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Luciana Santos: entrevista ao jornal “Diário do Povo”, da China

Entrevista concedida pela presidenta do PCdoB ao histórico jornal da revolução chinesa “Diário do Povo” fundado em 15 de junho de 1948, na província de Hubei. Em março de 1949 foi transferido para Pequim, e declarado órgão oficial do Partido Comunista em agosto do mesmo ano. Hoje ele já conta 74 anos de publicação contínua.

A primeira pergunta do jornalista Jimmy Chen do jornal Diário do Povo: ele pergunta se Luciana poderia fazer uma breve introdução sobre o Partido Comunista do Brasil, sobre sua história, estrutura e a política do Partido, e, além disso, o jornalista está interessado em saber algo sobre as relações entre os dois partidos, o PCdoB e o PCCh.

L.S. — Este ano o Partido Comunista do Brasil completou 100 anos de lutas contínuas pelo socialismo em nosso país. Enfrentamos o desafio de elaborar um Programa partidário que não apenas estabeleça os objetivos a alcançar, mas que também descortine os caminhos para a transição ao socialismo, de acordo com as nossas características nacionais.

Neste sentido, levando em conta que completamos no último dia 7 de setembro o bicentenário de nossa independência ainda incompleta, a questão nacional e a defesa da soberania ocupam lugar destacado. E assim, definimos em nosso Programa Socialista lutar por um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND). Durante a atual campanha presidencial defendemos um amplo arco de alianças democráticas e progressistas que interrompa o atual governo de forças reacionárias e neofascistas lideradas pelo atual presidente Jair Bolsonaro.

O PCdoB está convicto de que o Brasil reúne condições para se tornar uma Nação influente no cenário internacional – como já teve a oportunidade de se colocar justamente no período dos governos de Luís Inácio Lula da Silva — uma Nação soberana, democrática, socialmente avançada e integrada com seus vizinhos latino-americanos.

Para isso estamos lutando para promover reformas estruturantes nas dimensões políticas, sociais e econômicas no país, que permitam um desenvolvimento sustentável, com distribuição de renda e a conquista de um patamar superior da ciência, da tecnologia e da inovação, abrindo caminho para a transição ao socialismo. Por isso o nosso esforço para construir uma ampla frente única desde a primeira eleição de Lula em 1989 – para derrotar as forças conservadoras e reacionárias que infelicitavam nosso país e nosso povo há muito tempo.

Segundo o texto do nosso programa, “a conquista da hegemonia pelas forças interessadas na transição ao socialismo exige acumulação de forças de caráter revolucionário via reformas estruturais e rupturas”. Foi então que resolvemos participar como Partido político da coligação que concorreu à presidência da República tendo como candidato e depois presidente, Lula da Silva, que venceu a eleição, e constituiu o governo que emergiu da vitória popular de 2002.

A segunda questão é de como encaramos as relações entre nossos dois partidos e dois Estados na atualidade. Aqui devemos destacar a importância do respeito mútuo nas relações entre partidos, inclusive no tratamento de eventuais divergências. O PCdoB, na atividade internacional, atua movido pela busca da unidade, pela cooperação e solidariedade militante, baseado nos princípios do internacionalismo proletário. Valorizamos as articulações multilaterais como o Foro de São Paulo e atuamos com empenho no Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, sendo que o PCdoB faz parte do Grupo de Trabalho destes dois importantes espaços. Apoiamos decididamente também o fortalecimento do MERCOSUL e dos BRICS que recentemente aprovaram ampliar seus membros constituintes.

Sobre as relações Brasil-China

No passado, depois de 1974, Brasil e China procuraram desenvolver sua profunda e tradicional amizade entre seus respectivos povos, mesmo ainda sob o domínio de um regime militar instalado no país em 1964. Antes mesmo do estabelecimento de relações diplomáticas muitas personalidades brasileiras e chinesas mantiveram relações de cooperação e amizade

Lembro-me de um grande biólogo e comunista brasileiro chamado Samuel Pessoa que realizou uma pesquisa científica na China e na península coreana estudando a inoculação de veneno em insetos na China e na Coréia organizada por americanos durante a Guerra. Esse trabalho científico teve uma grande repercussão internacional que fez com que Mao Tsetung, o então presidente da China, considerasse Samuel Pessoa um herói nacional.

Na verdade durante as décadas de luta do Exército Vermelho da China contra o governo do Kuomintang de Chiang Kai Chek, os militares chineses estudaram as experiências militares no mundo inteiro inclusive a conduzida por Luís Carlos Prestes no Brasil, que ficou conhecida como a Coluna Prestes. Sem dúvida os chineses tiraram lições dessa batalha vitoriosa em sua manobra da Grande Marcha.

No plano político, durante o governo de Jânio Quadros, a política de alargamento de parceiros comerciais e de busca por prestígio internacional permitiu uma aproximação inicial com a República Popular da China culminando com a visita do vice-presidente João Goulart à China. Isso foi em agosto de 1961. Na ONU o Brasil firmou posição que eventuais desacordos ideológicos não o impediriam mais de manter relações com todos os países do mundo.

Mas com a instauração de um golpe militar em 1964, a política externa brasileira voltou a ser fortemente influenciada por ideias e valores discriminatórios, passando a atacar os comunistas e afastando-se da China Popular. Na década de 1970, no entanto, com vistas a aumentar sua legitimidade, diversificar parceiros e abrir novas oportunidades no plano internacional, China e Brasil resolveram pautar suas políticas externas por critérios mais pragmáticos.

Com o governo Ernesto Geisel (1974-1979) mesmo na presença de resquícios de elementos ideológicos contra os países socialistas, o Brasil resolveu apostar na parceria com a China, oficializando as relações diplomáticas entre os dois países.

A política externa cooperativa adotada nas relações com a China permitiu a construção de um sólido diálogo político de mais de 20 acordos bilaterais nas mais diferentes áreas ao longo de 11 anos (1974-1990) período necessário para a superação da fase embrionária e ingresso no período de institucionalização das relações bilaterais.

Com o final da Guerra Fria, a retomada da expansão do capitalismo no início da década de 1990 provocaram grandes transformações internacionais com consequências marcantes sobre a conduta internacional do Brasil e da China. As deficiências do Estado brasileiro não permitiram a articulação de um programa amplo, integrado e coordenado com a China, capaz de elevar as relações a um patamar mais elevado.

A segunda pergunta do jornalista Jimmy Chen é sobre as expectativas de Luciana a respeito do próximo XX Congresso do Partido Comunista da China a ser inaugurado no dia 16 de Outubro.

L.S. — Acredito que a realização do XX Congresso do Partido Comunista da China se revestirá de grande importância, não somente para os chineses, mas também para a situação mundial. A jornada pela construção de um país socialista moderno em todas as dimensões, como reafirmou Xi Jinping numa reunião recente em Beijing, estabelecerá os objetivos e os desafios políticos e econômicos pelas causas do PCCh nos próximos cinco anos. Xi Jinping também lembrou que todos os esforços estão sendo feitos para avançar na construção de uma sociedade próspera em todos os seus aspectos, promovendo o desenvolvimento de alta qualidade, avançando nas reformas rapidamente, mas de forma estável, promovendo um sólido processo de desenvolvimento da democracia popular e da cultura socialista.

A terceira pergunta do jornalista chinês é qual o comentário de Luciana sobre uma afirmação do presidente Xi Jinping quando ele se refere às características do padrão da modernização – no caso a modernização do tipo socialista liderada pelo Partido Comunista Chinês. Ele pergunta o que a presidenta Luciana acha do sentido da expansão chinesa no sentido da modernização.

L.S. — Essa concepção de que cada país deve encontrar as formas e os meios de organizar o seu desenvolvimento nacional e sua modernização é uma política com a qual o Partido Comunista do Brasil concorda e procura aprimorar no seu Programa Socialista.

O PCdoB combateu sempre uma visão mecânica de como cada país deve aplicar o marxismo-leninismo em suas respectivas nações. Por isso é legítimo e acertado que o PCCh procure desenvolver o socialismo com as características próprias, chinesas.

Na quarta pergunta do jornalista do Diário do Povo, ele procura saber se Luciana considera que a política de Xi Jinping poderia beneficiar países como o Brasil com a política de construção de uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade.

L.S. — Com a sua política interna e externa de construção de uma comunidade de futuro compartilhado, a China vai alterando a lógica que prevaleceu não somente durante o período do colonialismo e do neocolonialismo, mas também que prevalece ainda hoje no cenário internacional do imperialismo como política de estado de grandes potências capitalistas. Ao invés da política de intervencionismo praticada pelos países imperialistas, onde se procura explorar os recursos humanos e naturais dos países em desenvolvimento, a China trilha o caminho de “O Cinturão e a Rota” (Belt and Road) onde todos os países envolvidos adotam políticas de ganha-ganha, construindo infraestruturas duráveis que permitem as trocas comerciais vantajosas para ambos os países envolvidos.

Além disso, essa política internacional fortalece os laços de cooperação com os países que compõem os BRICS, que recentemente assinaram, em seu 14º Encontro de Cúpula, realizado em Beijing em junho último, uma declaração importante em que os cinco países – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – se comprometem a persistir no espírito do respeito mútuo, da igualdade, da solidariedade, da abertura, da inclusão e do consenso, fortalecendo a confiança mútua, a cooperação intra-BRICS e as relações inter-povos, que podem conduzir a grandes conquistas.

Da mesma maneira, essa política praticada pela China fortalece continuamente o multilateralismo, através do desenvolvimento das leis internacionais, baseado na Carta das Nações Unidas e no papel da ONU no sistema internacional de países soberanos, comprometido com o desenvolvimento sustentável, a promoção da democracia, dos direitos humanos fundamentais e a cooperação pautada no espírito do respeito mútuo, da justiça e da igualdade.

Na quinta pergunta do jornalista ele pede a opinião de Luciana sobre a situação atual do Brasil diante das próximas eleições de outubro, e também o reflexo disso na América Latina. Ele pergunta sobre as perspectivas da eleição e do candidato Lula como representante de uma federação de partidos que envolve o PCdoB, o PT e o Partido Verde.

L.S. — Estamos a 15 dias do primeiro turno das eleições presidenciais mais importantes do Brasil desde a redemocratização. Guardadas as diferenças históricas, a disputa atual tem correlação com a jornada democrática que embalou o país na campanha pelas eleições diretas. Contudo, nesta campanha de 2022, se constituiu pela conformação de dois campos antagônicos, um com um projeto autoritário e retrógado de poder representado pela candidatura de Jair Bolsonaro; e outro campo como expressão de uma frente ampla, construída com as singularidades do atual momento, liderada pela candidatura do ex-presidente Lula.

Bolsonaro opera em duas frentes, de um lado utiliza todos os recursos de poder que a Presidência da República lhe outorga e por outros meios inconstitucionais que conseguiu por meio da compra de apoio político parlamentar via orçamento secreto. Em outra frente, o atual presidente procura engajar seus seguidores contra a Justiça do país e levantando suspeição sobre as urnas eletrônicas. Procurou a todo custo transformar a simbólica data do dia 7 de setembro — marco de nossos 200 anos de independência — em um comício eleitoral com discurso de mau gosto, usando termos chulos e tentando comparar sua esposa com a companheira de Lula. Tentou descaracterizar o desfile que tradicionalmente ocorre nesta data magna para se transformar em de suas manifestações políticas eleitorais.

A campanha da Federação da Esperança e seus aliados em torno da candidatura de Lula, corretamente, luta para impor ainda no primeiro turno uma derrota ao projeto de Bolsonaro. Para que se tenha ou não segundo turno, o percentual não é maior do que 5%. A luta é intensa para buscar votos dos eleitores, como também para angariar novos apoios.

Nesta sexta pergunta o jornalista Jimmy Chen pergunta a respeito da situação da América Latina.

L.S. — No panorama internacional está ficando cada vez mais evidente a queda relativa da hegemonia norte-americana em contraste com o ressurgimento da China. A OTAN e os EUA tentam cercar a Rússia na Ucrânia e promovem intervenção política e econômica em Taiwan, rompendo acordos estabelecidos entre os EUA e a China que consideram a província rebelde parte integrante do território chinês.

Em relação à América Latina, podemos dizer que nos últimos anos houve um grande movimento progressista e democrático em vários países — do México até a Argentina — reagindo à aplicação do receituário neoliberal e antidemocrático no continente. No México, na Colômbia, na Venezuela, no Chile, na Bolívia, em Honduras, Guatemala, Peru, Argentina, assistimos situações de resistência e de avanço democrático contra o intervencionismo especialmente dos Estados Unidos no chamado hemisfério Ocidental.

Os americanos têm utilizado em sua ação mecanismos de intervenção direta com pressões diplomáticas, usando inclusive formas jurídicas (lawfare), capacitações militares e de segurança para cooptar quadros burocráticos e políticos para exercer as funções de defesa do interesse americano. Observamos também interferências indiretas, com ações de pressão de financiamentos empresariais e ambientais, além de outras tantas intervenções clandestinas através de agências de segurança, redes de lobistas e informantes infiltrados.

Exemplo desse tipo de interferência nós assistimos na campanha que foi desencadeada em nosso país contra a ex-presidenta Dilma Rousseff que sofreu um processo de impeachment e foi retirada do poder — e a campanha contra o ex-presidente Lula, que sofreu perseguição jurídica com participação de órgãos de inteligência dos Estados Unidos, condenado e preso para não poder concorrer à presidência em 2018. Na Venezuela, verificamos pelo relato de John Bolton, ex-assessor de Segurança Nacional do governo dos EUA e também ex-embaixador do país na ONU, que afirmou publicamente que ajudou a planejar tentativas de golpes de Estado em países estrangeiros e citou o caso da Venezuela.

Outros exemplos podemos obter com as declarações do embaixador dos Estados Unidos na Argentina, Marc Stanley, defendendo abertamente que a oposição ao atual governo argentino deveria fazer uma aliança desde já para enfrentar uma candidatura do peronismo nas eleições de 2023. O atual presidente do México, Lopes Obrador, denunciou também recentemente que a embaixada dos EUA no México financia diretamente um empresário da Corporação Kimberley-Clark para disputar as eleições de 2024. E no Paraguai, na semana passada, o embaixador americano interferiu publicamente desqualificando um candidato a presidente acusando-o de corrupto. Precisamos ter presente que os EUA estão mais interessados é nas possíveis reservas de urânio, titânio e terras raras e uma grande reserva de água do Aquífero Guarani, além da reserva de lítio no Chaco paraguaio.

Na sétima pergunta do jornalista da imprensa chinesa, ele pergunta sobre o fenômeno de que em vários países da América Latina a esquerda assumiu o governo e como este processo poderá continuar no futuro. E como o Partido Comunista do Brasil encara as novas gerações de jovens na política?

L.S. – A esquerda escolheu como forma de acumulação de forças a participação política institucional parlamentar e a atuação no movimento social em função da luta de massas. Para enfrentar as forças neoliberais e conservadoras alimentadas por interesses estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos, a esquerda tem atuado com uma orientação de construção de amplas alianças democráticas e progressistas. Assim, cada país com suas características próprias, a esquerda tem procurado construir projetos nacionais de desenvolvimento enfrentado contradições e intervenções que relatei em resposta anterior.

Com relação à juventude o Partido Comunista do Brasil tem se dedicado com muita atenção à formação política destes jovens e também à organização de grandes entidades juvenis, como a União da Juventude Socialista, a UJS, e as organizações de massas como a UNE – União Nacional dos Estudantes, a UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas entre outras entidades da juventude.

Na oitava pergunta do jornalista Jimmy Chen, ele pergunta sobre como a presidenta do PCdoB encara as obras do presidente Xi Jinping sobre a Governança da China?

L.S. – Como presidente do Partido Comunista do Brasil, a leitura dos livros de Xi Jinping é uma referência fundamental. Em nossos cursos de formação política dos militantes comunistas brasileiros, a obra de Xi Jinping se destaca. Inclusive um de nossos grandes dirigentes partidários, que faleceu no ano passado vítima da COVID 19, Haroldo Lima, juntamente com o jornalista Pedro de Oliveira, sugeriram aos responsáveis pela Embaixada da República Popular da China no Brasil a publicação dos dois primeiros volumes do Pensamento de Xi Jinping no Brasil. E se encarregaram de estabelecer as ligações para que a Editora Contraponto, do Rio de Janeiro, imprimisse a obra, o que foi feito com sucesso. A edição do terceiro volume dessa importante obra de Xi Jinping está em andamento e logo poderemos ter disponíveis para os leitores brasileiros.

Na última pergunta o jornalista pergunta quantas vezes Luciana Santos esteve na China. E também pergunta sobre as impressões pessoais da presidenta do PCdoB em relação às viagens que realizou para a China.

L.S. — Eu estive na China três vezes. Sempre foram viagens muito interessantes e enriquecedoras. Poder ver de perto os efeitos concretos das políticas de desenvolvimento é sempre uma experiência valorosa. Neste sentido nos dedicamos especialmente em cultivar as relações entre cidades irmãs Brasil—China e províncias irmãs da mesma forma, sendo que aqui no Brasil chamamos as províncias de Estados federados.

Observamos que os camaradas chineses seguem uma filosofia centrada nas pessoas. Como a erradicação da pobreza é uma das prioridades do Estado, essa agenda está sempre presente em planos de desenvolvimento da China a médio e longo prazos, a fim de assegurar a coerência das políticas e a estabilidade dos apoios financeiros. Há planos de ação em todas as esferas de governo, além de um completo mecanismo de planejamento de trabalho que pode ser visto em todos os locais que visitamos.

Num outro plano, mais cultural, me impressionou observar as manhãs em Xangai, as pessoas se exercitando no parque do povo, também a Cidade Proibida e seus séculos de história e, como não poderia deixar de ser, a Muralha da China, que é uma obra fabulosa da engenharia chinesa. Como engenheira que sou, ela me fascina de um jeito muito especial.

Fonte: Blog do Renato

 

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