidades chinesas de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico.

Em 4 de março, iniciou-se no Grande Salão do Povo, em frente à Praça Tiananmen, o encontro anual conhecido como as Duas Sessões, no qual se reúnem, por uma semana, representantes da Assembleia Popular e membros do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política (CCPPC), um órgão consultivo composto por coletivos territoriais, profissionais, sindicais e militares. Durante o encontro, é feito um balanço do ano anterior e são estabelecidos os objetivos imediatos para o futuro.

O primeiro-ministro Li Qiang foi encarregado de apresentar o relatório aos três mil delegados. Os principais pontos de sua exposição foram direcionados para impulsionar “um mundo multipolar igualitário e ordenado” e “uma globalização econômica inclusiva”, em clara oposição ao modelo pretendido pela OTAN e pelo G7, que insistem em impor um modelo baseado em regras unilaterais sustentadas em práticas “hegemônicas e intimidadoras”. A posição detalhada por Li Qiang em sua apresentação prevê uma maior presença da China no cenário internacional, promovendo mudanças na governança global.

A abordagem de Li Qiang – o segundo homem mais importante depois de Xi Jinping – incluiu observações sobre a situação de Taiwan e do Mar da China, focos prioritários da política externa de Pequim. O Ministro das Relações Exteriores, Qin Gang, advertiu recentemente que “se os Estados Unidos não frearem e continuarem acelerando pelo caminho errado, não haverá guardas suficientes para evitar o descarrilamento, que resultará em uma situação muito conflituosa“. As palavras dos líderes chineses coincidiram em abordar três áreas de confronto global que se desenvolvem simultaneamente: o conflito no Oriente Médio (com foco em Gaza, Israel, Líbano, Síria, Iraque, Irã e Iêmen), o confronto bélico no leste europeu e as provocações de Washington no sudeste asiático.

Em 15 de setembro de 2021, Washington, Canberra e Londres formaram um triângulo militar chamado AUKUS (acrônimo das iniciais em inglês de cada um de seus três membros) com o objetivo de limitar e cercar a República Popular da China. Em 2022, Nova Zelândia e Canadá expressaram sua intenção de se juntar ao AUKUS para aprofundar as capacidades de defesa dos três fundadores. A aliança visa facilitar a aquisição de cinco submarinos nucleares por parte de Canberra, dois Vanguard de origem britânica e três Virginia estadunidenses. Além disso, planejam fabricar até 2030 um protótipo chamado AUKES em território australiano.

Duas semanas atrás, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Mao Ning, acusou Washington de promover o belicismo ao impulsionar “uma Ucrânia hoje, e um Taiwan amanhã”. Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, advertiu que a transferência de tecnologia nuclear acordada pelo AUKUS só incentivará uma corrida armamentista na região.

A razão fundamental da provocação de Washington e Londres se deve à dupla estratégia implementada por Pequim: por um lado, a associatividade comercial – baseada na engenharia reversa e na aplicação científico-tecnológica – e, por outro, o financiamento do desenvolvimento das regiões abandonadas (e desprezadas) pelo Ocidente opulento. Enquanto as organizações internacionais (como o FMI ou o Banco Mundial) se dedicavam a conceder créditos leoninos para disciplinar as economias em desenvolvimento – com o único objetivo de torná-las compatíveis com as exigências das transnacionais, dos fundos de investimento e de Wall Street –, a China se concentrou em financiar infraestruturas associadas à rota da seda e a diferentes países africanos, bem como da América Latina e do Caribe.

A nova Guerra Fria, que pode se transformar imprevistamente em nuclear, se desenrola por meio de formatos híbridos (informáticos, comunicacionais, satelitais e de promoção de informações falsas) e através dos chamados conflitos bélicos subsidiários (formatos proxy), que permitem o uso de territórios externos para implantar operações militares. A guerra desencadeada pela OTAN contra a Federação Russa teve Kiev como títere. A Guerra Fria no sudeste asiático tem a Austrália como seu gestor. A crise da hegemonia do Ocidente vem com ecos de guerra.

*Jorge Elbaum é um sociólogo argentino, doutor em Ciências Econômicas, analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la)

Publicado originalmente no site da CLAE

 

 
Os artigos e ensaios publicados na editoria TODO MUNDO (Opiniões e Debates) não refletem necessariamente a opinião do PCdoB sobre o tema abordado.

Leia também: