Visão Global

O que faria um Brasil de Bolsonaro como parceiro da OTAN?

No movimento planetário de extensão que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tem feito nas últimas décadas, o bloco militar bate à porta do Brasil. A depender de Jair Bolsonaro, alegremente, o presidente o convidaria a entrar e se sentar à cabeceira da mesa, já que tem se empenhado e vai se gabar de colocar o Brasil à disposição das potências imperialistas, como seu “parceiro global”. Se ele sabe o que isso significa? É possível que sim.

Por Moara Crivelente*

A OTAN é uma aliança militar ofensiva —que se diz defensiva— criada na chamada Guerra Fria para conter a União Soviética, dando cara institucional a uma parte na bipolaridade que marcou aquelas décadas nem tão frias assim para tantos povos. Alegando consolidar a unidade entre os países da América do Norte e Europa, inclusive a Turquia, sobre valores democráticos, o bloco teve como um orgulhoso membro fundador a brutal ditadura salazarista em Portugal, que apesar de claramente desprezar a democracia e de ainda ter colônias, tinha a oferecer ao clube uma estratégica base área no arquipélago dos Açores.

Com esta breve introdução, já se pode considerar que Bolsonaro sabe, sim, onde se mete.

Em visita ao Brasil na quinta-feira (5) o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Jake Sullivan apresentou a barganha: segundo a Folha de S.Paulo, se o Brasil deixar a chinesa Huawei de fora do mercado nacional na implantação da 5G, os EUA dariam mais corda para que o Brasil se torne o segundo parceiro da OTAN na América Latina. Custará a bagatela da decisão soberana do Brasil sobre uma tecnologia importantíssima para o país. Liderando uma delegação de outros conselheiros e diretores para assuntos variados, as “questões prioritárias” abordadas, segundo a Embaixada estadunidense, incluíram “como a parceria Brasil-EUA pode apoiar a segurança regional e a democracia, a segurança digital e da informação, a cooperação no Atlântico Sul, a migração ilegal” e as mudanças climáticas —com papel secundário para eventuais colaborações no combate à Covid-19 e acesso às vacinas neste nosso país de mais de 560 mil pessoas mortas pela doença.

Desde que o então presidente Donald Trump anunciou, em 2019, elevar o status do Brasil a grande aliado extra-OTAN dos Estados Unidos e eventualmente a membro do bloco —o que rapidamente vários comentaristas apressaram-se para ridicularizar, tem-se escrutinado com ainda mais atenção o papel da aliança norte-atlântica e a relação do Brasil com a política de cerco, ingerência e ameaça que a OTAN incorpora. A Colômbia protagoniza na região a parceria com os EUA, que mantêm naquele país com que dividimos mais de 1.600 km de fronteira amazônica cerca de 10 bases militares e uma influência direta sobre as políticas de repressão e combate às FARC e outras forças, inclusive movimentos populares em luta por uma distribuição mais justa da terra naquele país assolado pelo neoliberalismo e o paramilitarismo. Em 2017, a Colômbia tornou-se o único país latino-americano na lista de parceiros globais da OTAN, continuando a escancarar as portas para o imperialismo no continente. Mesmo antes do novo status, já participava de ações do bloco, como uma missão militar na região do Chifre da África.

Prezando pela parceria regional desde então, em 2020 o vice-secretário-geral da OTAN participou da Cúpula das Américas, em que líderes políticos, empresários e representantes não-governamentais discutiram “os desafios do hemisfério ocidental”, como coloca a página da OTAN, enfatizando “o valor das parcerias globais, como aquela que a OTAN tem com a Colômbia, para gerir essas questões”. Evidencia-se mais uma vez como a aliança norte-atlântica se vê expandindo seu raio de ação para atuar ativamente em outras latitudes.

No caso do Brasil, embora o diálogo com a OTAN já estivesse aberto antes, o sonho de Bolsonaro é assinar o contrato da prestação de serviços e anunciar que elevou o País a membro do círculo de amigos do império, ainda que não possa ser membro da própria OTAN. It’s the next best thing, devem ter-lhe dito os estadunidenses. Quase tão bom quanto. Ou, é o que dá para fazer.

Quem se engaja em compromisso com o internacionalismo, o desenvolvimento nacional soberano e a paz mundial não pode deixar de examinar o que esta aproximação significa e condenar nos mais firmes termos a afronta aos princípios basilares da política externa brasileira de respeito à soberania das nações, a amizade entre os povos e o fortalecimento do multilateralismo que blocos beligerantes como a OTAN desestabilizam.

Por exemplo, tem se ressaltado que o Brasil, junto a outros 23 países sul-americanos e africanos, é membro fundador da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), estabelecida em 1986 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, numa clara demarcação do tipo de postura ofensiva incorporada pela OTAN. Até recentemente, como em outras frentes, a política do Brasil relativamente à ZOPACAS era a de procurar fortalecê-la e adaptá-la aos novos desafios em prol da multipolaridade, e não miná-la por completo, como o tipo de parcerias buscadas por Bolsonaro deve fazer, submetendo o país ao bloco hegemonizado pelos Estados Unidos. Afinal, após a vexaminosa fala do chefe do Comando Sul das Forças Armadas estadunidenses sobre um brigadeiro brasileiro na operação ser um seu “funcionário” pago pelo Brasil, pouco mais da percepção estadunidense relativamente à “parceria” com este ou qualquer outro país latino-americano fica por compreender.

Mas os planos parecem estar caminhando. Enfileirados para receber Sullivan na semana passada estiveram desde o presidente até os vários ministros do governo Bolsonaro (secretário Especial para Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil, Almirante Flávio Rocha; ministro da Defesa, general Walter Braga Netto; ministro das Comunicações, Fábio Faria; ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Augusto Heleno; e ministro das Relações Exteriores, embaixador Carlos Alberto França, com direito a almoço com a participação do vice-presidente Hamilton Mourão e outros no Palácio do Itamaraty).

De acordo com a Embaixada estadunidense, Sullivan teria expressado o apoio dos EUA à participação do Brasil como Parceiro Global da OTAN “como forma de aprofundar a cooperação de segurança de longa data”, o que “proporcionará maior acesso a treinamentos e educação de forma a aumentar a interoperabilidade” (entre as forças brasileiras e as estadunidenses e de outros países do bloco). A nota também dá conta da pressão contra a contratação da Huawei para a implantação da 5G, que os EUA acusam de ser uma ameaça à infraestrutura de telecomunicações do Brasil e outros países. A esta altura já é um tanto repetitivo, mas se reitera a ironia da “preocupação” quando graças ao escândalo da espionagem realizada pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA soubemos que, mesmo durante o governo do Democrata Barack Obama, altos mandatários desses países, Brasil incluso, no caso da presidenta Dilma Rousseff, tiveram a privacidade das suas comunicações violada.

Em meio à intentona de Bolsonaro e asseclas contra as urnas eletrônicas, o espantalho à frente, na realidade, do próprio regime democrático representativo, a delegação permitiu-se ainda opinar sobre as nossas eleições, afirmando “ter grande confiança na capacidade das instituições brasileiras de realizar uma eleição livre e justa em 2022”. Disse ser importante “preservar a confiança no processo eleitoral que tem longa história de legitimidade no Brasil” —ao contrário, é claro, dos próprios Estados Unidos, onde cada eleição parece um jogo de azar na eventual diferença entre o voto popular e os votos dos chamados super delegados, que podem levar ao comando do país aquele que não foi eleito pela maioria do povo.

O que mais poderá custar ao Brasil ser parceiro da OTAN, um bloco em que os membros —e neste caso alguns podem suspirar de alívio por não ser esta a oferta— comprometem-se atualmente com o gasto de 4% do seu PIB no setor militar e a disposição constante em travar guerras mundo afora? A OTAN considera parceiros “bens valiosos para a nossa segurança e a nossa aliança” ——a das potências do norte. São quatro tipos de parcerias estabelecidas com países em diferentes regiões do mundo, mais as parcerias com organizações internacionais. A prometida ao Brasil seria a de “parceiros globais” —que “cooperam com a OTAN em áreas de interesse mútuo, inclusive desafios securitários emergentes” (quando a definição do que são estes desafios securitários é geralmente a das potências) e “alguns contribuem ativamente com operações da OTAN, seja militarmente ou de outra forma.” Bolsonaro já se vê mandando navios e tropas brasileiras para a base militar dos EUA no Djibuti.

Buscar parcerias para a OTAN, é claro, não é só do interesse dos EUA. O secretário-geral do bloco Jens Stoltenberg, por exemplo, em evento de lançamento da sua iniciativa OTAN 2030, em fevereiro deste ano (adotada pela cúpula da aliança em junho), dissertou sobre a importância de fortalecimento dos laços transatlânticos e, neste rumo, de estreitar parcerias com aliados estabelecidos e eventuais. Porque “os desafios são cada vez mais globais”, o bloco precisa de um quadro global de atuação, diz Stoltenberg.

Como se sabe, desde o fim da chamada Guerra Fria e, com ela, o desmoronamento de décadas de uma narrativa beligerante antissoviética para justificar a existência da OTAN, a aliança busca se reinventar através de novos conceitos estratégicos que a apresentam como a garantidora da segurança e da paz muito além da sua esfera de atuação original, lançando intervenções militares sob pretextos humanitários. Embora, nesta narrativa, a Rússia continue desempenhando um papel chave, a China também entra para o quadro em que a sua emergência como ator global de grande relevância é vista como uma nova ameaça grave a conter. Há certamente divergências sobre esta leitura entre as potências imperialistas, sobretudo Alemanha e França, que buscam maior autonomia em relação à influência estadunidense sobre a política externa europeia, mas a estratégia continua sendo promovida por líderes da OTAN sob o conhecido pretexto da defesa da democracia, o estado de direito, a justiça, os direitos humanos e a liberdade para os quais é necessário fortalecer parcerias existentes e estabelecer novas —como com o Brasil de Bolsonaro ou a Índia de Narendra Modi, conhecidos que são por partilhar desses ideais.

* Cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ)

 

Leia também: