Em fim de mandato, Trump transforma execuções em estandartes políticos
“Causa espanto a afirmação, feita por alguns analistas do campo democrático, de que Biden e Trump seriam iguais, ou até mesmo que Trump seria melhor em alguns aspectos”.
Por Wevergton Brito Lima*
Existe um debate nos setores progressistas sobre o que esperar de Joe Biden à frente a presidência dos EUA: irá seguir a cartilha dos últimos governos democratas e misturar o vago apoio a temas “consensuais” (contra o racismo, a homofobia, etc.) com um feroz imperialismo externo e um draconiano neoliberalismo interno? Ou tentará “refundar” o Partido Democrata, aproximando-o mais dos interesses dos trabalhadores e apostando no multilateralismo (ou o que os americanos entendem que seja multilateralismo) para tentar recuperar a autoridade moral de “líder” do mundo?
É um debate válido. Sou do time dos que não alimentam grandes ilusões sobre Joe Biden, pelo caráter intrinsecamente predatório e agressivo do imperialismo estadunidense. Por outro lado, causa espanto a afirmação, feita por alguns analistas do campo democrático, de que Biden e Trump seriam iguais, ou até mesmo que Trump seria melhor em alguns aspectos. Considero essa percepção pouco atenta ao que Trump fez, fala ou representa.
O estandarte do obscurantismo
Donald Trump não é só um político destituído de qualquer empatia pelos trabalhadores pobres, além de racista, negacionista, xenófobo, obscurantista e misógino. Trump é tudo isso destituído de qualquer mediação. Estes “atributos” são, para ele, estandartes exibidos orgulhosamente.
Uma nota à parte: Como se tudo isso não bastasse, Trump pessoalmente é desprezível. Une em si a crueldade e a covardia. Adora guerras e armas, mas desde que a guerra seja travada por outros. É documentado que durante a agressão de seu país ao Vietnã fez de tudo para escapar à convocação recorrendo a cinco “isenções”, quatro por motivo educacional e uma por motivo médico.
O médico de Trump deu a ele, em 1968, um atestado dizendo que seu paciente tinha um esporão de calcâneo (proeminência óssea que cresce no calcanhar), e assim o jovem magnata escapou de “servir à pátria” na guerra que ele tanto enaltecia. O engraçado é que quatro anos antes Trump havia se formado na Academia Militar de Nova Iorque, talvez, quem sabe, usava na época um calcanhar emprestado de outra pessoa.
Voltando a Donald Trump como figura política, vamos a um exemplo dramático do seus “métodos”.
No início do segundo semestre deste ano o desgaste na popularidade do ocupante da Casa Branca era visível. O desastroso enfrentamento da pandemia, os protestos contra a violência racial, entre outros fatores, inverteram a expectativa, inicialmente favorável à sua reeleição. Trump decidiu então, para reforçar seu papel de “durão contra o crime”, interromper um hiato de 17 anos sem execuções federais e retomar a aplicação da pena de morte. Foram oito execuções desde então, meticulosamente calculadas para reforçar sua fama de justiceiro implacável sem, no entanto, jogar lenha na fogueira dos protestos.
Assim, a escolha foi executar inicialmente uma série de homens brancos condenados por matar crianças. Porém, a estratégia pouco ajudou. Trump perdeu as eleições e a partir desta quinta-feira (10) teremos mais cinco execuções, desta vez de quatro negros e uma mulher (a primeira a ser executada em 70 anos).
O primeiro da nova leva de execuções será Brandon Bernard. O jornal El País faz um resumo do caso: “Brandon Bernard é um afro-americano de 40 anos, preso por participação em um assalto que culminou em duplo homicídio ― não executado por ele ―, quando tinha 18 anos. Teve uma defesa deficiente. Dos 12 jurados que o condenaram, todos, exceto um, eram brancos. Agora, cinco deles dizem que ele não deveria ser executado. Uma promotora que contribuiu para sua condenação, Angela Moore, escreveu duas semanas atrás, em um artigo de opinião no jornal The Indianapolis Star, que ‘executar Brandon seria uma terrível mancha para a honra da nação’.” Nesta terça-feira (8), um juiz federal negou a suspensão da execução.
No dia 15 de janeiro de 2021, 5 dias antes do término do mandato de Trump, será executado o quarto negro, Dustin Higgs, condenado por participar do assassinato de três mulheres, nas quais ele não atirou.
Aberração histórica e novos estandartes
Robert Durham, diretor do Centro de Informações sobre Pena de Morte, declarou ao telejornal PBS NewsHour nesta segunda-feira (7):
“É difícil entender por que alguém neste estágio da presidência se sente compelido a matar tantas pessoas … especialmente quando o público americano votou em outra pessoa para substituí-lo e essa pessoa disse que se opõe à pena de morte”, disse Durham. “Esta é uma aberração histórica completa. Desde os últimos dias da presidência de Grover Cleveland no final dos anos 1800, o governo dos EUA não executou presos federais durante uma transição presidencial”.
Joe Biden, o presidente eleito, citado por Robert Durham, foi defensor da pena de morte e inclusive ajudou a aprovar leis que ampliaram seu alcance. No entanto, durante a campanha disse que havia mudado de posição e prometeu trabalhar para abolir a pena capital.
“Esses casos (os cinco que serão executados) constituem quase um catálogo perfeito dos tipos de casos que não deveriam resultar em pena de morte”, diz Robert Dunham.
Se as execuções forem adiante, e tudo indica que, infelizmente, irão, Trump será, em 130 anos, o presidente que mais mandou cumprir penas capitais.
Coincidências?
Robert Durham, na declaração reproduzida mais acima, disse que era difícil entender os motivos de Trump. Não concordo. Brandon, o primeiro dessa nova série de mortes, será executado no Dia Internacional de Direitos Humanos. Dustin Higgs será executado no dia de nascimento de Martin Luther King. Mortes emblemáticas em dias emblemáticos, que servirão como estandartes para os seguidores da extrema-direita assassina e sanguinária, nos EUA e no mundo, Brasil inclusive.
Quem duvida do surgimento de posts e memes na internet, celebrando as “coincidências”?
Trump é, assim, a face de uma extrema-direita que ostenta desprezo total pelos valores humanistas e civilizacionais.
Não se pode, portanto, confundir um tipo como Donald Trump (ou Bolsonaro) com qualquer outro da direita. Estes personagens (Trump, Bolsonaro e similares) representam uma determinada corrente, que talvez ainda careça de uma conceituação consensual, mas que por ora podemos chamar de extrema-direita neofascista.
É preciso sempre ter em conta o inimigo como ele é, se queremos de fato derrotá-lo e, em algum momento, submetê-lo – e a seus mais importantes seguidores – a um novo Tribunal de Nuremberg, para que pague por seus crimes contra a humanidade.
* Editor do i21