A disputa ideológica por um forte partido que retorna à esquerda
O Partido Trabalhista britânico enfrenta uma turbulência. Nesta terça-feira (19), a parlamentar Joan Ryan foi a oitava a deixar o partido e, segundo a imprensa britânica, mais 10 devem fazer o mesmo para integrar o novo Grupo Independente no Parlamento. No centro da discussão midiatizada estão acusações variadas contra o líder Jeremy Corbyn, mas o descontentamento com a viragem à esquerda do partido sob sua liderança é a questão de fundo.
Por Moara Crivelente*
Corbyn, líder da Oposição no Parlamento Britânico, poderia ser eleito primeiro-ministro nas próximas eleições. Diante das tensões intrapartidárias, já se especula que a primeira-ministra Theresa May, do Partido Conservador e Unionista, convocaria eleições antecipadas aproveitando-se da divisão no Trabalhista — uma divisão aparentemente centrada, precisamente, em Corbyn. Mas a possibilidade de antecipação já havia sido aventada devido à crise causada no Governo e no Reino Unido pelas discussões sobre a saída britânica da União Europeia (UE), Brexit.
Ao tempo em que membros do Trabalhista deixam o partido rumo ao Grupo Independente, membros do partido de May também começam a debandar. Nesta quarta (20), três parlamentares do Conservador anunciaram suas razões para deixá-lo: o descontentamento com uma “guinada à direita” dos Conservadores, oposição ao Brexit e a forma como May o aborda, “contrariamente aos interesses do povo”, disseram, em coletiva de imprensa. É mais um motivo para a antecipação das eleições, ainda previstas para 2022, uma vez que May pode perder sua maioria no Parlamento.
Segundo sondagens citadas nesta quarta (20) pelo Guardian, 32% dos entrevistados apoiam os Conservadores, 26% apoiam os Trabalhistas e 10%, o Grupo Independente, embora este ainda não tenha líder, estatuto ou fundos para formar um novo partido. O restante divide-se entre o Partido Liberal Democrata, o anti-UE e direitista Partido de Independência Britânica (Ukip) e os Verdes.
Embora a batalha anti-Corbyn se arraste há anos, a crise é reforçada por sucessivas alegações de antissemitismo. Nesta semana, foi retomada pela saída de parlamentares como Luciana Berger, que presidiu o grupo “Trabalhistas Amigos de Israel”. A parlamentar Ruth George afirmou que os financiadores do grupo não são revelados e ecoou acusações de que ele seria financiado pelo governo israelense. George também foi acusada de antissemita, inclusive porque Berger é judia.
George respondeu que o esclarecimento dos financiadores de qualquer grupo político é importante para a democracia. Em seguida, disse lamentar a acusação contra os que deixam o partido, que fez sem qualquer intenção de invocar uma “teoria da conspiração” —preconceito que integra o arcabouço de chavões antissemitas segundo os quais judeus lideram conspirações. Entretanto, como se vê em diversos cenários, o antissemitismo é usualmente empregado pelos defensores do colonialismo e das políticas de uma classe específica em Israel para rechaçar as críticas de opositores ou defensores dos direitos dos palestinos.
Em 2018, a própria parlamentar Joan Ryan, atual presidenta do Trabalhistas Amigos de Israel, que deixou o partido nesta semana, enfrentou o rechaço dos eleitores da sua região, que votaram por substituí-la como sua candidata nas próximas eleições, devido à falsidade das suas acusações de antissemitismo contra uma ativista pelos direitos dos palestinos —que passou por processo disciplinar— e à sua acusação aberta contra o próprio partido sob a liderança de Corbyn. O momento a que Ryan se referia havia sido gravado em vídeo e incluído no documentário The Lobby; as gravações mostravam que a ativista não havia recorrido ao antissemitismo em sua fala.
Uma ofensiva de várias frentes
Corbyn tem estado sob fogo cruzado tanto dentro quanto fora do partido. A crise ideológica no Trabalhista arrasta-se há anos. O partido foi estabelecido em 1906 e em anos recentes era liderado por uma tendência centrista até que, em 2015, Corbyn foi eleito novo líder, substituindo Ed Miliband, que se demitiu após a derrota eleitoral do partido naquele ano. Predecessores na liderança do partido foram os ex-primeiro-ministros Tony Blair (1999-2007) e Gordon Brown (2007-2010), que tomaram parte nas cruentas guerras do pós-11 de setembro, no frenesi imperialista encabeçado pelos EUA, no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
À saída de Brown, assumiu o Governo o Conservador David Cameron —até então lider da Oposição no Parlamento— em aliança de necessidade, já que os conservadores não conseguiram maioria absoluta nas eleições, com o Partido Liberal Democrata, por sua vez resultante de uma união dos anos 1980 entre liberais-democratas e os social-democratas egressos do Trabalhista.
Tony Blair e Gordon Brown lideraram o partido sob o slogan do Novo Trabalhista (New Labour), uma guinada ao centro resultante na alteração no manifesto de 1996. O texto, intitulado “Novo Trabalhista, Nova Vida à Grã-Bretanha”, alterava a quarta seção do estatuto para afastar o partido do ideário socialista, concretamente, promovendo a economia de mercado, numa “terceira via” influenciada pelo sociólogo Anthony Giddens. A medida foi vista como adoção do Thatcherismo, a política promovida no governo de Margareth Thatcher (1979-1990), do Partido Conservador, assentada no livre-mercado e nas privatizações. De acordo com o Independent e outros meios britânicos, porém, apesar da possibilidade levantada por Corbyn e críticos de reintrodução da cláusula removida sob o New Labour, Corbyn evitaria tal ação.
“Assegurar aos trabalhadores manuais e intelectuais o total dos frutos da sua indústria e a mais equitativa distribuição resultante possível sobre a base da propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca, e o melhor sistema alcançável da administração popular e controle de cada indústria ou serviço”, era o que dizia a quarta cláusula, introduzida em 1918, na alvorada da Revolução Russa, e removida em 1995, sob a liderança Blair. O novo texto incluiu o seguinte: “Uma economia dinâmica, servindo o interesse público, em que o empreendimento do mercado e o rigor da competição somem-se às forças das parcerias e da cooperação para produzir a riqueza de que a nação necessita.”
Em 2015, a candidatura de Corbyn à liderança do Trabalhista inquietava aqueles que temem sua eventual eleição para liderar o Governo. Em matéria do Atlantic daquele ano, um subtítulo anunciava: “o preferido socialista à liderança do Partido Trabalhista quer nacionalizar as ferrovias, eliminar as armas nucleares e tornar a educação universitária gratuita.” Ele opunha-se às medidas de arrocho, ou “austeridade”, defendendo o aumento dos investimentos públicos e de impostos para os mais ricos, assim como o fim dos subsídios concedidos às corporações, como forma de contornar o déficit.
Também defendeu a imigração num período em que a Europa prefere construir muros para barrar o movimento migratório de pessoas vindas especialmente da África e do Oriente Médio, e rechaçou o envolvimento britânico nos bombardeios à Síria. Defendeu ainda o diálogo com o Hamas palestino e o Hezbollah libanês —taxados de terroristas pelos líderes europeus, estadunidenses e israelenses devido à sua resistência armada— e a desnuclearização do Reino Unido. Em suma, segundo o Atlantic, membros do partido temiam que fosse eleito líder porque “Corbyn é emblemático da ideologia que fez do Trabalhista inelegível por anos”.
Sua eleição em 2015 —com 60% dos votos, frente aos 19% e 17% dos seus opositores, ex-membros dos governos Blair e Brown— levou a mídia local a discutir amplamente o conflito interno, tratando-o até mesmo por “guerra civil”, no caso do Telegraph. Em 2016, quando sua liderança foi desafiada, uma nova eleição deu-lhe 61,8% dos votos (313,209 dos votos populares) frente aos 38,2% (193,229 votos) do opositor, Owen Smith. O motivo da nova votação foi a tensa disputa das campanhas em torno do referendo sobre o Brexit, que em junho de 2016 resultou na opção popular pela saída do bloco por uma estreita margem —quase 52% contra 48%, com participação de 72% dos eleitores.
O Partido Trabalhista apoiou a permanência do Reino Unido na UE, mas buscou não se associar oficialmente à campanha pelo mesmo objetivo promovida por David Cameron, o premiê conservador que propôs o referendo na expectativa de confirmação. Aliás, a derrota foi o que provocou a demissão de Cameron, levando Theresa May ao cargo que desde então ocupa, encarregada de negociar a saída britânica.
Corbyn foi à época acusado por alguns membros de seu partido de não atuar o suficiente na defesa da permanência. Após o resultado do voto popular, na conferência do partido, em setembro de 2016, diversos membros propunham a defesa de um novo referendo. A conferência aprovou a defesa da possibilidade de se realizar um novo voto popular —ou seja, que a chance esteja “sobre a mesa”, não especificamente a consulta em si— caso May não consiga assegurar um acordo de saída que o Parlamento aprove, ou caso não haja uma eleição geral. Corbyn, por outro lado, instou à adoção imediata das medidas necessárias para a saída.
Parlamentares trabalhistas promoveram um voto de desconfiança para removê-lo do governo paralelo que se constitui oficialmente no sistema britânico —composto pelo líder e membros da oposição nomeados; são as “sombras” dos ministros e primeiro-ministro, desempenhando funções denominadas “ministro/a sombra” das diferentes pastas. Mas o resultado do referendo foi apenas o gatilho de uma ação já anunciada contra Corbyn desde sua eleição, com questões como seu rechaço aos ataques contra a Síria promovidos por Cameron e comentários alegadamente antissemitas dados como motivos concretos de oposição à sua liderança.
O manifesto adotado em 2018 defende uma Grã-Bretanha “Para a Maioria, Não para Poucos”. Na introdução, Corbyn afirma: “A Bretanha precisa negociar um acordo para o Brexit que coloque nossa economia e padrões de vida em primeiro lugar. Isso não será alcançado por motes vazios e marcação de posição. Não podemos arriscar nossas ligações com nosso maior parceiro comercial. Ao invés disso, precisamos de uma Brexit que priorize o emprego e nos permita fazer nossa economia avançar para o século 21.”
Sobre a Síria, Corbyn consultou os membros do partido por e-mail. “Estou escrevendo para consultá-los sobre o que acham que a Grã-Bretanha deve fazer. Deve o Parlamento votar pela autorização dos bombardeios à Síria?”, perguntou o novo líder, em mensagem de novembro de 2015, reproduzida pelo Telegraph. Já as alegações de antissemitismo —problema real e grave, como já reconhecido por Corbyn— integram uma tendência mais generalizada de ataque àqueles que se apresentam como alternativas, sobretudo de esquerda.
Por exemplo, mais recentemente, nos Estados Unidos, tática similar colocou a deputada Democrata Ilhan Omar —de origem somali, recém-eleita e amplamente celebrada por quebrar paradigmas— no centro de acaloradas discussões quando ela acusou o lobby sionista nos EUA de financiar alguns políticos para garantir o apoio estadunidense a Israel. Pressionada, Omar pediu desculpas pelas declarações, interpretadas como expressão de um estigma preconceituoso contra judeus como gananciosos endinheirados com o poder de controlar decisões políticas. A deputada reconheceu a existência do antissemitismo e de tais estigmas. Entretanto, ela havia esclarecido que a condenação era contra a atuação do Comitê Americano de Relações Públicas de Israel (AIPAC), amplamente criticado por sua ofensiva no cenário político-eleitoral estadunidense em prol dos interesses da classe específica de líderes colonialistas, belicosos e racistas de Israel. Mesmo assim, ela busca uma reaproximação com grupos judaicos. Já nesta quarta (20), o diário israelense Haaretz comenta que a maior parte dos convidados por Omar para uma reunião pertence a grupos de judeus progressistas, que se opõem às políticas colonialistas.
De volta à Grã-Bretanha, a polêmica em torno de Corbyn tem matiz semelhante. Embora reconheça a necessidade de lidar com o antissemitismo eficientemente — em 2018, por exemplo, o líder trabalhista pediu desculpas por diversos casos e prometeu avançar com as medidas disciplinares, dizendo que o partido tem sido demasiadamente lento em lidar com o problema— as acusações contra Corbyn parecem servir outro propósito.
O sindicalista britânico e judeu Tony Greenstein, fundador da Campanha de Solidariedade à Palestina e declarado antissionista, tem denunciado a confusão. Note-se, o antissionismo é a oposição a uma ideologia supremacista e colonialista promovida por líderes israelenses e aliados em diversas partes, não uma oposição aos judeus; a confusão é instrumental. Em 2016 Greenstein escreveu uma carta aberta publicada no site Free Speech on Israel (“Liberdade de Expressão sobre Israel) à parlamentar Joan Ryan, que então condenou o parlamentar trabalhista Richard Burgon em suas declarações de que “o sionismo é inimigo da paz”.
Greenstein elencou uma série de guerras, masscares e políticas implementados pelos sucessivos governos israelenses como compromissos sionistas que evidenciam tal contradição no âmago do que é um “movimento de colonialismo de povoamento”. O sindicalista escreve ainda: “Espero que você entenda agora por que crescente número de judeus opõem-se ao sionismo e por que nos somamos ao Arcebispo Desmond Tutu [que lutou contra o regime de apartheid na África do Sul] no apoio a uma campanha por Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel. Boicotar o apartheid nunca é antissemita ou racista”.
Em 2018, a discussão envolveu a adoção da definição de antissemitismo promovida pela Aliança Internacional pela Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês), uma organização “que une governos e especialistas para fortalecer, avançar e promover a educação, a pesquisa e a memória do Holocausto e implementar os compromissos da Declaração de Estocolmo de 2000”, segundo sua página oficial. Mas muitos dos exemplos do que a Aliança considera antissemitismo são problematizados por diversos membros do partido e analistas internacionais; seu escopo pode permitir a aplicação do conceito aos críticos das políticas ou aos defensores da resistência ao regime israelense de ocupação e colonização da Palestina.
Em suma, está em jogo a disputa ideológica por um Partido Trabalhista com chances reais de vencer as eleições britânicas no seu retorno à esquerda, por uma política contrária ao imperialismo e ao neoliberalismo que o engolfaram em seus últimos governos e que o impediram de apresentar alternativa progressista aos governos conservadores. Apesar dos erros, de que já se extraem lições, a manipulação de temas efetivamente sensíveis como o antissemitismo e o Brexit, em termos simplórios e casos atomizados, fica cada vez mais exposta pelo que é, uma tática desmobilizadora e diversionista das questões de fundo.
* Doutoranda em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB