Luta dos povos

Venezuela e as guerras híbridas na América Latina

Publicado no Dossiê nº 17 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / junho de 2019

Venezuela no centro da ofensiva imperial

Em 29 de abril, a tentativa de gerar um levantamento militar para dar um golpe contra o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, fracassou. Quase dois meses antes, sob a justificativa da entrada de ajuda humanitária, já havia falhado a tentativa de forçar a travessia da fronteira venezuelana a partir da cidade colombiana de Cúcuta, que poderia permitir uma intervenção militar estrangeira. Entre um fato e outro, o governo estadunidense de Donald Trump aprofundou o cerco econômico, financeiro e militar, acentuando inclusive o bloqueio a Cuba, a apropriação de ativos venezuelanos no exterior e as ameaças de uso da força. Protestos e mobilizações foram promovidos pela oposição, embora sem o significado de outros momentos.

A Venezuela e o processo bolivariano tornaram-se, hoje, o terreno privilegiado de uma batalha central da ofensiva neoliberal e imperial que se iniciou na América Latina em 2015, ou ainda, em uma perspectiva mais ampla, desde o golpe em Honduras em 2009. Um renovado intervencionismo americano, que transformou a disputa em torno do presente e do futuro da Venezuela em um ponto central do confronto geopolítico global, ameaça abrir na região um cenário de guerra e destruição que já devastou outros povos da Ásia e da África nas últimas décadas. Essas ameaças mostram a variedade de repertórios de intervenção utilizados pelo governo dos EUA, por seus aliados e pelo poder econômico sobre o povo venezuelano nos últimos anos e, em uma perspectiva maior, desde o fracassado golpe de 2002 (Stedile, 2019).

Formas de ingerência imperial que alguns autores caracterizaram como “guerras híbridas”, uma combinação de guerra não convencional com a insurgência de atores da sociedade civil, tais como as chamadas “revoluções coloridas”, que abarcam assim forças estatais e uma variedade de atores não estatais (Korybko, 2018). Essas formas de ingerência também foram analisadas como a aplicação de uma “doutrina de dominação de espectro total”, ou seja, opera sobre todas as esferas da vida social e, particularmente, no domínio dos corpos, corações e mentes da população. Consideradas como “guerras assimétricas” ou “guerras difusas”, o que implica em intervenção e controle de todas as esferas de reprodução e a organização da vida em uma guerra não declarada, que não reconhece fronteiras e se difunde por todo o corpo social (Ceceña, 2013); também são chamadas de “guerras de quinta geração” (Borón, 2019).

Este dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, com o objetivo de contribuir para o debate sobre as formas de dominação que acompanham a ofensiva neoliberal e imperialista atualmente na América Latina, faz uma reflexão sobre as diferentes dimensões dessa guerra híbrida que recai sobre a Venezuela e as razões que a motivam, e também sobre outras experiências latino-americanas recentes onde estão sendo ou foram aplicadas táticas similares.

Corregimiento de El Mango, município da Argélia, departamento de Cauca (Colômbia).
Cortesia de Marcha Patriótica

A natureza da ofensiva neoliberal e as guerras pelo controle dos bens comuns da natureza

A crise capitalista iniciada em 2008 mostrou a crescente debilidade do projeto hegemônico estadunidense. Uma hegemonia que começou a ser questionada há várias décadas, mas cujo retrocesso se torna evidente no último decênio. Nesse contexto, uma série de países chamados emergentes, sobretudo na Ásia Oriental, foram se transformando pouco a pouco em um novo eixo de acumulação global de capital. Entre eles, a China aparece como aquele capaz de pôr em xeque a hegemonia dos EUA através de projetos como a “Nova Rota da Seda” ou sua crescente presença econômica na África e na América Latina (Merino e Trivi, 2019).

Diante dessa situação, uma das saídas utilizadas pelo capital e pelo imperialismo estadunidense foi uma nova ofensiva neoliberal global, com o objetivo de reforçar um padrão de acumulação predatório e aprofundar a financeirização e a transnacionalização da economia. Esse novo ciclo neoliberal se expressa, hoje, na intensa e voraz apropriação dos bens comuns da natureza, o que intensifica as disputas por seu controle entre as potências globais. Assim, existe hoje, a nível internacional, uma competição exasperada pelos territórios e bens naturais que explica o porquê de tantos conflitos bélicos e guerras convencionais e não convencionais.

Nesse sentido, é possível perceber como essas guerras se desenrolam, por exemplo, nos territórios ricos em petróleo, como mostra o mapa a seguir, elaborado por Ana Esther Ceceña. O mesmo mapa que em 2000 “delimitou a área de atenção prioritária do Pentágono, segundo Thomas Barnett, professor da Escola de Guerra Naval dos Estados Unidos” (Ceceña e Barrios Rodriguez, 2017). Vemos, portanto, que as zonas de guerra das últimas décadas seguem a rota do petróleo.

Para os EUA, o domínio sobre essas áreas tem um papel central para conter sua crise de hegemonia mundial diante do bloco de países que pode disputar ou questionar esse lugar de potência global (Rússia, China, Irã, Coreia do Norte e os grupos não estatais). A região da América Latina e Caribe, considerada pela geopolítica estadunidense como seu “quintal”, sua “zona natural de influência”, rica em bens comuns naturais, ocupa um lugar central nessas disputas. Vale recordar sobre isso o peso das importações estadunidenses de certos minerais extraídos na América Latina e Caribe. A região fornecia, segundo dados de 2010, 93% do estrôncio, 66% do lítio, 61% da fluorita, 59% da prata, 56% do rênio, 54% do estanho e 44% da platina para os EUA (Brukman, 2011). Por outro lado, o controle sobre a produção de energia, petróleo, minerais, água, terra, biodiversidade e o ar proporciona um benefício extraordinário para os investimentos do capital estadunidense e estrangeiro na região.

Na busca por controlar esses bens naturais, a nova estratégia utilizada pelos Estados Unidos, além das guerras convencionais, são as guerras híbridas ou difusas, que já mencionamos, e que buscam explorar as debilidades e limites políticos, militares e econômicos dos governos da região considerados hostis, apoiando e fomentando, ao mesmo tempo, as forças de oposição. Essas intervenções buscam assegurar não só o controle desses bens comuns, mas também de seus mercados, das rotas comerciais mais importantes (terrestres, fluviais, marítimas), das redes de transporte desses bens (oleodutos, gasodutos), da geração e provisão de energia, e até da população desses territórios, em função dos interesses do capital.

Certamente, a Amazônia se encontra entre um dos territórios mais importantes, a nível regional e global, onde se concentram esses bens naturais. Uma região única em biodiversidade, diversidade cultural e social, com povos e culturas milenares e seus valiosos conhecimentos sobre a utilização de plantas, animais, e a criação de formas de vida distintas. Uma região fundamental para a hegemonia dos Estados Unidos no continente que além do mais tem um papel na integração sul-americana, uma vez que se estende por nove países da região. Nesse sentido, a Amazônia é um território sobre o qual opera essa atual ofensiva neoliberal sobre os bens comuns da natureza, o que foi analisado em nosso dossiê nº 14 (ITPS, 2019).

A Venezuela, parte da região amazônica, é hoje uma peça chave dessa ofensiva imperialista, particularmente, por suas imensas reservas de hidrocarbonetos que a colocam em uma posição estratégica. Lembremos que esse país conta com as maiores reservas de petróleo do mundo atualmente, superando inclusive as da Arábia Saudita, embora nem todas reservas tenham necessariamente a mesma qualidade. Ainda que outras fontes de energia estejam sendo desenvolvidas, o petróleo continuará sendo por um tempo ainda o “ouro negro” vital para a produção econômica e para a indústria militar. De imediato, sua escassez não fará nada mais do que exasperar a disputa pelo controle das reservas disponíveis. Além disso, devido à sua proximidade geográfica e, por conta disso, à possibilidade de economizar recursos em transportes para os EUA, a mesma frase que costuma se usar para o México serve para a Venezuela: “tão longe de Deus e tão perto dos EUA”. Dessa forma, o controle de suas riquezas e territórios é de enorme relevância estratégica para os EUA.

Sobre isso, é simbólico que os conflitos tenham começado a partir do momento em que o presidente Hugo Chávez e o povo venezuelano procuraram retomar o controle da exploração do petróleo e de outros bens naturais a favor do desenvolvimento de seu próprio país. Recordemos que o falido golpe de Estado de 2002 foi uma reação do poder econômico às novas leis dos hidrocarbonetos e de terras, editadas pelo governo, e que o processo de lutas que se abriu depois do fracasso do golpe implicou, entre outras questões, vencer um locaute petroleiro que queria mudar as formas de gestão da estatal PDVSA.

Certamente, para os Estados Unidos, o objetivo é recuperar a Venezuela como espaço privilegiado para a produção petroleira, garantindo inclusive que a exploração seja feita por empresas estadunidenses, em especial a Exxon e a Chevron. Em contrapartida, a opção venezuelana continua sendo a exploração por meio da PDVSA, empresa estatal que cumpriu um papel importante em garantir os processos de redistribuição de renda gerados pelos governos bolivarianos. Diante do bloqueio e do cerco econômico e financeiro estadunidense dos últimos anos, o governo venezuelano avançou em uma política de busca de canais alternativos e maiores acordos comerciais e financeiros com outros países. Nessa direção, promoveu a comercialização do petróleo através da criptomoeda “petro” e inclusive em bolívares, tentando abandonar o dólar em suas transações, iniciativa que faz parte de um processo mais amplo. Outros países como Rússia, Irã e China também avançaram nesse sentido, e mesmo a União Europeia começa a considerar comercializar gás com a Rússia em euros. A Venezuela também avançou na diversificação dos compradores das exportações petroleiras e em novos acordos financeiros e comerciais. Em virtude do embargo econômico estadunidense, por exemplo, a China se converteu gradualmente no maior credor da Venezuela e, em 2018, o governo de Nicolás Maduro conseguiu um importante empréstimo de 5 bilhões de dólares. Assim, parte do pacote acionário da companhia CITGO, de propriedade da PDVSA, foi passada à empresa russa Rosneft como contrapartida de outro empréstimo. Nesse sentido, a política de agressão e pressões levada a cabo pelos governos estadunidenses e em particular o bloqueio econômico e financeiro – que incluiu recentemente a expropriação dos ativos venezuelanos no exterior e inclusive de sua participação da CITGO – não apenas golpeia o povo venezuelano, como examinaremos adiante, mas reforça a centralidade que o processo venezuelano possui nas disputas geopolíticas globais e a urgência da multipolaridade e de alternativas. O petróleo não é o único bem natural no território venezuelano que faz parte dessas disputas. A Venezuela conta também com importantes jazidas de ouro, além de reservas de níquel, ferro, diamantes e outros. Riquezas que despertam o interesse da China, Rússia e também, claro, dos Estados Unidos e Canadá, este último, um importante articulador do “Grupo de Lima”.

Campanha eleitoral, Venezuela. Fevereiro de 2018 / Foto: Rosana Silva

A guerra econômica contra o povo venezuelano como parte da guerra híbrida

Como afirmamos anteriormente, a dinâmica da guerra híbrida promovida pelo império para derrocar governos não alinhados é multidimensional. Portanto, a dimensão econômica é chave para gerar uma situação de descontentamento que logo dá lugar a fase da “guerra de guerrilhas”, segundo assinala Korybko (2018), a partir do estudo dos documentos de treinamento das Forças Especiais para a Guerra Não Convencional do Exército dos Estados Unidos.

Sem dúvida, conhecemos uma longa história de intervenções do império com o objetivo de asfixiar economicamente a população dos países não alinhados, responsabilizando os próprios governos por essa situação. Desde o bloqueio a Cuba em outubro de 1960, consolidado em 1996 sob a presidência de Bill Clinton quando foi aprovada a famosa lei Helms-Burton, passando pelas operações de sabotagem e desabastecimento ao governo de Salvador Allende em 1973 e as hiperinflações que percorreram a América Latina entre os anos 1980 e 1990 – o pontapé inicial para a aplicação do Consenso de Washington – as intervenções econômicas imperiais foram uma constante. As operações sobre a República Bolivariana começaram já no governo de Hugo Chávez e foram crescendo em direção a um maior controle das intervenções estrangeiras, promovendo a fuga dos capitais e a especulação sobre a moeda, instrumentando novas travas comerciais e impulsionando o desabastecimento programado; todas elas são as formas concretas de intervenção do império nesse plano (CELAG, 2019).

Essa estratégia que começou em 2012 atingiu, em 2017, um maior grau de beligerância e agressividade contra o povo. Esses objetivos da guerra econômica foram explicitados pelo próprio chefe do Comando Sul dos EUA, Kurt Kidd, no conhecido texto intitulado “Golpe Mestre”: “Incrementar a instabilidade interna a níveis críticos, intensificando a descapitalização do país, a fuga de capital estrangeiro e a deterioração da moeda nacional, mediante a aplicação de novas medidas inflacionárias que incrementem essa deterioração […] obstruir as importações e ao mesmo tempo desmotivar os possíveis investidores estrangeiros” (Kurt Tidd, citado em Curcio, 2018, p. 27). Podemos sintetizar as múltiplas ferramentas de intervenção econômica do império em três dimensões: a produtiva-distributiva, a comercial e a financeira (Curcio, 2018).

Sobre a primeira, partimos de uma situação conhecida: os países da América Latina têm uma estrutura produtiva orientada, sobretudo, para a exportação de bens primários. Venezuela não é exceção e o peso da produção petroleira nas possibilidades de crescimento econômico é inevitável. Em relação ao restante dos bens, como os que o povo consome, a produção nacional melhorou sensivelmente desde que o chavismo passou a governar, mas continua sendo insuficiente para abastecer a demanda popular. Portanto, uma porcentagem muito importante dos bens de consumo massivos é importada e as empresas importadoras são as que têm controlado historicamente a oferta (Vielma, 2018). Essa situação é o pano de fundo de uma forma muito concreta de guerra econômica: a hiperinflação. A grande burguesia que controla os alimentos é a que pressiona a alta dos preços, principalmente por duas vias: desabastecimento de produtos básicos e especulação com a moeda. De acordo com vários intelectuais, esses dois elementos são chave para explicar politicamente a hiperinflação, ou seja, a expressão maior da guerra econômica. Depois de 2017, os preços aumentaram, em média, mais de 2% diariamente, com picos em 2018 e no início de 2019. Isso se explica, segundo a pesquisadora Pasqualina Curcio (2018) que em mais de 90% do crescimento dos preços dos alimentos se devem ao aumento feito pelos grandes fornecedores de alimentos com base na cotização do dólar paralelo publicada pelo Dólar Today (Misión Verdad, 2016), e, ao mesmo tempo, eles retêm os alimentos que têm preços regulados e não os colocam nas gôndolas, resultando em uma escassez induzida. Assim, nenhuma das explicações padrão para a inflação podem ser aplicadas no caso venezuelano; hoje essa é uma estratégia central para gerar descontentamento, caos e desespero no povo. Como se sabe, devido às experiências de outros países da América Latina, a hiperinflação e a recessão induzida pelo poder econômico são uma forma feroz de disciplinamento do povo trabalhador e dos governos populares. O outro lado da moeda dessa situação é o contrabando e o comércio ilegal, do qual participam boa parte dos próprios promotores locais de instabilidade econômica que, por sua vez, provocam a diminuição das importações oficiais para vender depois no mercado negro a preços não regulados e exorbitantes.

A segunda dimensão é conhecida por sua implementação em outros países da Pátria Grande. O mesmo problema de posição dependente de nossos países no capitalismo global faz com que o crescimento econômico dependa crucialmente da obtenção de uma quantidade abundante de divisas para realizar os gastos de consumo necessário. Nesse sentido, sem a entrada de dólares para financiar o processo de crescimento de produção de bens, em geral, e de alimentos, em particular, nossas economias se veem impossibilitadas de acelerar seus processos de crescimento. Ciente disso, o governo dos EUA editou, desde março de 2015, mais de seis decretos que penalizam as atividades econômicas na Venezuela, bloqueiam os montantes disponíveis para importação de alimentos, medicamentos e bens básicos para forçar situações de “crise humanitária”, conforme apontam economistas que não podem ser acusados de chavistas, como Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs (2019). Além disso, são estabelecidas multas e sanções a sócios que comercializem com a Venezuela. Assim é que se leva a cabo várias inciativas que vão desde multas a sócios, até bloqueios e confisco de carregamentos comerciais.

Haiti. 2018 / Foto: Lautaro Rivara

Por último, mas não menos importante, nos encontramos com a dimensão financeira. Nesse ponto, a ofensiva do grande capital e do imperialismo tem sido de uma agressividade inédita em relação a outros processos populares. Desde 2015 e com maior intensidade desde 2017, os Estados Unidos impediu as operações financeiras da Venezuela como Estado soberano (emissão da dívida e de instrumentos financeiros). Além de não permitir a transferência de títulos do governo nos mercados financeiros, também proíbe a PDVSA de emitir instrumentos para obter financiamento em dólares em diferentes mercados. Isso se desenvolveu ao ponto do congelamento da mobilidade dos fundos da empresa CITGO – empresa dependente da PDVSA que opera nos Estados Unidos –, da retenção das reservas de ouro avaliadas 550 milhões de dólares que estavam depositadas no Banco da Inglaterra, da recusa das organizações financeiras internacionais em realizar transações de ou para a Venezuela, de ações judiciais estrangeiras que tentam confiscar ativos públicos do Estado venezuelano, entre outras medidas. Concretamente, desde que Donald Trump assumiu, foram assinados quatro decretos de peso: a Ordem Executiva nº 13827, de março de 2018 contra o criptomoeda Petro (tentativa de resolver o problema de câmbio, Teruggi, 2018); Ordem Executiva nº 13835, de maio de 2018, contra as contas a receber e outras operações da Venezuela; Ordem Executiva nº 13850, contra as operações de comercialização de ouro da Venezuela; e a Ordem Executiva nº 13857, que estabelece o bloqueio/ congelamento dos ativos da CITGO (PDVSA) nos EUA.

O complexo cenário que a pátria bolivariana atravessa nesses dias nos coloca, de uma forma muito clara, que a estratégia do imperialismo, como parte das guerras híbridas, não pode deixar de lado o plano econômico. Sem dúvida, a conjunção de hiperinflação, escassez induzida, limitações à obtenção de dólares comerciais e bloqueio financeiro tenciona a crise que asfixia o povo venezuelano.

Tal como afirmou um porta voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos em uma conferência a imprensa em 2008, a economia é uma arma da desumanizante guerra imperial, em seu formato de guerra híbrida: “A campanha de pressão contra a Venezuela está funcionando. As sanções financeiras que temos imposto […] obrigaram o governo a começar a cair em default, tanto quanto à dívida soberana como na dívida da PDVSA, sua companhia petroleira. E o que estamos vendo […] é um colapso econômico total na Venezuela” (William Brownfield, ex-embaixador dos EUA, citado no Resumen Latinoamericano).

Nesse mesmo sentido, o governo de Donald Trump impôs novas medidas contra Cuba que implicam a possibilidade de processar, em tribunais estadunidenses, empresas estrangeiras que operem na ilha com a desculpa de que essas foram expropriadas de famílias cubano-estadunidenses durante os anos prévios à revolução. Essas medidas foram tomadas em função do disciplinamento econômico de toda América Latina, em particular dos processos de transformação mais radicais, aos projetos da política estadunidense.

Violência e militarização da vida social

O neoliberalismo de guerra e a experiência da Colômbia

A promoção de um cenário de violência e caos na Venezuela tem sido uma estratégia repetida nas tentativas de desestabilização institucional e na construção das condições que permitam até mesmo uma intervenção externa, um golpe de Estado ou uma fratura institucional. Do ciclo das guarimbas e crimes de ódio, ao incitamento de saques e assassinatos seletivos, passando pela promoção da Venezuela à posição de país mais violento da América Latina ou pela sabotagem ao serviço elétrico, foi reforçada na mídia internacional e na sociedade a insegurança e um aumento da violência nos laços sociais, inclusive estimulando a ação de grupos paraestatais que geram como resposta a repressão estatal.

Em um sentido mais amplo, diferentes estudiosos afirmam como a implementação de transformações neoliberais que envolvem um processo de polarização e de crise social exige toda uma série de táticas e tecnologias de choque para impor e governar a crise, incluindo o surgimento de máfias, intensificação da violência e a imposição de uma situação de caos e insegurança na população. Na América Latina, esses processos de difusão da violência social, de militarização das relações sociais e o fortalecimento de um Estado punitivo e de exceção como faces complementares da mesma moeda têm uma longa história. Particularmente em torno do que foi chamado de “neoliberalismo de guerra”, em referência à forma adotada, em diferentes países da América Latina, de continuidade das políticas neoliberais no contexto da crise que desafiou sua hegemonia no início de 2000, recorrendo, assim, à recriação de um consenso baseado na segurança (González Casanova, 2013, Seoane, 2016). Dentre essas experiências pode ser mencionado o caso da Colômbia, especialmente sob o governo de Álvaro Uribe (2002-2010), famoso pelos “falsos positivos”, em referência ao assassinato de milhares de civis pelo Exército que o governo fazia passar como guerrilheiros mortos em combate.

Certamente, no caso da Colômbia, esses processos se inscrevem no marco de um cenário de guerra maior cujo início remonta a 1964, ainda que alguns estudos demonstrem que é continuação da guerra bipartidária ocorrida na primeira metade do século XX (Moncayo, 2015). Nesse devir violento, se constituiu uma classe social que ostenta o poder com vários matizes, não homogênea, formada por comerciantes, latifundiários e, mais recentemente, por grupos enriquecidos com atividades ilegais. Uma classe oligárquica associada aos EUA. Esses grupos dominantes impuseram o neoliberalismo e adequaram a institucionalidade para se sustentar no poder, com uma democracia limitada e um Estado repressor (González Casanova, 2013).

Uma situação que se vê expressa na militarização da vida cotidiana, tanto nas zonas rurais como nas cidades. Segundo dados da Rede de Segurança e Defesa da América Latina (RESDAL) de 2016, a Colômbia era o quarto país da região, atrás do Brasil, Venezuela e México, em quantidade de efetivos das Forças Armadas e o primeiro se considerarmos só o Exército, sendo o terceiro em escala demográfica. Isso significa que, na Colômbia, a cada 220 habitantes existe um membro do exército, ao passo que existe um médico a cada 543 habitantes (Prada e Salinas, 2016). Essa militarização é maior em territórios da periferia, onde se concentram as lutas camponesas, indígenas e afrocolombianas.

Corregimiento de Filo Gringo, Norte de Santander Colombia. Região de Catatumbo.
Cortesia de Marcha Patriótica

(Indepaz, 2019). É evidente que a paz não foi o motivo da desmilitarização. A clara diminuição do confronto armado e o fim do desafio político da maior insurgência do país não foi acompanhada por um projeto de paz completo que incluísse a guerrilha do Exército de Libertação Nacional (ELN), nem se modificaram as condições de acumulação capitalista, descritas anteriormente, que são a fonte do conflito armado interno: a concentração da propriedade e a financeirização da terra.

Ao contrário, o governo dos EUA, encabeçado por Donald Trump, incrementou sua retórica sobre a política antidrogas, um velho argumento para manter a ingerência sobre a Colômbia e região; desde os anos 1990, os EUA têm mantido cerca de 2 mil marinheiros no território colombiano, como assessores, e tem coagido o país a manter a chamada “guerra às drogas e a luta contra o crime transnacional”, cujos efeitos foram desastrosos para as comunidades na Colômbia (Vega Cantor, 2015).

Nas cidades, a militarização é liderada pela Polícia Nacional – além da presença dos militares em algumas zonas. Eles têm uma nova especialidade na agenda de “securitização”: segurança cibernética, uma faceta da repressão que combina um novo território operacional tecnológico com atividades de controle social, gentrificação e segmentação de dados biométricos (Polícia Nacional, 2018). A segurança cibernética apresentasse como uma novidade real, porém eclipsada pela história da militarização da polícia e do controle social. Desde a década de 1960, no primeiro governo conservador da Frente Nacional.

Uma periferia empobrecida pelo modelo neoliberal, assediada pela acumulação primitiva do capital, tanto no monocultivo (que inclui a coca), como na mineração e pecuária extensiva, cujos efeitos são a concentração da propriedade rural, o paramilitarismo e o despejo de camponeses de suas terras (Fajardo, 2005). Na região de Catatumbo, localizada na fronteira norte com a Venezuela, por exemplo, estão aquartelados 9.200 membros das Forças Armadas (sem contar a polícia), em uma região onde habitam 288.452 pessoas, o que significa um militar a cada 33 habitantes. Situação similar é vista nos departamentos de Arauca e Guajira (fronteiriços com a Venezuela), Cauca, Chocó e Nariño (costa pacífica).

A alta militarização dessas zonas e do país, em geral, não tem resultados efetivos para conquistar a tranquilidade ou segurança das comunidades, ao contrário. Os mapas de risco paras as lideranças sociais – ou políticos da oposição – se localizam nos territórios com maior concentração de militares, como demonstra o trabalho da Fundação Indepaz que compilou e georreferenciou o assassinato de lideranças e chegou à conclusão de que os municípios mais violentos para a sociedade organizada são os da região de Catatumbo, Cauca e Arauca (2019).

No intervalo de tempo desde a assinatura do acordo de paz (entre o Estado colombiano e as FARC, em novembro de 2016) até abril de 2019, se registraram 596 assassinatos de líderes sociais, dos quais 265 ocorreram em 119 municípios (de 1.101) com uma alta concentração nas zonas mais militarizadas Dossiê no 17 (1962), a Polícia Nacional realizou atividades militares e não civis (Vargas, 2006).

O controle social, assim, transcende a ordem de controle físico e territorial desenvolvida pelas Forças Armadas, incluindo a Polícia Nacional. A segurança cibernética que eles estão desenvolvendo é a fase superior das estratégias de securitização ligadas às chamadas operações psicológicas que, nas cidades do país, têm sido aplicadas em profundidade (Escobar, 2009). Uma militarização psicológica, de controle de subjetividades, também desenvolvida a partir do governo de Álvaro Uribe com a criação de redes de cidadãos cooperantes articuladas aos planos de contra insurgência – militares e judiciais – que foram utilizados durante o desenvolvimento do Plano Colômbia e da política de Segurança Democrática, destinada a derrotar as lutas sociais e populares contra o neoliberalismo.

Com esse uso da força militar repressiva, apoiada e instigada pelos EUA, as classes dominantes têm conseguido manter um controle social neoliberal, ao passo que os assassinatos de lideranças sociopolíticas são a expressão de una democracia limitada ou restringida. Uma guerra híbrida desenvolvida em grande escala que, entretanto, não conseguiu apaziguar as lutas sociais e populares, pois elas continuam sendo a principal arma dos cidadãos para buscar uma mudança no poder estabelecido. A militarização mantém o país na penumbra, uma longa noite que o movimento social ilumina com suas lutas e desafios para chegar ao alvorecer de uma nova Colômbia.

A ajuda humanitária e as novas formas de governo neocolonial. A experiência do Haiti

Parte da estratégia intervencionista na Venezuela tem se baseado em apontar a existência de uma crise humanitária no país, vinculada à escassez de alimentos, remédios e energia, cuja responsabilidade se atribui ao governo bolivariano. A construção desse cenário de emergência pretende justificar a intervenção estrangeira sob a forma de ajuda humanitária. Em relação a essas ameaças de intervenção, muito se falou da emulação do modelo sírio ou líbio e das tentativas de adaptá-los à realidade caribenha, mas pouco ou nada se analisou sobre o caráter precursor do “modelo haitiano” nesse terreno, central para compreender os fundamentos e as consequências tanto da “ajuda humanitária” quanto das “intervenções multilaterais” na estratégia do capital e do império.

Nesse sentido, no caso haitiano, a ajuda internacional foi canalizada por uma legião de organizações não governamentais ligadas à Comissão Europeia ou à USAID. Com um número significativo de ONGs – algumas estimativas apontam para 10 mil delas – que têm um orçamento próximo ao PIB do país e maior do que o empregado pelo próprio Estado nas políticas sociais, há uma fragmentação da oferta de serviços públicos que inibe mais ainda a ação de um Estado deficitário, observando-se, assim, a privatização e a transnacionalização de funções usualmente atribuídas ao Estado-nação. Os sérios dilemas sociais e políticos do povo haitiano são enfrentados pela ação voluntariosa de ONGs em uma série microscópica de pequenos problemas que são enfrentados por poucos atores com pequenos recursos, em pequenas comunidades. O resultado? Grandes (e secretamente desejados) fracassos.

Desse modo, segundo Portella (2015) as ONGs “têm alimentado uma cultura mercantil, egoísta e com resultados incapazes de promover mudanças estruturais no país”. Mas talvez o mais grave seja o impacto dessas organizações na subjetividade das classes e organizações populares, uma vez que fomentam uma intensa competição pela captação de recursos, difundem concepções e teorias desmobilizadoras oriundas dos países centrais e paralisam as lutas que, pela reapropriação de recursos, interpelam o Estado e as classes dominantes.

O problema, claro, não é a ajuda humanitária em si, mas sua aplicação seletiva e seu caráter encobridor das modalidades dominantes de intervenção imperialista no século XXI. O grande álibi da ajuda humanitária é uma profecia autorrealizável que inventa, recria ou exagera ao absurdo problemas que, para além de estar na origem das intervenções internacionais, são suas consequências possíveis e esperáveis. Nesse sentido, as operações massivas de ajuda humanitária, organizadas e executadas pelos Estados Unidos ou União Europeia, constituem uma das formas mais sofisticadas e eficazes de penetração imperial nas nações do sul global, cobertas com uma aura de legitimidade que é tão difícil quanto urgente desmantelar. A adequação dessa ajuda às estratégias de recolonização começa desumanizando o país e as populações que as recebem, entendendo-as como incapazes, por razões puramente internas (sejam elas históricas, culturais, políticas ou mesmo raciais), de administrar os aspectos mais elementares de sua existência por si mesmas, ainda que sejam as mesmas forças remissivas da ajuda humanitária que historicamente produziram tais impossibilidades.

Haiti. 2018 / Foto: Lautaro Rivara

O direito de tutela sempre foi um ponto orientador das concepções “brandas” da política neocolonial. O colonizador que fugiu, expulso e derrotado pela grande porta das batalhas político-militares ou político-eleitorais, entra, via direito de tutela, pela janela dos interesses espúrios e álibis falsos: a luta contra o narcotráfico, os serviços não pagos da dívida externa, as prerrogativas de investimento estrangeiro direto e indireto, ou através da alegada ajuda humanitária.

Outro elemento fundamental que constitui o pano de fundo das operações de ajuda humanitária são as teorias que giram ao redor de conceitos como os de “Estado fraco”, “Estado frágil” ou “Estado falido” (Corten, 2013), aplicados indistintamente à Somália, Síria ou Haiti. Mas não há os tais “Estados falidos”, mas sim impedidos em sua conformação e dilacerados pelas disputas inter-imperiais.

Entre sustentar a instabilidade de um “Estado falido” ou de um país mergulhado em uma “crise humanitária” e defini-lo como uma ameaça para a segurança internacional, há um pequeno passo fácil de ser dado. Em 2015, o presidente estadunidense Obama assinou uma Ordem Executiva que declarava a emergência nacional diante da ameaça “rara e extraordinária” à segurança nacional causada pela situação na Venezuela. O Ordem implicava uma nova escalada no cerco econômico e militar sobre esse país. Ainda mais ridículo é o fato de que contra o Haiti ainda é aplicado o capítulo VII da Carta das Nações Unidas que o considera um perigo para a paz internacional, motivo pelo qual se reconhece o Conselho de Segurança da ONU como a última autoridade no país. O Haiti viveu a intervenção de três missões de paz internacionais (Louis-Juste, Anil y otros, 2009); em particular, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) entre 2004 e 2017, conformada majoritariamente por militares latino-americanos e sob direção formal de generais brasileiros, e a Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (Minujusth) desde 2017 até a atualidade.

Em particular, a Minustah significou um ensaio da chamada proxy war (Korybko, 2018) ou “guerra por procuração indireta” em nosso continente, uma guerra de controle populacional urbana terceirizada, marcando o caminho para o que os EUA querem gerar hoje, envolvendo Brasil e Colômbia, contra a Venezuela. Tal como ocorreu na composição multilateral e latino-americana da Minustah, isso tornaria mais econômica a abertura de uma frente caribenha, enquanto os EUA não se retiram por completo de seu pântano no Oriente Médio. Dessa forma, a Minustah serviu para preparar os militares latino-americanos para as tarefas da nova doutrina de segurança nacional vinculada às novas ameaças sociais.

Além disso, essas missões internacionais significam um controle transnacional do braço coercitivo do Estado, de uma soberania exercida por controle remoto e assentada nas políticas repressivas de forças militares multilaterais. O resultado desses processos gera, de fato, soberanias múltiplas, contraditórias e justapostas, o que faz com que o controle do país passe a ser disputado e compartilhado por grupos criminosos, cartéis de drogas, ONGs, igrejas neopentecostais, oligarquias regionais, forças paramilitares ou missões de ocupação internacional. Embora a contribuição relativa de cada ator para a gestão do comum seja diferente em cada país, assim como o papel específico reservado ao antigo Estado-nação, no caso haitiano este não consegue cobrir nem mesmo as funções elementares de controle repressivo e territorial que, de acordo com as teorias clássicas, foram seu fundamento. Nesse sentido, a política imperial torna funcional novamente as estruturas políticas e seus agentes no sentido de uma soberania frouxa, porosa e atravessada ou controlada por atores transnacionais que facilitam a tutela imperial e permitem a rápida mobilidade que o capital necessita em sua etapa financeira.

A legitimação virtual: o papel das corporações midiáticas e das redes sociais

A doutrina estadunidense de “dominação de espectro completo” nasce da reflexão que o Pentágono faz sobre as causas da derrota no Vietnã e da queda do muro de Berlim. Essa avaliação afirma que o que garantiu a vitória das forças vietnamitas foram suas capacidades no terreno da cultura e da resistência dos povos e não a tecnologia militar da qual dispunham.

A conclusão é que a dominação no terreno econômico, comercial, diplomático e militar não é suficiente; é necessário considerar a intervenção na complexa organização da vida e, portanto, buscar controlar as emoções e as reações das pessoas. A própria produção de subjetividade se converte em alvo da guerra. Em um mundo onde a organização do trabalho no processo produtivo está mudando devido à precarização e ao desemprego, os meios de sociabilidade se modificam. Não quer dizer que os grandes meios de comunicação não tenham mais importância, mas, certamente nesse contexto, a subjetivação social se constrói também através de outras instituições que se desdobram e operam em pequenos espaços comunitários onde a chamada “guerra de quinta geração” atua: religiões, seitas, maçonarias, e a própria família.

A questão central do exercício da hegemonia em nossas sociedades passou assim a ser a de eliminar as próprias vulnerabilidades e a busca da capacidade total de controle sobre os oponentes. Se a hegemonia supõe uma universalização da visão de mundo, trata-se então de nos convencer de que a forma de organização hegemônica é a única maneira de entender a organização da vida e da reprodução material do planeta. Nisso reside a dominação do espectro completo: dominar corações, mentes e corpos. A necessidade de exercer uma dominação que controle todas as dimensões da vida das pessoas: as emoções, a linguagem, a cultura, os valores, os modos de gostar, sentir, desejar, de entender os paradigmas de beleza. Também buscam atuar sobre as dimensões da sobrevivência material, do mercado, da produção e do consumo, controlando inclusive as dimensões da reprodução social e biológica por meio da forma como o povo se alimenta e cuida de sua saúde. Finalmente, a dominação de espectro completo se refere também à dimensão das armas. Mas a importância das dimensões anteriores indica que a guerra se ganha, em parte, antes de se ir ao campo de batalha.

As intervenções sobre todas essas dimensões certamente já existiam, mas com a doutrina de dominação do espectro completo, passam a operar de forma articulada. Nessa perspectiva, um país hegemônico não se impõe só pela via militar, mas também pela capacidade de impor sua visão de mundo. Isso ocorre através da indústria cultural que, combinada com as novas tecnologias da informação e da comunicação (Youtube, Netflix, redes sociais) apresenta e constrói uma forma de viver.

Casamento no Haiti, 2019 / Foto: Lautaro Rivara

Na Venezuela, em particular, essas operações estiveram baseadas nas tentativas de mudanças na subjetividade através das múltiplas formas midiatizadas de intervenção sobre o senso comum, por um lado, e pela construção de um cerco informativo internacional por parte das grandes empresas de comunicação, por outro. É assim que a formação da opinião pública de direita e a guerra cultural interna se retroalimentam da construção da opinião pública mundial.

Certamente, as intervenções diretas de um país sobre o outro nunca são bem vistas em nível mundial a priori; por isso, essas intervenções requerem a criação de condições propícias, assim como a construção de cenários que validem tal intervenção. Para isso, além da guerra econômico-financeira, o desabastecimento e as operações militares, que já analisamos, são imprescindíveis a guerra psicológica, cultural e de comunicações, com o objetivo de criminalizar o governo popular através da manipulação de narrativas.

Sobre isso, Pepe Escobar (2016), analisando esses processos no Brasil, destaca que é essencial como primeiro passo influenciar uma classe média não comprometida para avançar com os métodos de desestabilização política de um governo, operando sobre pequenos grupos de jovens nas redes sociais para que fomentem o descontentamento. No Brasil, isso se apresentou com toda claridade na construção da narrativa de que Dilma Rousseff e Lula eram os políticos mais corruptos do país, assim como no uso massivo de fake news durante as eleições de 2018. Na Venezuela, as fake news chegaram a extremos impensáveis: 37 falsas denúncias de assassinatos de ativistas da oposição, dados econômicos falsos, mobilizações esvaziadas apresentadas como massivas, denúncia de edifícios onde se torturam opositores políticos, entre muitas outras manobras de desinformação que operam sobre os setores que têm mais acesso a redes sociais, logrando que certas construções midiáticas tivessem uma importância e uma repercussão que não condiz com o de fato ocorrido.

Uma enorme diversidade de meios vem sendo empregada nessas campanhas e se expande cada vez mais. Além das tradicionais corporações midiáticas (televisão, jornais impressos e rádio), que sempre atuaram em conjunto com as classes acomodadas venezuelanas, a internet ampliou muito essas ferramentas. As redes sociais e ferramentas comunicacionais possibilitam a montagem e manipulação de enormes bancos de dados que recompilam, identificam e classificam opiniões, sentimentos e desejos da população. Assim como esses aspectos subjetivos podem ser reconhecidos, também podem sofrer intervenções ou serem induzidos através de táticas de guerra psicológica. Dessa forma, uma gestão das redes sociais e da comunicação social, que surgiu buscando interesses comerciais, passou a ser usada para forjar ideologias e impactar fortemente a política venezuelana desses tempos, de maneira similar ao que ocorre em outros países da América Latina.

A produção de informações parcialmente verdadeiras ou falsas (fake news), mas plausíveis para quem as recebe, é difundida por uma combinação de meios de comunicação tradicionais (TV, rádios e jornais), meios digitais (WhatsApp, Facebook e Twitter) e instituições com credibilidade, como Igrejas cristãs, ONGs ou institutos de pesquisa.

Esse direção intencional do fluxo da informação tem uma estrutura de organização em rede que opera em três níveis, como observa Euclides Mance (2018). O primeiro é centralizado por um alto comando, que reúne grupos de fluxos de comunicação, recursos e grupos de interesse internacionais. Estes são responsáveis por alimentar o segundo nível da rede, definido como descentralizado, que alimenta com informações grupos compartimentados, divididos por preferências, cidades e regiões de cada país. Dessa relação se podem criar imensas bases de dados por áreas de interesse. É nesse segundo nível em que operam os robôs ou bots, com base no uso da inteligência artificial, a partir da segmentação produzida das informações coletadas. Por último, o terceiro nível, que se denomina distribuição, acontece diretamente de pessoa a pessoa. Se a informação recebida corresponde a um desejo ou interesse, o indivíduo é motivado a replicá-la de forma autônoma para sua rede de contatos. Isso aumenta a credibilidade, porque as pessoas tendem a dar crédito à informação proveniente de fontes próximas. Esse processo funciona como um vírus que infecta o sistema, o que torna difícil de ser combatido, pois eliminar uma fonte não impacta no funcionamento regular das demais.

Para além dessas operações midiáticas, o que ocorre na experiência de vida do povo venezuelano é diferente. Os 39 títulos, as imagens e notícias em geral não têm por enquanto a incidência que os golpistas desejam. Um exemplo foi a tentativa de Guaidó de apresentar o 30 de abril como uma mobilização massiva do conjunto da sociedade venezuelana em respaldo à ação militar que seu partido promovia. Não houve notícias de mobilizações em outras zonas do país e em Caracas o número de pessoas mobilizadas não chegou a 5 mil. Por enquanto, internamente, a estratégia de guerra midiática não tem obtido grandes resultados. Talvez a dimensão internacional da batalha midiática – a construção de um verdadeiro cerco publicitário com a participação dos consórcios empresariais globais – tem tido um efeito mais claro na difusão de uma imagem favorável à direita venezuelana e ao imperialismo. Entretanto, esse plano está subordinado às demais expressões da guerra híbrida que estamos analisando.

O cerco internacional e a ameaça de intervenção militar

O governo estadunidense tem repetido nos últimos meses, a respeito da Venezuela, que todas as opções estão sobre a mesa, deixando aberta ou sugerindo a intervenção militar direta. Inclusive, no início de maio, no que pode ser parte de uma campanha propagandística, soube-se da solicitação de Juan Guaidó ao Comando Sul dos EUA para iniciar conversas para seu planejamento. É sabido que os EUA têm uma longa história de intervenções e agressões militares na América Latina, desde a proclamação da Doutrina Monroe e o conflito militar com o México na primeira metade do século XIX. Recordemos, entre outras, as intervenções em Cuba, Panamá, Nicarágua, República Dominicana, Haiti, Honduras, Guatemala e Granada, que, na maioria dos casos, ocorreu de forma reiterada (Suarez Salazar, 2006). Entretanto, se a ameaça à Venezuela se concretizar, seria a primeira vez que essa lógica imperial se imporia na América do Sul. Até o momento, essa política parece ter mais valor no jogo diplomático e como mecanismo de pressão interna que como uma estratégia militar efetivamente em curso, ainda que os meios massivos de informação tenham se encarregado de desenvolver, a partir dessa ameaça, uma operação psicossocial de dimensão internacional com escassos precedentes. Ainda no plano diplomático, a iniciativa dos EUA de construir um bloco regional e internacional contra o governo bolivariano tem tido limites, maiores inclusive no segundo caso. Existe um acordo entre alguns países latino-americanos e caribenhos de reconhecer Juan Guaidó, deputado da Assembleia Nacional em desacato, como presidente interino. De forma complementar, governos como o colombiano, chileno, brasileiro e o dos EUA mantêm a atitude de estimular um “assédio diplomático” permanente que se expressou também nas tentativas de ataque às sedes diplomáticas. Mas também ficou clara a resistência desses países em se ver comprometidos com uma ação militar direta na Venezuela. Assim, a opção de gerar um conflito regional e uma intervenção multinacional com a participação dos Estados vizinhos como Colômbia, Guiana e Brasil enfrenta as dúvidas e resistências esgrimidas por um setor da classe dominante brasileira (em particular sua burguesia autóctone) e de seus militares em relação a um conflito militar de resultado incerto e que sirva para fortalecer a presença estadunidense na região, debilitando sua posição geopolítica. Sem o Brasil, essa opção perde força, ainda que a ação bifronte com Colômbia e Guiana possa se sustentar como hipótese desde que a Quarta Frota do Comando Sul seja quem dirija as manobras do lado Atlântico, diante da ausência de Forças Armadas preparadas para uma ofensiva interestatal. Outra opção seria criar um conflito binacional com a Colômbia; uma alternativa que conta com o apoio governamental ainda que careça de solidez operacional, dado que este país se equipou para combater em cenários irregulares em face de um prolongado conflito interno, não contando com meios militares suficientes para enfrentar um conflito regular com outro Estado, a menos que sua participação seja simplesmente para servir como plataforma de implantação de uma ofensiva dos EUA. Embora também seja verdade que a participação dos militares desse país em exercícios militares conjuntos e reuniões com o Comando Sul se intensificaram nos últimos tempos.

Corregimiento de El Mango, município da Argélia, departamento de Cauca (Colômbia). Cortesia de Marcha Patriótica

Desse modo, não sendo claro o papel que os países vizinhos possam desempenhar em um esquema de “distribuição de risco” diante das consequências devastadoras de um conflito desse tipo, o que parece se manter como o último recurso é a invasão estadunidense. Um cenário de intervenção militar direta não costuma ser a principal opção em razão dos custos desse tipo de estratégia, que inclui gastos logísticos para mobilização, manutenção de tropas, uso de mídia, comando e comunicações, bem como os custos políticos aos militares devido aos efeitos da ação direta. O que mostram as últimas intervenções das quais os EUA participaram é que seus métodos envolvem frequentemente o uso de forças indiretas, geralmente através de operações secretas lideradas por organizações locais ou mercenários transnacionais financiados secretamente. Nesse sentido, a agência de notícias Reuters, no início de maio, relatou a existência de uma empresa de mercenários vinculada a Blackwater – a mesma que cometeu dezenas de assassinatos durante a guerra no Iraque e que possui contatos estreitos com o governo de Trump – que anunciou sua disposição em preparar milhares de militares latinos para operar na Venezuela. Na mesma linha, na terceira semana de maio, grupos de paramilitares colombianos foram capturados em território venezuelano acusados de preparar ações de desestabilização e violência, um evento que se repete por mais de dez anos.

No entanto, as dificuldades de levar adiante uma intervenção militar direta na Venezuela tem a ver com os riscos de um elevado custo militar, da continuidade de um enfrentamento prolongado e desgastante no que tem sido chamado de “atolamento do dia seguinte” e dos efeitos regionais e geopolíticos globais que poderiam ser desencadeados. No tocante aos primeiros apontamentos, há uma relação com uma filosofia e prática de defesa gestada, inclusive, a partir do final dos anos 2000 sob o governo de Chávez, e que sob a unidade civil-militar afirma a noção de defesa integral e da guerra de todo povo no chamado Método Tático de Resistência Revolucionária (MTRR), a partir do qual se reorganizou toda a estrutura militar e suas formas de luta (Negrón Varela, 2018). Certamente, as tentativas de guerra e intervenção também se chocam com as experiências de construção do poder popular que ocorrem na Venezuela, experiências de controle político-territorial do povo organizado de diversas formas e em torno de diferentes necessidades e direitos e entre os quais as comunas se destacam.

Milicia Bolivariana, Venezuela. Agosto 2017 / Foto: Rosana Silva

Dilemas do presente e futuro da Venezuela, desafios para a América Latina

Sobre a Venezuela e seu povo tem recaído nos últimos anos, e de forma mais aguda nos últimos meses, diferentes formas de intervenção e desestabilização que englobam as chamadas “guerras híbridas”. A asfixia e desestabilização econômica e financeira, o cerco midiático e diplomático, a incitação da violência interna e do magnicídio, a geração do caos com o ataque aos serviços essenciais, as pressões para uma fratura institucional ou para um golpe de Estado, e as ameaças de intervenção militar externa. Examinamos esses processos nas páginas anteriores, assim como alguns dos modelos que essas intervenções adotam em outros países e povos da América Latina, como Cuba, Colômbia, Haiti, entre outros. Esse panorama mostra o caráter que a ofensiva neoliberal e imperial assume, hoje, em toda a região e, em particular, suas dimensões violentas, belicistas e recolonizadoras, assim como seus objetivos de apropriação e controle dos bens comuns da natureza. Nesse marco geral, as disputas e tensões que hoje têm lugar na Venezuela condensam os aspectos-chave dessa ofensiva inclusive devido aos efeitos regionais que teria a frustração e a derrota da experiência bolivariana.

Nos anos 1930, o poeta peruano César Vallejo, diante da guerra civil na Espanha, pedia, usando a referência bíblica, que afastassem esse cálice; hoje, a defesa de uma América Latina de paz rechaça os tambores militares. Nesse sentido, nos dias em que terminamos de escrever essas linhas, o presidente Nicolás Maduro tem mantido diálogos com o chamado Grupo Internacional de Contato, tem participado dos intercâmbios com a oposição promovidos pelo governo da Noruega e inclusive anunciou a disposição e possibilidade de adiantar as eleições parlamentares. Diante disso, o governo estadunidense aprofundou o bloqueio econômico, proibindo todos os voos comerciais e de passageiros entre EUA e Venezuela e, violando a Convenção de Viena, forças de segurança estadunidenses ingressaram à força na embaixada venezuelana em Washington. Dificilmente alguém comprometido com os valores da paz, justiça e com a emancipação pode permanecer indiferente ou passivo diante dessa contraposição e essas ameaças. Os fios de um novo internacionalismo popular se tecem também no compromisso com a definição desses presentes e futuros latino-americanos.

Venezuela. 24 de fevereiro de 2019 / Foto: Rafael Stédile

Este dossiê foi escrito de forma conjunta pelos escritórios do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em Buenos Aires e São Paulo, e contou com a colaboração, dentre outros, do Grupo de Pensamento Crítico Colombiano do Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (IEALC), Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA); de Lautaro Rivara (sociólogo, membro da Brigada Dessalines, no Haiti), de Ana Maldonado (socióloga, integrante da Frente Francisco de Miranda). Agradecemos a todos eles/as e aos pesquisadores/as citados/as no texto que contribuíram com seus depoimentos e trabalhos.

Fonte: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

 

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