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Esquerda europeia condena revisionismo anticomunista no Parlamento

Com a participação de 50,6% dos eleitores na votação de maio para o Parlamento Europeu (PE), a extrema-direita não dominou a situação, como se prenunciava. O Partido Popular Europeu, dito centrista, ficou com a liderança condicionada, devido à bancada reduzida; o grupo Conservadores e Reformistas Europeus perdeu força, mas a direita e os Liberais ascenderam e diminuiu a representatividade da esquerda. Mantém-se, porém, o revisionismo histórico das forças majoritárias, equiparando o nazi-fascismo ao comunismo de forma quase caricata, não fosse perigosa.

Por Moara Crivelente*

Em 19 de setembro, por maioria dos votos de seus 751 membros de 28 países, o órgão legislativo da União Europeia (UE) aprovou a resolução “sobre a importância da memória europeia para o futuro da Europa”. O projeto foi apresentado por deputados dos Grupos do Partido Popular Europeu (PPE), da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), do Renova (Renew) e do Reformistas e Conservadores Europeus (ECR, na sigla em inglês). O texto abre com a esvaziada declaração de “princípios universais dos direitos humanos e os princípios fundamentais da União Europeia enquanto comunidade baseada em valores comuns” — aquela UE que, segundo seus líderes, deve se “proteger” entre muros e redobrar a vigilância, obviamente antidemocrática, contra a esquerda.

Rememorando à sua maneira a Segunda Guerra Mundial — em leitura desonesta que deturpa e tenta deslegitimar o papel da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) — com referências a declarações, decisões e resoluções anteriores quase tão ou igualmente questionáveis, a maioria parlamentar prega no texto a “necessidade de condenação internacional dos crimes dos regimes comunistas totalitários”. Note-se que o comunismo é mencionado mesmo antes do nazismo e do fascismo, o que denota a prioridade conferida à sua difamação, em detrimento do cada vez mais urgente combate às ideias racistas, xenófobas, autoritárias e beligerantes do fascismo e nazismo que se vê reemergir.

O Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Nórdica Verde (GUE/NGL) no PE emitiu nota no mesmo dia da aprovação da resolução, condenando “nos mais firmes termos a tentativa de usar o 80º aniversário do início da Segunda Guerra Mundial como pretexto para marcar pontos políticos e para o revisionismo histórico.”

O grupo considera que a coalizão autora do texto busca “prejudicar a solidariedade na UE ao equacionar o regime nazista assassino aos ideais socialistas e comunistas de igualdade e justiça”; que a resolução “justifica as proibições não democráticas de partidos comunistas em alguns estados membros e, por extensão, legitima a repressão de organizações de esquerda e da resistência em toda a Europa em apoio a causas socialmente progressistas e contra a ameaça real da extrema-direita”; e que o exercício “representa uma tentativa de divergir a atenção de problemas reais e urgentes que os nossos cidadãos enfrentam: a ascensão da extrema-direita, a crise social, a emergência climática e o legado continuamente devastador deixado pela política neoliberal de austeridade da UE.”

Rechaçando a equação do comunismo ao nazismo como um “insulto” à memória histórica, o grupo denuncia que a coalizão majoritária no PE “mais uma vez retornou à sua obsessão sobre a ideologia e a governança antidemocrática”.

Membro do GUE/NGL, o Partido Comunista Português (PCP) também emitiu nota denunciando a resolução: “O texto agora aprovado promove as mais reacionárias concepções e falsificações da História contemporânea, numa deplorável tentativa de equiparar fascismo e comunismo, minimizando e justificando os crimes do nazi-fascismo e silenciando as coniventes responsabilidades das grandes potências capitalistas – como o Reino Unido ou a França – que abriram caminho ao início da Segunda Guerra Mundial na esperança de empurrar as hordas nazistas contra a URSS, como efetivamente se veio a verificar, com os imensos custos humanos e materiais para a União Soviética, que nenhum outro país susteve.”

Deturpando o contexto histórico em que foi assinado, o Pacto Ribbentrop-Molotov de 1939 é frequentemente apresentado como exemplo de alegada correspondência de interesses e práticas entre a Alemanha nazista e a União Soviética, o PCP enfatizou. A referência é reiterada na propaganda anticomunista: o portal da emissora Euronews chega a referenciar Mikhail Gorbachev como a fonte que “revela o segredo” de massacres alegadamente cometidos pelo Exército Vermelho mas atribuídos aos nazistas.

O PCP denunciou a intencionalidade na omissão em referência aos tratados assinados pelas potências imperialistas também naquele contexto, como “o Pacto de Concórdia e Cooperação, de 15 de Julho de 1933, assinado entre Reino Unido, França, Alemanha e Itália, que abriu caminho ao rearmamento da Alemanha; ou o apoio militar de Hitler e Mussolini a Franco e ao golpe fascista que conduziu à guerra civil em Espanha, cujo governo fascista seria reconhecido por França e Reino Unido em Fevereiro de 1939; ou a Conferência de Munique, de que resultaria o Tratado com o mesmo nome, assinado a 30 de Setembro de 1938 entre Alemanha, França, Itália e Reino Unido, para o desmembramento da Checoslováquia, ocupada pelo exército nazi, com partes do seu território ocupados pela Polónia e Hungria. Ou a sabotagem dos governos francês e inglês aos esforços para negociar um pacto de assistência mútua entre os seus países e a URSS, que impedisse uma segunda guerra mundial, alentando aqueles governos a expectativa de um conflito germano-soviético.”

Por isso, afirma o PCP, “[a] resolução adotada pela maioria do PE não só apaga o conluio dos grandes monopólios alemães com Hitler, como procura apagar o contributo decisivo dos comunistas e da União Soviética para a derrota do nazi-fascismo e para a libertação dos povos do jugo colonial após a Segunda Guerra Mundial,” em referência ao apoio decisivo da URSS e estados socialistas revolucionários como Cuba nas lutas por libertação nacional, sobretudo na África.

Membro do Departamento de Relações Exteriores do Partido Comunista Italiano, Francesco Maringiò, em artigo no portal Global Research, afirma: “o mesmo partido que governa a Itália e a UE aprova uma resolução (mais uma) que alinha o nazismo e o comunismo. Não é a primeira vez”, continua, em referência a táticas de “criminalizar os sindicatos e organizações comunistas, numa verdadeira caça às bruxas que obviamente não mirou, entretanto, naqueles que cometeram crimes de guerra e crimes contra a humanidade nas fileiras das organizações nazistas e fascistas que subjugaram o continente. Ao contrário, o caso da Ucrânia mostra como o retorno ao poder de organizações abertamente nazistas é aceito e defendido por instituições europeias.”

Como coloca o PCP, a UE, “entidade que, pretendendo dar ao mundo lições de ‘democracia’ e ‘direitos humanos’, promove retrocessos de dimensão civilizacional, atacando direitos sociais e laborais, a soberania nacional e a democracia,” pois está “ao serviço do grande capital e das grandes potências, e na qual estão em desenvolvimento tendências e práticas repressivas de limitação de direitos e liberdades fundamentais, assim como militaristas.”

Fica patente a urgência da vigilância e do combate a uma propaganda persistente contra as forças de esquerda, especialmente o movimento comunista, e a um revisionismo perigoso sustentando teses antidemocráticas e práticas repressivas que já minam as liberdades e o progresso de políticas pautadas pelos anseios por justiça social em diversos países e instituições, inclusive aquela que se autoproclama a concretização da democracia e da civilização no planeta.

* Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB

 

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