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Alemanha: o fracasso do centro

O declínio, na Alemanha e nas recentes eleições da União Europeia (UE), dos partidos de centro-direita e centro-esquerda historicamente dominantes abre o cenário para conflitos mais amplos sobre como enfrentar as várias crises que assolam a Europa.

Por Lauren Stokes*

Já antes das eleições europeias, a Alemanha – o maior dos estados-membros da UE, em população, economia e número de representantes no Parlamento Europeu – preparava-se para uma maré de populismo de direita que avançaria sobre o centro. Não há dúvidas de que ambos, sejam os social-democratas de centro-esquerda (SPD) seja a Democracia Cristã (CDU) de centro-direita, perderam terreno. Mas não implica que a extrema direita se tenha beneficiado dessas perdas.

À primeira vista, pode parecer que a extrema-direita “Alternativa para a Alemanha” (AfD) tenha alcançado grande sucesso – aumentando a própria votação, de 7,1% em 2014, para 11% esse ano. Mas os resultados, em 2014, mostravam só uma extrema-direita ainda embrionária, fundada em 2013 em oposição ao euro. O partido só atraiu uma massa de seguidores em 2015, quando assumiu como marca a xenofobia anti-imigrantes e obteve 12,6% dos votos na eleição federal de 2017 na Alemanha. Fato é que, de lá até hoje, o partido AfD perdeu terreno. Seus eleitores permanecem geograficamente concentrados na antiga Alemanha Oriental, predominantemente homens entre 30-60 anos, o grupo que mais perdeu na privatização manobrada como terapia de choque nos anos 1990 na então recém-extinta Alemanha comunista.

Durante essa mais recente campanha, a extrema-direita várias vezes mudou o próprio discurso sobre a Europa – por algum tempo, falou de “Dexit” [Deutschland Exit, Alemanha fora da UE], depois se decidiu por uma reforma de dentro para fora: converter a Europa em uma “Europa de ‘pátrias’”, estados-nação conectados só por pactos de livre comércio. Essa visão não conseguiu aumentar o número de votos, mais do que o programa anti-imigração de 2017.

Além do mais, se a extrema-direita organizada no partido Alternativa para a Alemanha chegasse a postos de responsabilidade política significativa, o desejo de desmontar a cooperação europeia entraria em conflito também significativo com a oposição à imigração de fora para dentro da Europa. A política de asilo da União Europeia à qual a AfD opõe-se não é variação sobre o tema “partilhar a carga”, mas sobre o tema “rejeitar a carga” – jogar para o círculo mais externo de estados-membros a responsabilidade pelos que buscam asilo. Sob a Regulação de Dublin, o primeiro estado da UE ao qual chegue um migrante em busca de asilo é o estado responsável por analisar aquele determinado pedido de asilo. A Alemanha acolheu quase um milhão de migrantes em busca de asilo em 2015, porque a chanceler Angela Merkel suspendeu essa regulação durante a crise humanitária, para permitir que sírios que chegassem ao país fossem pelo menos ouvidos na Alemanha. Na sequência, a Alemanha reativou a política de controle nas fronteiras, diretamente para outros estados-membros, como Itália e Polônia – onde os populistas de direita são, no mínimo, internamente coerentes, ao abraçar o ideário dos eurocéticos, com retórica anti-imigrantes. Partidos anti-imigração como a Liga Norte, na Itália – maior vitorioso de direita nessas eleições europeias – podem até estar aliados ao partido AfD, mas visam a forçar a Alemanha a receber número maior, não menor, de migrantes em busca de asilo. Se a política para imigração de toda a UE ruir, a Alemanha não conseguirá deportar de volta para países da periferia da UE, como Itália, Espanha e Polônia, todos os migrantes aspirantes a asilo.

Os resultados da eleição sugerem fortemente que a direita organizada no Partido AfD tem futuro garantido como partido do protesto regional – impressão que será provavelmente confirmada em eleições de nível nacional no Leste Europeu, ainda em 2019, em países onde a AfD é forte.

Mas os eleitores de direita têm preferido, em maiores números, a Socialdemocracia de centro-esquerda (SPD) e a Democracia Cristã (CDU) de centro-direita.

Na verdade, as recentes eleições mostraram as limitações que impedem o crescimento da extrema-direita (AfD), que fracassou impressionantemente entre os eleitores mais jovens. Eleitores com menos de 30 anos tenderam a votar mais num partido ‘satírico’ chamado DIE PARTEI [lit. A Parte] (8%) que na extrema-direita de AfD (6%).

O presidente do partido DIE PARTEI, o humorista Martin Sonneborn, já fora eleito, em 2014, para o Parlamento Europeu. No primeiro mandato, alternou mecanicamente entre votar “Sim” e votar “Não”, em todas as votações. Essa estratégia valeu-lhe 2,4% dos votos na eleição de 2019 e dois (faltando poucos votos para alcançar um terceiro) assentos com voto no Parlamento.

Essa ideia de ‘eleição-como-arte-performática’ atraiu mais jovens eleitores que o direitismo da AfD e por pouco não alcançou o mesmo número de votos que o centro-esquerda socialdemocrata (SPD), que teve 10% dos votos no grupo de menos de 30% e mal chegou a 15% no total. Os socialdemocratas do SPD só fazem perder eleitores, sem parar, desde que pela última vez chegaram ao posto de chanceler na Alemanha (1998-2003), quando o partido abandonou suas raízes no sindicalismo, para abraçar programas da chamada ‘austeridade’ da Terceira Via e programas anti-trabalho.

Por sua vez, eleitores de esquerda gravitaram para o Partido Verde, que foi contagiado pela energia da luta pelo clima e do movimento Fridays for Future [sextas-feiras pelo Futuro] e alcançou 33% dos votos de eleitores com menos de 30 anos, e 20,5% do total de votos, chegando, pela primeira vez na história do partido, ao segundo lugar numa eleição nacional.

Apesar de o clima ser como uma marca registrada dos Verdes, essa não é sua única bandeira. Por exemplo, os Verdes têm perfil muito claro a favor dos direitos dos migrantes e contra qualquer racismo. Dão destaque à descriminalização das operações de resgate de migrantes no Mediterrâneo; à abertura de novas vias para imigração legal para a Europa; à facilitação da entrada de buscadores de asilo, garantindo-lhes um status temporário, ou “tolerado”; e à conversão desse status em residência permanente.

Apesar do peso significativo que Greta Thunberg e os líderes alemães do movimento pelo clima parecem ter tido no resultado das eleições de 2019, esses nomes têm sido menos lembrados nos últimos dias, nas explicações sobre o colapso do ‘centrão’, que o nome do YouTuber de topete azul, Rezo. Uma semana antes das eleições, Rezo publicou um vídeo de 55 minutos intitulado “A Destruição da Democracia Cristã” [The Destruction of the CDU] que já foi visto mais de 14 milhões de vezes. No vídeo, Rezo dizia que a coalisão da Democracia Cristã com a Socialdemocracia (CDU-SPD) fracassou ao não ver a crescente desigualdade entre ricos e pobres; não alcançou sequer as próprias metas muito modestas de resistência à mudança do clima; e permitiu que os EUA usassem drones da Base Aérea Ramstein (em território alemão) em ataques ao Iêmen, o que configura crime de guerra.

A questão da migração, que parecia ser a questão crucial nas eleições de 2017, só é citada uma vez no vídeo de Rezo – quando o youtuber alerta para o fato de que as mudanças climáticas produzirão novas crises de refugiados, na comparação com as quais a “chamada crise” de 2015 parecerá insignificante. Rezo insiste em que a solução para essa catástrofe iminente não virá dos tímidos democratas cristãos e socialdemocratas, e com certeza tampouco virá da extrema direita – e refere-se à AfD, como nazistas negadores da mudança climática.

Os dois partidos historicamente dominantes reagiram de modo vergonhoso. A democracia cristã, ao que se sabe, produziu e filmou um vídeo de resposta, mas não o publicou. No vídeo de resposta dos socialdemocratas, um porta-voz diz que as políticas do SPD são dirigidas a garantir a todos dinheiro suficiente para que possam comprar alimentos orgânicos – solução medíocre, individualista – para problema que exige ação coletiva. E o presidente da Democracia Cristã reclamou que a ‘juventude’ estaria sob a ‘má influência’ de Rezo; e cobrou do governo que impusesse controles sobre o que se publica online na Alemanha.

O desempenho morno da Democracia Cristã nessas eleições também enfraqueceu suas chances na escolha do próximo presidente da Comissão Europeia. Fazendo eco aos resultados da eleição nacional alemã, socialistas e democratas (S&D) de centro-esquerda e o Partido do Povo Europeu [ing. European People’s Party (EPP)] de centro-direita pela primeira vez perderam a maioria combinada que tinham no Parlamento Europeu. Embora o alemão Manfred Weber ainda chegue ao Parlamento Europeu como presidente do maior grupamento político, seu partido perdeu 39 cadeiras, o que lhe dá um mandato no mínimo muito frágil. (…)

Mais do que a disputa franco-alemã pela liderança, essas eleições apontam um desafio muito mais amplo para o Parlamento Europeu. Nos últimos 20 anos, a centro-esquerda europeia uniu-se à centro-direita europeia no apoio amplo ao que Angela Merkel chamou de “democracia de mercado” [ing. market-conforming democracy]. O povo elegeu livremente os próprios líderes, os quais, por sua vez, baseiam as próprias decisões no que lhes seja ditado pelo ciclo dos negócios, como determinado pelo Banco Central Europeu com sede em Frankfurt.

A extrema-direita e os Verdes têm pouca coisa em comum, mas os dois grupos acusam o centro de se ter deixado seduzir e de não ter visto os respectivos iminentes desastres existenciais: para a direita, a onda de migrantes não brancos para a Europa; e para a esquerda a mudança climática nua e crua. Para o número crescente de eleitores que apoiam esses partidos, a “democracia de mercado” fez com que o centro abandonasse deliberadamente a faculdade de tomar decisões efetivas frente às crises. Ao desistir do poder de decidir, o centro abriu as portas ao desastre real.

Para Merkel e o centro que ela continua a encarnar, a própria natureza da democracia de mercado europeia evitaria o desastre. Sem a influência ‘orientadora’ [ing. guiding influence] do mercado, os conflitos irromperiam entre esquerda e direita, puxados por demandas incomensuráveis quanto à natureza da comunidade política e as ameaças ao futuro dela – conflitos que ninguém conseguiria deter, se o ciclo dos negócios deixasse de regular a política. Agora, ante o declínio do centro na Alemanha e na Europa, a política parlamentar europeia fica exposta a esses conflitos.

* Lauren K. Stokes é professora assistente de História da Alemanha na Northwestern University (Illinois, EUA)

Fonte: Dissent Magazine, traduzido pelo Coletivo de Tradutores Vila Mandinga

 
Os artigos e ensaios publicados na editoria TODO MUNDO (Opiniões e Debates) não refletem necessariamente a opinião do PCdoB sobre o tema abordado.

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