Máscaras que podem salvar vidas e o processo de desindustrialização
“adquirir máscaras se tornou um verdadeiro leilão. Em pistas de aeroporto, oferece-se – em geral os norte-americanos – o pagamento da multa rescisória do contrato e um preço maior pelas máscaras que seriam destinadas a outros países”
Artigo de Rubia Wegner; Marcelo Fernandes; Alexandre Freitas; Lamounier Erthal Villela; Antonio José Alves Jr; Miguel Henriques de Carvalho – Professores do Departamento de Economia da UFRRJ
A indústria brasileira vem sofrendo um processo de desestruturação que se intensificou com o golpe de 2016. Em 2019, a participação da indústria de transformação no PIB foi de apenas 11%. Trata-se de um setor fundamental em qualquer economia. A indústria de transformação é responsável por uma produtividade acima da média dos demais setores e possui uma capacidade de geração de empregos muito elevada. É este o setor no qual a inovação tecnológica encontra terreno mais fértil para seu desenvolvimento. Queremos discutir neste breve texto como a indústria, particularmente aquela ligada ao setor de máscaras de proteção, é fundamental para as inciativas de combate ao Convid-19.
Breves aproximações conjunturais sobre a indústria
De acordo com dados do IBGE, em fevereiro de 2020 a produção industrial avançou 0,5% em comparação com janeiro do mesmo ano (com ajuste sazonal). Porém decresceu 0,4% em comparação com fevereiro de 2019 (sem ajuste sazonal). O crescimento acumulado da indústria em 2020 – janeiro e fevereiro – de 1,6% não compensou queda de 2,5% observada nos dois últimos meses de 2019. Comparativamente a fevereiro de 2019, a produção industrial de bens de capital decresceu 4,6%, a de bens de consumo, 4%, de bens duráveis, 11%, semiduráveis e não duráveis, 1,6%. Somente a produção industrial de bens intermediários, nesta comparação, cresceu 2,5%. Ainda de acordo com dados do IBGE, o setor industrial está 16,6% abaixo do recorde observado em 2011.
Em relação à pequena indústria, a pesquisa da CNI aponta que se manteve ritmo de recuperação. Ao longo do 4º trimestre de 2019, o Índice de desempenho se manteve acima da média histórica chegando a 47,4 e, o Índice de situação financeira, 41,1 (até 100). Em ramos como transformação e construção, a falta de demanda doméstica deixou de ser o principal problema, sendo superada pela falta de incentivos tributários. Para 2020, a expectativa era positiva, tendo-se começado o ano com índices de confiança elevados: aumento de 1,2% do Índice de Confiança do Empresário Industrial (ICEI) aumentou 1,2% em comparação com janeiro de 2019, chegando a 63,4%.
Houve um esforço por parte de entidades, como CNI, em mostrar que desde 2019 houve uma melhoria das expectativas dos empresários no setor industrial (considerando grandes empresas)[1], mesmo que indicadores relacionados com emprego e crescimento do PIB tenham ficado abaixo do esperado. A percepção difundida de que 2020 seria o ano da recuperação econômica e, particularmente, da indústria, já não encontrava apoio nos números mesmo antes da crise do novo coronavírus.
O estouro da crise representou novos desafios ao setor. De acordo com recente pesquisa da CNI, os principais desafios para a indústria neste momento são: a queda da demanda pelos produtos, a dificuldade em conseguir insumos e matérias-primas e a redução da oferta de capital de giro no sistema financeiro. Cancelamentos de pedidos e continuidade das despesas correntes e a redução de liquidez seriam fatores a comprometer a sobrevivência das empresas. Das empresas consultadas, 92% afirmaram que foram negativamente afetadas pela pandemia, sendo com efeitos muito intensos para 40% e para apenas 3%, efeitos positivos [2].
Produção de máscaras e de respiradores
Não entraremos aqui na descrição das medidas anunciadas pelo governo federal, nem no programa apresentado pela FIESP para tratamento dos efeitos negativos da pandemia sobre a atividade industrial.
Queremos destacar a produção de máscaras de proteção como atividade que poderia dinamizar a atividade industrial. Não possui grande complexidade tecnológica, além de ser trabalho intensivo, o que contribuiria para reduzir os índices de desemprego e teria um componente de deslocamento regional da produção, considerável. Em função da situação de calamidade vivenciada, o acesso ao crédito seria certamente facilitado, bem como por se tratar de uma produção de ciclo curtíssimo, a previsibilidade de produção-vendas (ou de formação de estoques), máxima, facilitaria a confiança dos empresários nesta atividade se considerar o período de pico da pandemia.
Este exemplo foi dado pela China, epicentro zero da pandemia – país com elevada coordenação de política industrial e políticas de modo geral, vale ressaltar. Em decorrência dos efeitos da Covid-19 no país, em janeiro deste ano, milhares de fábricas foram convertidas em fábricas de máscaras de proteção para exportação. Negócio que se tornou altamente lucrativo com o espraiamento da pandemia por vários países, dentre eles, os EUA. Destaca-se, em geral, a empresa Guan Xunze que construiu uma fábrica de máscaras N95 em 11 dias. Em 2020, foram registrados 8.950 produtores de máscaras no território chinês. Os relatos dos empresários chineses de máscaras é que, em 15 dias, conseguiam amortizar os custos iniciais de investimento. Alguns relataram que produziam de 60 a 70 mil máscaras por dia. Algo que a imprensa mundial denominou de ‘fábrica de imprimir dinheiro’. Os dados oficiais indicam a produção diária de 116 milhões de máscaras na China, grande parte para exportação[3].
De acordo com a NDRC (National Development and Reform Comission), no final de fevereiro, a China tinha quintuplicado a sua produção de máscaras para uso médico (N95) e para uso não médico. O estímulo inicial foi o considerável aumento da demanda e da escassez de oferta de máscaras. A China estaria produzindo metade das máscaras usadas no mundo com uma produção, que, antes da pandemia, era de 20 milhões de máscaras. Para que esse aumento de capacidade produtiva ocorresse, adotaram-se medidas para priorizar o funcionamento adequado das fábricas, bem como para dar suporte tecnológico necessário.
A ‘diplomacia das máscaras’ tem sido uma estratégia utilizada pela China: quando a Europa se tornou epicentro da crise, por exemplo, o primeiro ministro chinês e a chefe da Comissão Europeia acordaram o envio pela China de milhares de máscaras N95, testes de triagem e, da mesma forma, grandes multinacionais chinesas, como Alibaba, usaram essa estratégia[4].
De acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), houve a redução ou eliminação das tarifas incidentes sobre esse tipo de produto para vários países. Por exemplo: Costa Rica, Equador, Índia, África do Sul. O Brasil não consta nessa relação[5]. Por outro lado, a ANVISA zerou a alíquota do imposto de importação de 50 produtos médico-hospitalares, dentre eles, as máscaras.
Infelizmente, o governo brasileiro perdeu o sentido de urgência a respeito deste assunto. Os EUA, novo epicentro da crise da pandemia do novo corona vírus, acertou com a China a compra de milhares de itens como máscaras de proteção e respiradores. No dia 1 de abril último, os EUA enviou 23 aviões cargueiros para China para buscar o material adquirido[6]. Aparentemente, conforme o Ministro da Saúde, houve uma demora do governo brasileiro em acertar a compra. O cenário vivenciado torna a combinação mais complexa: além da necessidade da oferta dos produtos, deve haver o acerto em tempo para que haja garantias de pagamento e recebimento. Quer dizer, adquirir máscaras se tornou um verdadeiro leilão. Em pistas de aeroporto, oferece-se – em geral os norte-americanos – o pagamento da multa rescisória do contrato e um preço maior pelas máscaras que seriam destinadas a outros países.
A despeito da morosidade do governo brasileiro, instaurou-se uma espécie de guerra internacional para aquisição das máscaras de proteção e respiradores. Portanto, Nenhum país europeu teria condições de produzir suas próprias máscaras pressionando a demanda sobre a China. A França solicitou mais de 1 bilhão de unidades à China, ainda que o Presidente Macron tenha posto como objetivo que o país se torne autossuficiente até o fim do ano. Por outro lado, a França também participa da guerra. No início de março, um carregamento de 2 milhões de máscaras vindo da Suécia com destino a Espanha e Itália ficou retido em Paris. No mesmo mês, mais 4 milhões de máscaras que vieram da China foram confiscadas em Lyon.
Oferta de máscaras de proteção no mercado doméstico brasileiro
“A produção e distribuição das máscaras é apenas um pequeno exemplo de como seria possível ao país adensar a cadeia produtiva da saúde (…) Um processo em que não haveria escolha entre a vida e a economia. Ambas se desenvolveriam juntas, como deve ser”
No Brasil, a Rede SENAI de Inovação organizou instruções para a indústria têxtil visando empresas que busquem reorientar sua produção para máscaras de proteção, bem como para aventais de uso hospitalar. Essas orientações incluem as especificações para produção dos itens, bem como normas e materiais necessários. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), existem 25,2 mil empresas do segmento no País, as quais empregam 1,5 milhão de trabalhadores de forma direta, 8 milhões, indireta. Não haveria problemas de falta de insumos, incluindo-se ainda a possibilidade de fabricação via os institutos de inovação SENAI existentes no país.
O tom do SENAI e da ABIT é de ‘doação’, de ‘ajudar’, sem que se encare como um efetivo negócio empresarial. Outro ponto a destacar é a participação setorial dos microempreendimentos. No Rio Grande do Norte, 78 oficinas de confecção de roupas que estavam ociosas, agora por intermédio do Governo do Estado, junto com Instituições Financeiras e Instituições de Ensino, se articulam para produzir 7 milhões de máscara para a proteção de profissionais de saúde e segurança. Toda essa articulação tem sido feita por reuniões em videoconferências e, com uma governança, onde se define claramente o papel de cada ator envolvido. Dessa forma as máscaras serão elaboradas dentro das normas da ANVISA (N95).
A articulação dos setores público-social-empresarial pode constituir novos arranjos institucionais, formando estruturas pactuadas de produção que vise fortalecer a agricultura familiar periurbana e consórcios produtivos em escalas locais e regionais. O APL de Confecções de Nova Friburgo (RJ), por exemplo, que atualmente atravessa uma crise, mas que teria muito a oferecer como exemplo e capacidade produtiva. Aliás, algumas confecções locais já estão agindo na produção de máscaras, mas de modo ainda desarticulado.
A crise econômica-sanitária coloca em evidência as fragilidades e desarticulações produtivas de devem ser repensadas nas escalas macro, meso e microeconômicas. A produção e distribuição das máscaras é apenas um pequeno exemplo de como seria possível ao país adensar a cadeia produtiva da saúde. Envolveria atividades de baixa tecnologia e outras de maior conteúdo tecnológico, através de pequenas, médias e grandes empresas, com a participação de laboratórios de institutos de pesquisa e universidades. Um processo em que não haveria escolha entre a vida e a economia. Ambas se desenvolveriam juntas, como deve ser.
Notas
[1] De acordo com pesquisas da CNI, 74% das grandes empresas industriais investiram em 2019 e seus planos de investimento teve percentual de realização tal qual o planejado maior do que de 2010. Ou melhor, em 2019, 74% das grandes empresas investiram e 64% delas o fizeram conforme o planejado, o que é consideravelmente maior do que em relação a 2018, quando 75% das grandes empresas investiram, porém, 49% das empresas o fizeram conforme o planejado.
[2] Entre as empresas que positivamente afetadas estão aquelas que têm foco no serviço de entrega ou remoto, além dos produtores de mascaras que trataremos na próxima seção.
[3] Em: https://www.bangkokpost.com/world/1887780/printing-money-booming-mask-producers-in-china-meet-global-demand
[4] Em: https://www.istoedinheiro.com.br/china-entregara-dois-milhoes-de-mascaras-a-ue/
[5] Em: https://www.wto.org/english/tratop_e/covid19_e/covid_measures_e.pdf
[6] Em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/compra-em-massa-dos-eua-china-cancela-contratos-de-importacao-de-equipamentos-medicos-no-brasil-diz-mandetta-24344790
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