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A preferência da finança pelas metrópoles

A presente globalização sempre foi legitimada pelo argumento de que hoje o capital, ao contrário dos tempos coloniais, tornou-se cego a distinções raciais e outras entre países ao decidir sua localização.

Por Prabhat Patnaik*

Ele agora fluiria sempre que houvesse oportunidades para investimento lucrativo. Considerando os salários mais baixos no terceiro mundo e portanto a maior lucratividade de localizar fábricas ali ao invés de localizá-las nas metrópoles, isto asseguraria não uma divergência cumulativa entre países metropolitanos e do terceiro mundo como acontecia anteriormente, mas, ao contrário, uma eliminação desta divergência.

Aos países do terceiro mundo foi pedido que permitissem capitais estrangeiros nos seus territórios com base neste argumento. E na verdade a experiência de muitos países no Leste e no Sudeste da Ásia, para os quais se mudaram várias indústrias e atividades do setor de serviços vindas das metrópoles, parecia confirmar esta visão. Opor-se a tal “abertura”, a qual implicava globalização, parecia insensato, um resíduo de velhas posições ideológicas herdadas dos tempos coloniais. Muitos argumentaram mesmo que neste mundo onde ocorrera a descolonização e onde até mesmo “superpotências” econômicas estavam a emergir no interior do terceiro mundo, o termo “imperialismo” perdera a sua relevância.

Houve dois problemas fundamentais com este argumento. O primeiro, que não discutiremos aqui em pormenor, é que, para um país permanecer competitivo no mercado global, tem de haver uma contínua mudança tecnológica e estrutural no seu interior, a qual aumenta o crescimento da produtividade do trabalho e portanto reduz a taxa de crescimento de emprego para qualquer dada taxa de crescimento do PIB. Isto, juntamente com o esmagamento da agricultura camponesa que inevitavelmente acompanha uma tal estratégia e a consequente migração de trabalhadores rurais aflitos para as cidades, significa que as reservas de trabalho nunca acabarão apesar da difusão de atividades das metrópoles. Portanto, o desemprego e a pobreza persistem e realmente são agravados – mesmo quando há uma taxa elevada de crescimento do PIB – causando um profundo hiato social e econômico dentro do país. A experiência indiana confirma isto amplamente.

O segundo problema com o argumento acima é o tema com que nos preocuparemos aqui e este relaciona-se com o fato de que na “abertura” ao capital não é permitida qualquer distinção entre capital-como-finança e capital-na-produção. Mesmo que assumamos por um momento que o capital-na-produção se tornou realmente “cego” acerca de onde se localiza a si próprio e que se concentra em farejar lucros (o que não é verdade), a mesma certeza não se mantém para o capital-como-finança. Este fato sempre foi conhecido, mas a pandemia demonstrou-o mais uma vez de modo claro.

Há três propriedades cruciais do capital-como-finança. Uma é a sua extrema volatilidade, sua propensão para mover-se de uma localização para outra com velocidade notável e à mínima provocação, a qual pode então adquirir um carácter cumulativo e desestabilizar qualquer economia. A segunda é a dos seus dogmas claríssimos, incluindo acima de tudo o seu desgosto por um Estado economicamente intervencionista. Disso é indicativo o seu desgosto por um défice orçamental que não seja minúsculo sob quaisquer circunstâncias. Estas duas propriedades em conjunto explicam porque mesmo governos desejosos de assim faze-lo ficam sempre apreensivos quanto a empreender investimento em empresas públicas, despesas com educação pública e cuidados de saúde e, também, porque os défices orçamentais permanecem restritos mesmo em meio a uma recessão.

Entretanto, é a terceira propriedade da finança que é de extrema importância embora menos discutida ou sequer noticiada. E esta é a preferência para mover-se dos países do terceiro mundo para localizações em “abrigos seguros”, nas metrópoles, aos primeiros sinais de qualquer perturbação na economia mundial – mesmo quando esta perturbação nada tem a ver com o terceiro mundo e mesmo quando a sua fonte está nas próprias metrópoles. Ironicamente, por causa da pandemia do coronavírus, US$84 bilhões saíram de países do terceiro mundo, incluindo a Índia, só no mês de março.

O que este “instinto de volta para casa” implica é que a finança não é cega acerca do lugar em que se auto-localiza. Ela pode sair em busca de lucros para regiões remotas do terceiro mundo, mas apressa-se em voltar “para casa” sempre que há qualquer perturbação, não só nestas regiões remotas, mas em qualquer lugar na economia mundial. Quando corre de volta para casa, como tem feito recentemente, as divisas nas regiões remotas depreciam-se em relação ao dólar, tornando o serviço da dívida externa nessas regiões muito mais penoso e a sua balança de pagamentos insustentável sem novos empréstimos externos. Como “condicionalidade” para tais empréstimos externos, os governos destas regiões são obrigados a prosseguir a austeridade e a engendrar um maior desemprego interno.

Portanto, a natureza da finança globalizada é tal que não só impede gastos em bem-estar por parte de governos do terceiro mundo – mesmo quando tudo vai bem – como também impõe austeridade a estes governos sempre que há qualquer perturbação na economia mundial, mesmo uma perturbação que seja totalmente não relacionada a qualquer ação da sua parte.

Portanto, para o terceiro mundo, sujeitar-se a fluxos financeiros globais é o equivalente a aceitar não só uma subserviência do seu Estado-nação interno à hegemonia da finança como também uma posição de inferioridade em relação aos Estados-nação dos países avançados. O fato de que Estados-nação por toda a parte (exceto os EUA com a sua divisa poderosa) se tornam subservientes à finança globalizada, reduzindo com isso a democracia, tem sido amplamente observado. Mas o que é menos observado é que há uma diferença no status dos Estados-nação metropolitanos e os Estados-nação do terceiro mundo.

Esta diferença de status é visível mesmo durante a atual pandemia. Os governos em países capitalistas avançados concluíram pacotes orçamentais para enfrentar a pandemia que se elevam a proporções substanciais dos seus PIBs (Alemanha 5%; EUA 15% até agora; Japão 20%) e não têm remorsos quanto a utilizar não só défices orçamentais como também défices monetizados (isto é, tomadas de empréstimos dos seus respectivos bancos centrais) para financiá-los. Na Índia, em contraste, o único pacote até agora foram os 1,7 bilhão de rupias (0,7 por cento do PIB) de Nirmala Sitharaman (1) dos quais quase a metade é despesa antiga re-etiquetada. Não tem havido conversa de qualquer novo pacote apesar da extensão do confinamento, que era para terminar em 14 de abril, durante um novo período de três semanas. E agora o governo anunciou sua intenção de permanecer dentro do limite do défice orçamental. Isto deve-se parcialmente, sem dúvida, à absoluta pusilanimidade do governo Modi em relação à finança globalizada – mas reflete também seus constrangimentos.

Mesmo dentro da esquerda há uma visão de que a globalização representa uma espécie de meio caminho rumo ao internacionalismo que ela apoia. Na verdade, esta globalização está a ocorrer dentro do capitalismo e é dominada pela finança. “Mas não se deveria”, argumenta-se, “reverter à situação anterior à globalização. Deveríamos, ao invés, permanecer dentro do âmbito da globalização e procurar derrubar a hegemonia do capital financeiro sobre este processo”. Este argumento é enviesado por duas razões diferentes: uma, a óbvia, é que não há luta dos trabalhadores coordenada internacionalmente, muito menos uma luta dos camponeses coordenada internacionalmente. Uma luta internacional contra a globalização não pode ter êxito se as classes cuja tarefa é levar a cabo esta luta não forem elas próprias coordenadas internacionalmente.

A outra razão é que como a globalização envolve, como vimos, uma replicação da estrutura hierárquica de nações que a obtiveram historicamente sob o capitalismo, apesar de toda a passagem de atividades da metrópole para o terceiro mundo, o processo de libertação desta globalização dominada pela finanças não pode ser idêntico ou simétrico em todas as nações. Se os países do terceiro mundo podem ser atingidos por saídas financeiras maciças por razões não provocadas por si mesmos, então eles têm de impedir estes fluxos através de controles de capitais – e isto ipso fato significa um desligamento da globalização. Em suma, para os trabalhadores e camponeses do terceiro mundo o desligamento da atual globalização deve permanecer um objetivo central.

Isto não significa que a luta para reformar as instituições e práticas através das quais opera a finança dominada pela globalização não deveria ser efetuada. A questão do desligamento torna-se relevante precisamente porque tais reformas ou não terão êxito de todo ou serão insuficientes a partir da perspectiva de países do terceiro mundo. A luta pela reforma das instituições através das quais é exercida a hegemonia do capital financeiro e o desligamento da atual globalização não são dois processos distintos – uma ascende porque a outra não tem êxito. E a outra, nomeadamente reformar as instituições da presente globalização, seria mal sucedida porque a finança não abdicará voluntariamente da sua hegemonia.

* Economista marxista indiano

1 – Atual ministra de Finanças da Índia (Nota da edição i21/Portal Vermelho)

Fonte: resistir.info

 
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