Visão Global

Reunificação do Chipre está em jogo nas eleições do Norte ocupado

Da esq. para dir.: Ersin Tatar, nacionalista de direita e Mustafa Akinci, atual presidente

Neste domingo (11) decorreram eleições presidenciais na “República Turca do Norte do Chipre”, que não tem reconhecimento internacional. Deve haver segundo turno, em uma semana. O momento é de tensão: o premiê da região ocupada, operada como república independente, acaba de reabrir Varosha, bairro sitiado de onde os residentes foram evacuados há 46 anos. Na disputa eleitoral está em jogo a reunificação do Chipre, dividido de fato desde a invasão pela Turquia, em 1974.

Por Moara Crivelente*

Relatos da mídia europeia noticiam as eleições no território ocupado como “cruciais” para a retomada de conversações de paz, pelo fim das quase cinco décadas de divisão da ilha no Mediterrâneo entre greco-cipriotas e turco-cipriotas e da ocupação do norte pela Turquia. O pleito tem sido examinado também devido aos sinais de interferência por parte do governo da Turquia.

O atual presidente Mustafa Akinci é citado como um moderado que prometeu impulsionar o plano de reunificação do Chipre, se reeleito. Foi ele quem denunciou a interferência de Ancara nas eleições, segundo The Guardian, registrando ter sofrido ameaças pessoais. Seu principal oponente é Ersin Tatar, nacionalista de direita e atual primeiro-ministro que conta com a simpatia do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.

No final do dia, a contagem parcial de 98,6% dos votos indica que haverá um segundo turno, previsto para 18 de outubro. Nenhum dos candidatos conseguiu 50% dos votos: segundo a mídia turca, o atual premiê Tatar conquistou 32,45% e Akinci, 29,76%. Concorreram também o líder do Partido Turco Republicano, de centro-esquerda e favorável à reunificação, Tufan Erhürman, que conquistou 21% dos votos, e Kudret Özersay, atual vice-premiê e chanceler, que ficou com 5,75%.

Tatar, que defende a divisão permanente do Chipre, decidiu nesta semana pré-eleitoral reabrir o bairro de Varosha, em Famagusta, evacuado em 1974. O local, então habitado por dezenas de milhares de pessoas e onde também funcionava um resort, ficou cercado por militares e completamente esvaziado de habitantes ao longo das últimas décadas. O passeio de pessoas portando bandeiras turcas e turco-cipriotas pelas ruas antes desertas, após a sua reabertura, foi espetaculoso. A medida provocou o protesto de antigos residentes greco-cipriotas forçados a deixar seus lares durante a invasão turca.

No sábado (10), Aristos Damianou, membro do Comitê Central do Partido Progressista do Povo Trabalhador (AKEL), comunista e greco-cipriota, disse em nota oficial que a reunião de alto nível conduzida com a Turquia em setembro deveria ter encerrado suas ações provocadoras na Zona Econômica Exclusiva da República do Chipre, mas que ao invés disso, a Turquia e Tatar decidiram impor fatos consumados com a reabertura de Varosha, violando as resoluções da ONU. A decisão foi condenada pelo Conselho de Segurança, a União Europeia e outros fóruns.

O dirigente também nota a má conduta do governo da República do Chipre, liderado pelo partido conservador e de centro-direita Aliança Democrática (DISY), mas diz que é o momento de um esforço coletivo para reverter a tendência imposta pelos líderes turco-cipriotas favoráveis à divisão da ilha e pelo governo Erdogan. “É tempo de agir com sentido de urgência” e de forma unitária, afirma, em prol da retomada de negociações. “O quadro [para uma solução] é uma Federação bi-comunal, bi-zonal, com igualdade política, como tem sido descrito nas resoluções da ONU”, e demais acordos interinos alcançados nos últimos anos —“sem retrocessos”, diz o dirigente. “O visível perigo que se aprofunda, de consolidação de um status quo de divisão, não permite atrasos ou o cultivo de ilusões. Precisamos de ações que revertam os planos da Turquia de fragmentação e cumpram nosso próprio objetivo de libertação e reunificação da nossa pátria,” apela Damianou.

No mesmo dia, em nota separada, Damianou também saudou a declaração do Conselho de Segurança da ONU que reafirmou o status de Varosha, enfatizando que nenhuma ação deve ser levada a cabo no local para além daquele status, pendente da condução de negociações. O órgão da ONU também reforçou o compromisso com o quadro almejado para a solução da questão, descrito por Damianou.

Décadas de divisão e ocupação

Ao malfadado golpe pela sobrevivência da junta de governo de extrema-direita na Grécia (1967-1974) seguiu-se a invasão do Chipre pela Turquia, em 1974, e a declaração de independência pela “República Turca do Norte do Chipre” em 1983, que nunca alcançou reconhecimento internacional. Mais de 30% do território cipriota está sob ocupação e a capital, Nicósia, ficou também dividida, com um posto de controle militar e um muro atravessando a cidade.

Desde os confrontos de 1974, uma zona tampão entre as duas partes da ilha é regulada pela operação das Nações Unidas de manutenção da paz (UNFICYP), que havia sido estabelecida ainda em 1964 pelo Conselho de Segurança da ONU, a pedido do Reino Unido e do governo do Chipre, diante dos confrontos entre as duas comunidades.

A República do Chipre é membro da União Europeia (UE) desde 2004 e, mesmo sem reconhecê-la oficialmente, a UE investe em conversações com autoridades da “República Turca do Norte do Chipre”, sobretudo no momento de elevada tensão devido à exploração de recursos energéticos na costa cipriota pela Turquia.

Além disso, a Turquia promove a colonização do norte por um crescente número de imigrantes e a caracterização do território como islâmico, aponta o Guardian. As conversações diplomáticas, de que Akinci participou, colapsaram em 2017. Por outro lado, cresce o número de turco-cipriotas favoráveis à reunificação e há cada vez mais jovens desafiando a conscrição, recusando-se a servir o exército, como objetores de consciência. Buscam evitar, assim, que o território se torne mais uma província da Turquia, como nota o Guardian, numa iniciativa declarada antifascista e antimilitarista.

A ilha, que fora também controlada pelo Reino Unido, ainda tem encravadas no território as “áreas soberanas das bases de Akrotiri e Dhekelia”, bases militares de onde britânicos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) gerem “operações de inteligência” —inclusive contra a Síria. O Reino Unido chegou a dividir as bases e instalações com os Estados Unidos. A área tem um status de “território ultramarino” britânico, resultante do tratado de independência de 1960 alcançado entre Reino Unido, Grécia, Turquia e as comunidades greco-cipriotas e turco-cipriotas.

Além disso, em julho o secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo declarou que os EUA realizariam exercícios militares conjuntos com a República do Chipre e forneceriam apoio militar à ilha, encerrando o embargo estadunidense em vigor desde 1987 e contrariando a Turquia, seu aliado e membro fundador da OTAN. O pretexto estadunidense continua sendo contribuir com a estabilidade e a segurança no Mediterrâneo e, mais especificamente, na ponte com o Oriente Médio.

Não se pode subestimar, portanto, a relevância dos acontecimentos desta semana naquela ilha do mediterrâneo, cujo povo luta pela reunificação, pelo fim da ocupação turca e pela retirada de tropas estrangeiras, inclusive das bases militares que servem às guerras da OTAN.

Cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)

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