Conflito será superado apenas com “solução política geral”, diz pesquisador russo
Em Donbass, o nazifascismo é odiado pelo povo desde a 2ª Guerra, afirma Alexandr Jarlámenko.
Em entrevista, Alexandr Jarlámenko analisa conflito sob uma perspectiva história e diz que ele só será superado com uma “solução política geral”.
Entrevista de Marco Weissheimer para o site sul21
No dia 24 de fevereiro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que tropas russas estavam se dirigindo para a região de Donbass, no leste da Ucrânia, onde estão localizadas duas repúblicas separatistas pró-Rússia (Donetsk e Lugansk), que foram reconhecidas como independentes pelo governo russo. Donbass é uma região rica em carvão e berço de um movimento operário forte cujas origens remontam à Revolução Socialista de 1917. Naquele ano, Donbass foi dividida entre as duas repúblicas soviéticas, a Federação Russa e a Ucraniana, embora a maioria de sua população fosse de língua russa. O motivo da divisão era o chamado problema das nacionalidades, pois entre a Rússia e a Ucrânia faltava uma fronteira étnica marcada e existia uma vasta área com uma população mista, diz Alexandr Jarlámenko, analista e pesquisador do Instituto de América Latina da Academia Russa de Ciências (ILA RAS). Um problema que atravessou a Segunda Guerra Mundial marcado pela luta contra o nazismo e que, a partir de 2014, ressurgiu com força, inclusive como conflito militar envolvendo populações russas e ucranianas.
Em entrevista ao Sul21, concedida via WhatsApp, Jarlámenko analisa esse conflito sob uma perspectiva histórica e defende que a solução para ele muito dependerá, entre outras coisas, de uma solução política geral que precisa ser construída, levando em conta o que aconteceu a partir de 2014. Em fevereiro de 2014, nacionalistas ucranianos, apoiados pelos EUA e pela União Europeia, derrubaram o presidente Yanukovych, oriundo do Donbass. “Saindo de Kiev, destacamentos fascistas marcharam em direção ao Donbass. Na primavera de 2014, o povo de Donbass se levantou em massa, proclamou as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e formou suas milícias populares, com a ajuda de alguns voluntários da Rússia e de outros países”, relata Jarlámenko.
Naquele momento, a Rússia negou o ingresso de Donbass na república, o reconhecimento oficial e a proteção com suas tropas, preferindo reconhecer as eleições na Ucrânia e iniciar negociações com o governo de Kiev, Alemanha e França. Foi assim que foram assinados os acordos de Minsk, que acabaram não se concretizando na prática, o que ajuda a entender o conflito atual. Alexandr Jarlámenko fala também sobre as marcas que o nazismo deixou na região desde a Segunda Guerra Mundial, que, segundo ele, estão muito presentes na memória da população de Donbass.
Sul21: O senhor poderia falar um pouco do significado histórico e político da região de Donbass, no contexto do atual conflito que envolve Ucrânia e Rússia?
Donbass é uma região de colinas localizada perto do Mar de Azov, entre os rios Don e seu afluente Seversky Donetz. Daí provém o seu nome – “Donetzky basséin”, ou, de forma abreviada, Donbass. É um território muito rico em carvão de alta qualidade, importante recurso energético, metalúrgico e químico. Também é uma região rica em terras férteis. Desde o século 19, cresceram em Donbass muitas populações mineiras e, mais tarde, dezenas de cidades industriais. As maiores são Donetsk e Lugansk, sede das duas regiões administrativas, agora declaradas repúblicas. A população de Donbass, com alguns milhões de habitantes, é misturada por sua procedência étnica (russa, ucraniana, servia, búlgara, grega, etc.), mas todos falam russo.
Por sua formação social, Donbass foi uma das regiões com maior presença operária desde o início do século passado, sendo um baluarte do Partido Bolchevique. Foi palco de muitas greves e lutas clandestinas e rebeldes durante as revoluções de 1905-1907 e 1917, e, mais tarde, nos combates contra alemães e o exército “branco”, que combateu a Revolução Bolchevique, no período entre 1918 e 1920. Durante a Segunda Guerra Mundial, resistiu à ocupação nazista de 1941-1943, a um custo de dezenas de milhares de vidas de soldados comunistas e de jovens da Komsomol (União Comunista da Juventude), torturados até a morte ou sepultados vivos pelas tropas de Hitler e seus cúmplices traidores russos e ucranianos. Em Donbass, o nazifascismo é muito odiado pelo povo.
Desde a revolução socialista de 1917, Donbass foi dividido entre as duas repúblicas soviéticas, a Federação Russa e a Ucraniana, embora a maioria de sua população fosse de língua russa. Essa decisão foi motivada pela solução do problema das nacionalidades, pois entre a Rússia e a Ucrânia faltava a fronteira étnica marcada e existia uma vasta área com uma população mista. Além disso, os bolcheviques tentaram aumentar a proporção da classe trabalhadora revolucionária e internacionalista dentro da Ucrânia, que estava fortemente infestada de nacionalismo. Atualmente, os nacionalistas russos, e até o próprio Putin, muitas vezes culpam os bolcheviques pela chamada “fragmentação da Rússia”, ignorando o caráter único e inseparável da União Soviética como um estado, onde as fronteiras administrativas não eram de importância primordial, até sua destruição pelos anticomunistas na década de 1990.
No referendo de 1991, a maioria da população soviética, tanto na Rússia quanto na Ucrânia, votou pela manutenção da União. No mesmo ano, seu voto foi apagado pelo golpe na Rússia, liderado por Boris Ieltsin. O novo presidente russo declarou publicamente: “A Rússia poderá viver sem a Ucrânia, e a Ucrânia sem a Rússia, não”. Com isso, ele ajudou os nacionalistas ucranianos a ganhar seu próprio referendo em favor da “Ucrânia independente”. Em dezembro de 1991, os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia dissolveram a União Soviética, sem qualquer mandato constitucional. Apressando a restauração capitalista e curvando-se ao imperialismo mundial, os governantes ignoraram a população bielorrussa na “Ucrânia independente” e, acima de tudo, o povo “vermelho” de Donbass, que não era do seu agrado.
Esta população russa sofreu com o declínio econômico e o nacionalismo anti-russo desenfreado, com a imposição da língua ucraniana como única e obrigatória, e exaltação aberta dos fascistas ucranianos de Bandera. Tudo isso foi rejeitado pelos habitantes de Donbass, bem como a falta de toda autonomia regional na Ucrânia unitária. Era tolerável, desde que burocratas e burgueses de língua russa predominassem no governo ucraniano, e alguma integração econômica com a Rússia fosse mantida, sustentando a indústria do Donbass.
Sul21: O que significaram os acontecimentos de 2014 neste processo para a região de Donbass e suas relações com Ucrânia e Rússia?
Em fevereiro de 2014, nacionalistas ucranianos, apoiados pelos EUA e pela União Europeia, derrubaram o presidente Yanukovych, do Donbass. Saindo de Kiev, destacamentos fascistas marcharam em direção ao Donbass. Seu povo não podia esperar nada além de vingança e terror fascistas, e o fechamento total de seu ramo de carvão de acordo com as instruções da UE. Na primavera de 2014, o povo de Donbass se levantou em massa, proclamou as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e formou suas milícias populares, com a ajuda de alguns voluntários da Rússia e de outros países.
O movimento rebelde antifascista e de libertação nacional no Donbass incluía pessoas de diferentes crenças e convicções, mas na maior parte da esquerda espontânea pró-soviética. Começaram com as manifestações convocadas perto dos monumentos de Lenin, já destruídos na Ucrânia. As milícias populares lutavam sob bandeiras vermelhas e sonhavam em retornar ao poder soviético. Após o referendo na Crimeia e sua decisão de entrar na Rússia, os rebeldes do Donbass tentaram seguir esse exemplo. Eles promoveram seu próprio referendo em maio de 2014 e votaram da mesma forma.
Naquela época, diferentemente do caso da Crimeia, a Federação Russa negava o ingresso de Donbass na república, o reconhecimento oficial e a proteção com suas tropas. A liderança russa preferiu reconhecer as eleições na Ucrânia promovidas após o golpe e iniciar negociações com o governo de Kiev, Alemanha e França. Foi assim que foram assinados os acordos de Minsk, que estipulavam autonomia para as repúblicas de Donetsk e Lugansk na Ucrânia. Com isso, a liderança russa esperava manter suas relações com o Ocidente, distanciar a UE dos EUA, alcançar o reconhecimento da Crimeia russa e usar o Donbass como alavanca para sua influência na Ucrânia.
Sul21: O que acabou não dando muito certo, aparentemente…
Os acordos de Minsk não agradaram a ninguém. O lado de Kiev falhou completamente em cumpri-los. Kiev declarou o que chamou de “operação antiterrorista” no Donbass, criminalizando os integrantes das milícias populares como supostos “terroristas” e “agentes da Rússia”. O exército ucraniano foi rearmado pelos países da OTAN e saturado por batalhões de extrema direita com muitos mercenários estrangeiros. Após o período de ofensivas e retiradas de ambos os lados em 2014-2015, as repúblicas de Donbass foram bloqueadas na faixa ao longo da fronteira russa, com Donetsk e Luhansk sob fogo de artilharia ucraniana. A Rússia serviu de retaguarda para o abastecimento das milícias e da população, sem a qual não resistiriam.
Também conseguiu protegê-los de ataques aéreos com o estabelecimento da “zona de exclusão aérea”. A atividade de guerra estava concentrada em duelos de artilharia e incursões de grupos especiais. Do lado ucraniano, essa atividade teve caráter terrorista. Com sua artilharia de foguetes, destruiu muitas cidades e bairros urbanos, com milhares de vítimas civis. A Ucrânia também é culpada de muitos casos de tortura e assassinato de prisioneiros de guerra. Quase todos os comandantes reconhecidos das milícias do Donbass foram vítimas de homens infiltrados da Ucrânia.
Sul21: E como esse conflito se desenrolou agora em 2022?
No início de 2022, as repúblicas de Donetsk e Lugansk estavam em apuros, com sua economia destruída, sua população empobrecida e quase esgotada. O regime de Kiev concentrou a maior parte de seu exército no setor ocupado de Donbass, construindo várias linhas de defesa lá. Ele preparou um ataque surpresa para isolar as repúblicas fronteiriças russas, com a subsequente chacina de integrantes das milícias populares e civis.
No início de fevereiro de 2022, a liderança das repúblicas anunciou a evacuação em massa da população civil para o território russo. Este drama serviu de gatilho para o tão adiado reconhecimento das repúblicas pela Federação Russa (que ocorreu no dia 21 de fevereiro). Muitos esperavam que o exército russo primeiro entrasse nas repúblicas de Donbass, terminasse seu cerco e depois libertasse seus territórios ocupados.
De fato, a ofensiva russa foi direcionada a alguns centros políticos na Ucrânia. Por sua vez, os golpes ucranianos contra o Donbass não cessaram até agora. Talvez as repúblicas não pudessem ser defendidas sem grandes perdas da população civil e dos combatentes do Donbass e da própria Rússia, devido à alta concentração de militares ucranianos e mercenários nesta frente. Parece que o lado russo está tentando cercar o inimigo e expulsá-lo do Donbass, a fim de minimizar a destruição e as perdas humanas. Seja o que for, muito dependerá da solução política geral que for construída.
Fonte: Sul 21