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Maduro resistiu! Bolsonaro, nem tanto

No dia 23 de fevereiro, com uma ação orquestrada contra a Venezuela, os EUA e seus aliados libertariam um povo das garras da opressão. Não é a primeira vez que os Estados Unidos agridem um país a pretexto de defender os direitos humanos e as causas humanitárias. Todos se lembram que este século foi inaugurado pelos cadáveres de crianças iraquianas atestando a boa vontade e humanismo da máquina de guerra a serviço dos interesses assentados em Washington.

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo *

Donald Trump já havia ameaçado usar a força contra a Venezuela por diversas vezes. Sem condições para levar adiante a agressão, o presidente dos EUA parece ter se entregado ao espírito humanitário, o mesmo que mostra ao mundo quando propõe a construção de muros, persegue imigrantes e aprisiona crianças em gaiolas. Assim, em 23 de fevereiro, aqueles que até a véspera ameaçavam o povo venezuelano com o horror da guerra, se apresentaram como os generosos doadores de gêneros de primeira necessidade.

Foi esse o roteiro do “dia D” que a Casa Branca assinou:

Ao final do dia 23, alguns caminhões teriam atravessado a fronteira entre Colômbia e Venezuela, enquanto em Pacaraima outras duas caminhonetes estariam em território brasileiro com a missão de abastecer de alimentos e remédios a população venezuelana. As imagens que circulariam amplamente pela mídia e redes sociais não tornariam evidentes que a “ajuda” era ínfima, ridícula, infinitamente menor que a pirotecnia armada por Washington e seus capatazes.

Juan Guaidó, o “presidente” nomeado por si mesmo e pelos EUA, agarrado a um dos veículos, com a testa franzida que cabe aos líderes em grandes momentos históricos, distribuiria a “ajuda humanitária” a uma população de braços abertos: essas sim seriam as imagens difundidas pela mídia e redes sociais.

As forças armadas e de segurança da Venezuela teriam debandado em busca de exílio ou anistia. Claro, algum confronto teria ocorrido. Afinal, desde o golpe de 2002, a oposição venezuelana é hábil em duas coisas: não reconhecer os resultados das eleições que perdem (quando ganham, acham tudo limpíssimo) e forjar provocações para responsabilizar o adversário.

O roteiro comportava, como subtrama, atiradores de elite que, a mando de Maduro, disparariam contra o povo. Como não vieram os tiros, surgiram alguns incêndios, muito mal esclarecidos, em alguns daqueles poucos caminhões que salvariam a Venezuela.

Naquela mesma noite, embora isso não fosse tão divulgado quanto as imagens de Guaidó, as companhias norte-americanas brindariam pela conquista das gigantescas reservas de petróleo da Venezuela, enquanto Donald Trump, na companhia das suas aves de rapina, esfregaria as mãos por ter cabeças a exibir a seu eleitorado após um governo errático e apagado.

No entanto, foi tudo bem diferente disso.

Nicolás Maduro, presidente eleito, continua firme no posto. Em Caracas, multidões prestaram solidariedade ao seu governo legítimo. As forças armadas mantiveram-se leais à Constituição. No fim do dia, sobrava a certeza em Washington de que a força social do chavismo fora subestimada. Ao contrário do planejado, o rosto de Guaidó nas entrevistas que se seguiram estampava o pasmo dos que acabam acreditando nas mentiras que inventam.

Se Maduro resistiu, do lado de cá Bolsonaro apresentou a fratura exposta do governo brasileiro, dividido entre fanáticos de extrema direita e comandantes militares que, apesar de conservadores, mantém um senso de responsabilidade que os distancia do primeiro grupo.

Um dia antes do fatídico 23 de fevereiro, veio a público a informação de que todos os ministros militares do Palácio se alinharam ao vice-presidente, general Mourão, para se opor a qualquer ação na Venezuela que ultrapassasse a barreira da pressão econômica e diplomática. Nem mesmo o apoio à entrega da fajuta ajuda humanitária eles concordaram em ofertar.

Para Bolsonaro, a participação nessa operação é questão também de fanatismo ideológico. Tal qual a desastrada indicação de mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, o Brasil nada tem a ganhar embarcando na agressão contra a Venezuela. Mas, secundado pelo chanceler Ernesto Araújo, o presidente deu sinais de que envolveria o país, de forma irresponsável, em uma aventura de consequências tão imprevisíveis quanto drásticas. O deputado Eduardo Bolsonaro, que fala pelo pai, chegou a sugerir o assassinato do presidente venezuelano.

A ação das duas caminhonetes enviadas de Boa Vista a Pacaraima (uma delas teve problemas com o pneu e acabou se atrasando para o “dia D”) foi sim um vexame. Porém, foi também uma demonstração de que Bolsonaro não conta com a colaboração plena de seus ministros.

A “operação” foi organizada pelo chanceler Ernesto Araújo, um confesso admirador e seguidor de Trump, além de homem alinhado à doutrina de Bolsonaro. Em Boa Vista, ocupado com a organização necessária para o deslocamento das suas duas caminhonetes, Araújo tinha a seu lado, como não poderia deixar de ser, um encarregado da embaixada dos EUA atestando a quem cabe a chefia do cerco.

Após constatar que as coisas não saíram conforme o esperado, Washington tentou se recompor na reunião do Grupo de Lima, no dia 26. Mike Pence, o vice-presidente norte-americano, foi enviado por Trump para dizer com voz grossa que todas as opções estavam ainda sob a mesa. Ou seja, mesmo falando em “ajuda humanitária”, sacar as armas ainda é um plano. Nessa mesma reunião, o “libertador” Juan Guaidó colocou à prova sua vontade declarada de alimentar o povo venezuelano ao pedir, emocionado, uma intervenção militar estrangeira contra seu próprio país.

Em Lima, falando pelo Brasil enquanto Bolsonaro mantinha-se em silêncio, Hamilton Mourão, o vice, declarou que o país é contrário a qualquer intervenção violenta na Venezuela e que, inclusive, não abrirá seu território para o trânsito de tropas dos EUA. Se já não fosse clara, a disparidade com o norte-americanismo militante de Bolsonaro e de seus radicais no Itamaraty ficou bastante evidente.

O fato de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter fechado posição com os ministros militares é outro indicativo do curto-circuito no Planalto, além de uma parceria que pode reverberar nas deliberações sobre a PEC da Previdência. Um Bolsonaro fabricante de crises estéreis, interessado em cavalgar pelo continente como cruzado da extrema-direita pode deixar de ser funcional para os grupos que o levaram à cadeira que ocupa.

Se Maduro poderá continuar suportando a pressão e resistindo na condição de presidente da Venezuela, é uma questão para se responder nos próximos dias. Agora, por aqui, parece evidente que Bolsonaro perdeu a faixa antes dele.

* Advogado, bacharel em História e doutor em Integração da América Latina pelo PROLAM (Programa de pós-graduação em Integração da América Latina) da Universidade de São Paulo (USP)

Fonte: Portal Vermelho

 
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