Covid-19 e as dez razões para uma catástrofe americana
Quando Marx escreveu que “há algo podre na essência de um sistema que aumenta a riqueza sem diminuir a miséria”, não poderia ter imaginado o engenho com que esse sistema conseguiria esconder tanta miséria sob a casca da riqueza. Mas a pandemia veio revelar como é frágil a casca e podre o seu interior.
Por António Santos
Nos EUA desvela-se, sob a casca do país mais rico do planeta, o mais indecoroso terceiro-mundismo: o povo estadunidense está à mercê da morte. “Entre 200.000 e 240.000 americanos vão morrer”, sentenciou Trump na semana passada, advertindo, contudo, que no dia 12 de abril os estadunidenses devem voltar ao trabalho. De costa a costa, somam-se sinais de uma veloz desagregação: nunca a taxa de desemprego cresceu tanto em tão pouco tempo — em duas semanas dez milhões de pessoas perderam o trabalho; nunca os índices de criminalidade aumentaram tão rapidamente — só na última semana, o número de crimes aumentou 20% e nunca se venderam tantas armas em tão pouco tempo — uma explosão de 80% num só mês.
- O presidente não agiu atempadamente: Trump demorou 70 dias até tomar a primeira medida, desperdiçando a fase mais crucial para a contenção.
- Todos os níveis de governo falharam: a arquitetura descentralizada do poder mostrou-se inapta para enfrentar a epidemia com agilidade e consistência: de Estado para Estado, de cidade para cidade, as estratégias de contenção foram confusas, descoordenadas e lentas.
- A OMS não foi ouvida: a Casa Branca desestimou repetidamente as recomendações da Organização Mundial de Saúde, ao ponto de recusar os kits de teste oferecidos por esta organização, criando uma escassez sem paralelo na OCDE.
- Não há Saúde pública: em vez de um serviço de saúde público, gratuito e universal, os EUA têm um sistema baseado em seguros de saúde privados e movidos pela sede de lucro, o que deixa 60 milhões de pessoas sem acesso a cuidados.
- Desigualdade extrema: embora Trump garanta que estão todos no mesmo barco, só alguns levam colete salva-vidas. Os pobres e os negros são, desproporcionalmente, os que mais se infectam e os que mais morrem com COVID-19. Em Chicago, por exemplo, os negros compõem apenas 30% da população mas representam 70% dos infectados.
- O grande capital recusou sacrifícios: da indústria farmacêutica a Silicon Valley, os grandes grupos econômicos se recusaram a abrir mão de um cêntimo que fosse. A GM, por exemplo, recusou-se a produzir ventiladores até ao início de abril.
- As ajudas são para os mesmos: Trump admitiu que o programa de alívio financeiro para a pandemia, o CARES, que pode injetar até 6,2 trilhões de dólares na economia, prevê 4,5 trilhões para os grandes grupos econômicos e para a banca e apenas 1,7 trilhões para a saúde, as pequenas empresas, os 50 Estados e os trabalhadores.
- Os trabalhadores vivem num trapézio sem rede: Nos EUA, 32 milhões de trabalhadores não têm qualquer tipo de baixa médica paga, 45% não têm poupanças e outros 25% têm menos de 1000 dólares na conta. 60% não aguenta um mês sem trabalhar.
- Décadas de cortes: há 50 anos que os organismos públicos úteis numa pandemia são alvo de cortes bipartidários. Trump, por exemplo, acabou de cortar o orçamento dos Centros de Controle de Doenças, do Medicaid, do Medicare e do Instituto Nacional de Saúde.
- O capitalismo: O capitalismo não procura preservar a vida, mas os lucros. É da sua própria natureza. A pandemia surge por isso para muitos capitalistas como uma oportunidade de negócio, para alguns como um prejuízo e, para muitos, como um pretexto para destruir a produção e recomeçar mais uma crise cíclica.
Fonte: Avante!